O sociólogo Norbert Elias inicia sua
obra, no capítulo primeiro, analisando as origens e diferenças entre o termo “Kultur
e Zivilisation” (Cultura e Civilização), na cultura Alemã, em analogia com
termos similares na cultura Francesa e Inglesa. E como estes termos têm
significados parecidos ou diferentes dependendo da cultura do país que a
utiliza.
No segundo capítulo intitulado “A
Civilização como transformação do comportamento humano”, o autor analisa a influência de manuais de etiqueta na formação do comportamento das pessoas ao longo dos anos, a partir
da obra de Erasmo de Rotterdam: Da Civilidade em Crianças (De Civilitate Morum Pueriliam) escrito em 1530, junto com outros manuais de
etiqueta, é possível perceber as transformações no comportamento das
pessoas ao passa dos anos, principalmente, a classe mais favorecida da época a corte medieval dos
séculos XVII.
Costumes comuns como limpar o nariz a mesa, os dendês com a ponta da faca, as mãos na toalha da mesa e até soltar gases à mesa, passam gradativamente a ser repudiados. Como se deu esse processo?
Costumes comuns como limpar o nariz a mesa, os dendês com a ponta da faca, as mãos na toalha da mesa e até soltar gases à mesa, passam gradativamente a ser repudiados. Como se deu esse processo?
Alguns manuais de etiqueta contribuíram para a padronização do
comportamento entre os nobres, que posteriormente foi adotado pela burguesia em
acessão, as classes desfavorecidas não tinha acesso a estes manuais, devido
grande parte a não alfabetização e as condições precárias em que viviam,
importante frisar que esse condicionamento das emoções e gestos, essa coerção
social de classe que estabeleceu-se entre os mais bem sucedidos, foi um
processo lento e gradual. O tratado de Erasmo funcionou como manual instrutivo
de boas maneiras, ensinando as pessoas qual a melhor maneira de se portar,
principalmente, diante de outras pessoas e na presença de pessoas que tivesse
uma posição social mais elevada na sociedade. O conceito de “Civilité”,
ancestral da palavra civilização, ainda estava em construção.
“O livro de Erasmo trata de um assunto
muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo,
embora não exclusivamente, “do decoro corporal externo”. É dedicado a um menino
nobre, filho de príncipe, e escrito para a educação de criança. Contém
reflexões simples, enunciadas com grande seriedade, embora, ao mesmo tempo, com
muita zombaria e ironia, tudo isso em linguagem clara e polida e com invejável
precisão. Pode-se dizer que nenhum de seus sucessores jamais igualou esse
tratado em força, clareza e caráter pessoal. Examinando-o mais detidamente,
percebemos por trás dele um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos,
para sermos exatos, assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bem remoto
em outros. O tratado fala de atitudes que perdemos, que alguns de nós
chamaríamos talvez de “bárbaras” ou “incivilizadas”. Fala de muita coisa que
desde então se tornaram impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas
como naturais.” p.66-67
O tratado de Erasmo esta dividido em
sete capítulos que inicia-se com as “condições decorosa e indecorosa de todo o
corpo”, no capítulo primeiro, “cultura corporal” no segundo, “maneiras nos
lugares sagrados” no terceiro, em banquetes no capítulo quarto, em reuniões no
quinto, em divertimento no sexto, terminando com o sétimo maneiras no quarto de
dormir. p.69
Importante salientar que Erasmo não foi
o primeiro a interessar-se por esse assunto, bem antes dele, outros homens da
Idade Média, e mesmo antes desse período como na Antiguidade grego-romana e
outras civilizações já mostravam interesse na forma como as pessoas deviam
porta-se em sociedade. p.70
Temos nestes manuais orientações de
qual a melhor maneira de se portar, a mesa, e quais atitudes devem ser
evitadas. Na Idade Média não havia o conceito de civilização, no sentido que é
empregado hoje e atitudes que atualmente são óbvias, já que aprendemos ainda
criança, a internalizar e reprimir gestos, que não percebemos que nossas ações
são resultado de um condicionamento social, os gestos, ações e tabus que
adquirimos quando criança foram internalizados de tal forma, que temos como
comportamento natural do ser humano. Ao ler o livro estranhamos como adultos e
mesmo nobres tinham atitudes que nos parecem infantis, mas que no período
referido, ainda estava sendo consolidado no meio social, pelo menos entre os
nobres. Havia sempre uma comparação entre o “comportamento nobre, cortês”,
(essa palavra vem de “corte”) em relação às “maneiras rudes” da conduta dos
camponeses. p.74 Assim como lemos na apresentação do livro, “o desenvolvimento
dos modos de conduta, (...) prova que não existe atitude natural no homem.
Acostumamos-nos a imaginar tal ou qual forma de trato, é melhor porque melhor
expressa a natureza humana, nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi
um condicionamento e um adestramento” e até mesmos a moral, como resultado de
uma influência de Nietzsche e Freud, onde entendemos a “moralidade não é um
traço natural, nem legado da graça de Deus, ela foi adquirida por um processo
de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal interessante, um ser
previdente e previsível.” p.09-10
As digas que encontramos nos manuais de
etiqueta são simples pelo padrão atual, mas mesmos os adultos praticavam na
Idade Media. O que os manuais apontavam como negativo? Vejamos, orientações como
não jogar ossos roídos no chão, limpar o nariz a mesa, enfiar os dedos nos
ouvidos ou nos olhos, por os cotovelos em cima da mesa, limpar os dendês com a
ponta da faca, não cuspir em cima da mesa, adormecer na mesa e uma instrução
que se repete em vários manuais era não soltar gases à mesa. p.74-76
Não se usava o garfo à mesa, era
prática comum pegar os sólidos com a mão, como a carne e os líquidos com
conchas ou colher, sopas e molhos era bebidos levando-se a boca aos pratos ou
travessas. “Todos, do rei e rainha ao camponês e sua mulher, comem com as
mãos.” p.68 Assim eram os costumes no século XVI.
“Ao fim da Idade Média, o garfo surgia
como utensílio para retirar alimentos da travessa comum, (...) não havia
utensílios especiais para diferentes alimentos. Eram usadas as mesmas facas e
colheres, até então.” p.77
A analise feita pelo autor a partir da
utilização de objetos simples a mesa como garfo, faca e colher, mostra como o
processo civilizador dos costumes, mesmo os mais simples, foi se formando ao
longo dos séculos, um processo lento e gradual até chagarmos aos atos e
costumes que atualmente estão consolidados. p.112
Outro exemplo de costume medieval comum
era a forma que a carne era servida “Na classe alta medieval, o animal morto ou
grandes partes do mesmo eram trazidas inteiras a mesa. Não só peixes e aves
inteiras, (às vezes, com as penas) mas também coelhos, cordeiros, e quartos de
veados aparecem na mesa, para não mencionar pedaços maiores de carne de caça,
porcos e bois assados no espeto.” p.121 O Trincho e a distribuição da carne são
honras especiais. A tarefa cabe em especial ao dono da casa ou a hóspedes
ilustres.
Porem com o refinamento dos costumes o
que era considerada uma honraria vai aos poucos caindo em desuso, no século
XVII em diante, e tomando um caráter de desagrado, até chegar a ser repugnante
a imagem de um quarto de boi sendo trinchado na mesa do jantar. Assim o
repugnante passa a ser escondido e “removido para o fundo da vida social”, o
trinchar passa a ser realizado longe da vista dos que estão à mesa, nos
açougues ou na cozinha. “Repetidamente iremos ver como é característico de
todo o processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação,
este ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante.” p.123
Na parte do livro intitulado “Mudanças
de Atitude em Relação a Funções Corporais”, veremos como os manuais de etiqueta
mostram especial atenção para o controle de necessidades fisiológicas e o pudor
para reprimir diante de outras pessoas, os impulso do corpo como soltar gases,
e satisfazer as necessidades fisiológicas “É indelicado cumprimentar alguém que
esteja urinando ou defecando” (p.130) Há conselhos do tipo, quando soltar
gases, tussa para abafar o som, se o barulho for muito alto pode-se simular um
ataque de tosse, essas dicas são para os casos em que a pessoas encontra-se
impossibilitada de sair da presença das pessoas que estão próximas, quando
possível deve-se afastar. Aconselha-se a não mostrar ou deixar a mostra as
partes íntimas, ou mesmo fazer menção quando for se aliviar. Assim vai se
formando aos poucos um novo padrão de vergonha e repugnância na alta classe
secular. p.135
Elias frisa a importância da família
como “principal e dominante” instituição com a função de instila controle de
impulsos. “(...) a dependência social da criança face aos pais torna-se
particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.” p.137 A nudez vai tomando
um caráter de vergonha que se interioriza no indivíduo como se fosse natural,
cobrir as partes íntimas: “A situação é análoga no tocante à exposição do
corpo. Inicialmente, torna-se uma infração mostrar-se de qualquer maneira
diante de pessoas de categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores,
a seminudez ou mesmo a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois,
quando todos se tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna
malvista em qualquer caso.” p.138
O quarto de dormir tornou-se uma das
áreas mais “privada” e “íntima” da vida humana na modernidade. Tal como a maior
parte das demais funções corporais, o sono foi sendo transferido para o fundo
da vida social. E foi sendo disciplinado aos poucos geralmente as pessoas
dormiam nuas, fora os religiosos que dormiam inteiramente vestidos. “Uma
camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na ocasião em
que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. (...) A vergonha passou a
acompanhar formas de comportamento que antes haviam estado livres desse
sentimento.” p.160
E como o que consta na Bíblia
“percebendo que estavam nus, ficaram envergonhados”, na Idade Média havia uma
despreocupação em mostrar-se nu, era comum os nobres se mostra nus para os
criados, e mesmos os de classe inferior, não tinham tanto pudor em se mostrar
nus, principalmente no seio familiar, o que posteriormente também foi afetado,
já que o ideal passou a ser que todos passassem a dormir em quartos separados,
bem diferente do quarto comum de antes. “Esta despreocupação desaparece
lentamente no século XVI e mais rapidamente nos séculos XVII, XVIII e XIX, no
início nas classes altas e muito mais devagar nas baixas.” p.160
Notadamente não havendo uma preocupação
com a nudez, a prostituição era vista como natural, tanto que o ensaio de
Erasmo que é dirigido para crianças há menção a prostitutas, o que para nós na
atualidade parece incoerente mencionar tal assunto em livros didáticos. p.169
O padrão de vergonha formou-se muito
fortemente nos séculos XIX e XX, relegando a nudez e a sexualidade para o fundo
da cena privada “mesmo entre adultos, tudo o que fosse relativo à vida sexual
foi escondido ao máximo.” p.171
Outra mudança importante é na
agressividade, a Idade Média é um período da humanidade de grande belicosidade,
o homem medieval estava sempre ameaçado de invasão ou tento que combater um
nobre rival do seu feudo, o cavaleiro medieval estava sempre preparado para o
combate. Há relato de um cavaleiro que “Sente especial prazer em mutilar
inocentes. Em um único mosteiro, o dos monges negros de Sarlat, há 150 homens e
mulheres cujas mãos ele cortou ou cujos olhos arrancou” p.184
Na Idade Média não havia um “poder
social punitivo” unificado, cada feudo tinha suas próprias normas e leis, “o
saque, a rapinagem, e o assassinato eram práticas comuns da sociedade guerreira
dessa época.” p.184 “O prazer de matar e torturar era socialmente permitido.
(...) a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção” p.185 O
nobre feudal comandava bandos armados e guerreiros que estavam sempre prontos
para a guerra, na Idade Média não havia exército nacional nem polícia que
garantisse uma mínima ordem interna, já que estas características surgirão
apenas com os Estados Modernos. O guerreiro medieval vivia da guerra, era
preparado desde pequeno para a luta. “Para a sociedade da época, a guerra era o
estado normal”. p.186
Assim temos uma ótima leitura
para aqueles que querem desvendar as origens do comportamento civilizado
moderno ocidental, em uma leitura leve e descontraída de mais uma obra do
sociólogo Norbert Elias.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, volume 1: uma história dos costumes. 2ed. Rio de Janeiro. Editora
Zahar, 2011.
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