29 abril 2015

O Processo Civilizador

O sociólogo Norbert Elias inicia sua obra, no capítulo primeiro, analisando as origens e diferenças entre o termo “Kultur e Zivilisation” (Cultura e Civilização), na cultura Alemã, em analogia com termos similares na cultura Francesa e Inglesa. E como estes termos têm significados parecidos ou diferentes dependendo da cultura do país que a utiliza. 
No segundo capítulo intitulado “A Civilização como transformação do comportamento humano”, o autor analisa a influência de manuais de etiqueta na formação do comportamento das pessoas ao longo dos anos, a partir da obra de Erasmo de Rotterdam: Da Civilidade em Crianças (De Civilitate Morum Pueriliam) escrito em 1530, junto com outros manuais de etiqueta, é possível perceber as transformações no comportamento das pessoas ao passa dos anos, principalmente, a classe mais favorecida da época a corte medieval dos séculos XVII. 
Costumes comuns como  limpar o nariz a mesa, os dendês com a ponta da faca, as mãos na toalha da mesa e até soltar gases à mesa, passam gradativamente a ser repudiados. Como se deu esse processo?

Alguns manuais de etiqueta contribuíram para a padronização do comportamento entre os nobres, que posteriormente foi adotado pela burguesia em acessão, as classes desfavorecidas não tinha acesso a estes manuais, devido grande parte a não alfabetização e as condições precárias em que viviam, importante frisar que esse condicionamento das emoções e gestos, essa coerção social de classe que estabeleceu-se entre os mais bem sucedidos, foi um processo lento e gradual. O tratado de Erasmo funcionou como manual instrutivo de boas maneiras, ensinando as pessoas qual a melhor maneira de se portar, principalmente, diante de outras pessoas e na presença de pessoas que tivesse uma posição social mais elevada na sociedade. O conceito de “Civilité”, ancestral da palavra civilização, ainda estava em construção. 

“O livro de Erasmo trata de um assunto muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo, embora não exclusivamente, “do decoro corporal externo”. É dedicado a um menino nobre, filho de príncipe, e escrito para a educação de criança. Contém reflexões simples, enunciadas com grande seriedade, embora, ao mesmo tempo, com muita zombaria e ironia, tudo isso em linguagem clara e polida e com invejável precisão. Pode-se dizer que nenhum de seus sucessores jamais igualou esse tratado em força, clareza e caráter pessoal. Examinando-o mais detidamente, percebemos por trás dele um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos, para sermos exatos, assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bem remoto em outros. O tratado fala de atitudes que perdemos, que alguns de nós chamaríamos talvez de “bárbaras” ou “incivilizadas”. Fala de muita coisa que desde então se tornaram impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas como naturais.” p.66-67

O tratado de Erasmo esta dividido em sete capítulos que inicia-se com as “condições decorosa e indecorosa de todo o corpo”, no capítulo primeiro, “cultura corporal” no segundo, “maneiras nos lugares sagrados” no terceiro, em banquetes no capítulo quarto, em reuniões no quinto, em divertimento no sexto, terminando com o sétimo maneiras no quarto de dormir. p.69

Importante salientar que Erasmo não foi o primeiro a interessar-se por esse assunto, bem antes dele, outros homens da Idade Média, e mesmo antes desse período como na Antiguidade grego-romana e outras civilizações já mostravam interesse na forma como as pessoas deviam porta-se em sociedade. p.70

Temos nestes manuais orientações de qual a melhor maneira de se portar, a mesa, e quais atitudes devem ser evitadas. Na Idade Média não havia o conceito de civilização, no sentido que é empregado hoje e atitudes que atualmente são óbvias, já que aprendemos ainda criança, a internalizar e reprimir gestos, que não percebemos que nossas ações são resultado de um condicionamento social, os gestos, ações e tabus que adquirimos quando criança foram internalizados de tal forma, que temos como comportamento natural do ser humano. Ao ler o livro estranhamos como adultos e mesmo nobres tinham atitudes que nos parecem infantis, mas que no período referido, ainda estava sendo consolidado no meio social, pelo menos entre os nobres. Havia sempre uma comparação entre o “comportamento nobre, cortês”, (essa palavra vem de “corte”) em relação às “maneiras rudes” da conduta dos camponeses. p.74 Assim como lemos na apresentação do livro, “o desenvolvimento dos modos de conduta, (...) prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamos-nos a imaginar tal ou qual forma de trato, é melhor porque melhor expressa a natureza humana, nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento e um adestramento” e até mesmos a moral, como resultado de uma influência de Nietzsche e Freud, onde entendemos a “moralidade não é um traço natural, nem legado da graça de Deus, ela foi adquirida por um processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal interessante, um ser previdente e previsível.” p.09-10

As digas que encontramos nos manuais de etiqueta são simples pelo padrão atual, mas mesmos os adultos praticavam na Idade Media. O que os manuais apontavam como negativo? Vejamos, orientações como não jogar ossos roídos no chão, limpar o nariz a mesa, enfiar os dedos nos ouvidos ou nos olhos, por os cotovelos em cima da mesa, limpar os dendês com a ponta da faca, não cuspir em cima da mesa, adormecer na mesa e uma instrução que se repete em vários manuais era não soltar gases à mesa. p.74-76

Não se usava o garfo à mesa, era prática comum pegar os sólidos com a mão, como a carne e os líquidos com conchas ou colher, sopas e molhos era bebidos levando-se a boca aos pratos ou travessas. “Todos, do rei e rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos.” p.68 Assim eram os costumes no século XVI.

“Ao fim da Idade Média, o garfo surgia como utensílio para retirar alimentos da travessa comum, (...) não havia utensílios especiais para diferentes alimentos. Eram usadas as mesmas facas e colheres, até então.” p.77

A analise feita pelo autor a partir da utilização de objetos simples a mesa como garfo, faca e colher, mostra como o processo civilizador dos costumes, mesmo os mais simples, foi se formando ao longo dos séculos, um processo lento e gradual até chagarmos aos atos e costumes que atualmente estão consolidados. p.112

Outro exemplo de costume medieval comum era a forma que a carne era servida “Na classe alta medieval, o animal morto ou grandes partes do mesmo eram trazidas inteiras a mesa. Não só peixes e aves inteiras, (às vezes, com as penas) mas também coelhos, cordeiros, e quartos de veados aparecem na mesa, para não mencionar pedaços maiores de carne de caça, porcos e bois assados no espeto.” p.121 O Trincho e a distribuição da carne são honras especiais. A tarefa cabe em especial ao dono da casa ou a hóspedes ilustres.

Porem com o refinamento dos costumes o que era considerada uma honraria vai aos poucos caindo em desuso, no século XVII em diante, e tomando um caráter de desagrado, até chegar a ser repugnante a imagem de um quarto de boi sendo trinchado na mesa do jantar. Assim o repugnante passa a ser escondido e “removido para o fundo da vida social”, o trinchar passa a ser realizado longe da vista dos que estão à mesa, nos açougues ou na cozinha. “Repetidamente iremos ver como é característico de todo o processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante.” p.123

Na parte do livro intitulado “Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais”, veremos como os manuais de etiqueta mostram especial atenção para o controle de necessidades fisiológicas e o pudor para reprimir diante de outras pessoas, os impulso do corpo como soltar gases, e satisfazer as necessidades fisiológicas “É indelicado cumprimentar alguém que esteja urinando ou defecando” (p.130) Há conselhos do tipo, quando soltar gases, tussa para abafar o som, se o barulho for muito alto pode-se simular um ataque de tosse, essas dicas são para os casos em que a pessoas encontra-se impossibilitada de sair da presença das pessoas que estão próximas, quando possível deve-se afastar. Aconselha-se a não mostrar ou deixar a mostra as partes íntimas, ou mesmo fazer menção quando for se aliviar. Assim vai se formando aos poucos um novo padrão de vergonha e repugnância na alta classe secular. p.135

Elias frisa a importância da família como “principal e dominante” instituição com a função de instila controle de impulsos. “(...) a dependência social da criança face aos pais torna-se particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.” p.137 A nudez vai tomando um caráter de vergonha que se interioriza no indivíduo como se fosse natural, cobrir as partes íntimas: “A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se uma infração mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em qualquer caso.” p.138

O quarto de dormir tornou-se uma das áreas mais “privada” e “íntima” da vida humana na modernidade. Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo transferido para o fundo da vida social. E foi sendo disciplinado aos poucos geralmente as pessoas dormiam nuas, fora os religiosos que dormiam inteiramente vestidos. “Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. (...) A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes haviam estado livres desse sentimento.” p.160

E como o que consta na Bíblia “percebendo que estavam nus, ficaram envergonhados”, na Idade Média havia uma despreocupação em mostrar-se nu, era comum os nobres se mostra nus para os criados, e mesmos os de classe inferior, não tinham tanto pudor em se mostrar nus, principalmente no seio familiar, o que posteriormente também foi afetado, já que o ideal passou a ser que todos passassem a dormir em quartos separados, bem diferente do quarto comum de antes. “Esta despreocupação desaparece lentamente no século XVI e mais rapidamente nos séculos XVII, XVIII e XIX, no início nas classes altas e muito mais devagar nas baixas.” p.160

Notadamente não havendo uma preocupação com a nudez, a prostituição era vista como natural, tanto que o ensaio de Erasmo que é dirigido para crianças há menção a prostitutas, o que para nós na atualidade parece incoerente mencionar tal assunto em livros didáticos. p.169

O padrão de vergonha formou-se muito fortemente nos séculos XIX e XX, relegando a nudez e a sexualidade para o fundo da cena privada “mesmo entre adultos, tudo o que fosse relativo à vida sexual foi escondido ao máximo.” p.171
Outra mudança importante é na agressividade, a Idade Média é um período da humanidade de grande belicosidade, o homem medieval estava sempre ameaçado de invasão ou tento que combater um nobre rival do seu feudo, o cavaleiro medieval estava sempre preparado para o combate. Há relato de um cavaleiro que “Sente especial prazer em mutilar inocentes. Em um único mosteiro, o dos monges negros de Sarlat, há 150 homens e mulheres cujas mãos ele cortou ou cujos olhos arrancou” p.184

Na Idade Média não havia um “poder social punitivo” unificado, cada feudo tinha suas próprias normas e leis, “o saque, a rapinagem, e o assassinato eram práticas comuns da sociedade guerreira dessa época.” p.184 “O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. (...) a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção” p.185 O nobre feudal comandava bandos armados e guerreiros que estavam sempre prontos para a guerra, na Idade Média não havia exército nacional nem polícia que garantisse uma mínima ordem interna, já que estas características surgirão apenas com os Estados Modernos. O guerreiro medieval vivia da guerra, era preparado desde pequeno para a luta. “Para a sociedade da época, a guerra era o estado normal”. p.186

 Assim temos uma ótima leitura para aqueles que querem desvendar as origens do comportamento civilizado moderno ocidental, em uma leitura leve e descontraída de mais uma obra do sociólogo Norbert Elias. 

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, volume 1: uma história dos costumes. 2ed. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2011.

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