O livro o Queijo e os Vermes de Carlos
Ginzburg têm a pretensão de mostrar como era a mentalidade na Idade Média, por
volta do século XVI, de um simples homem do campo através da análise
de um processo da Inquisição, narrando à história de um moleiro, que
afirmava que a origens dos seres vivos vinham da putrefação, como os vermes que
nascem do queijo, tudo viria do caos, a terra, o mar, as arvores, as pessoas os
anjos, Deus o Diabo, Inferno e o Céu. Indo contra o pensamento da Igreja
Católica. Essas ideias trouxeram problemas para Menocchio que acabou sendo
preso e torturado pela Inquisição Católica.
No primeiro capitulo é apresentado o
personagem principal da história, sua vida e o local em que este viveu:
“Chamava-se Domenico Scandella, conhecido por Menocchio. Nascera em 1532
(quando do primeiro processo declarou ter 52 anos), em Montereale, uma pequena
aldeia nas colinas do Friuli, a 25 quilômetros de Pordenone, bem protegida
pelas montanhas. Viveu sempre ali, exceto dois anos de desterro após uma
briga”. “Era casado e tinha sete filhos; outros quatro haviam morrido.” p31.
Declarou ao Santo Oficio que exercia as atividades de moleiro, vestindo-se de
branco com capuz e capa de lã.
Em 28 de setembro de 1583 Menocchio foi
denunciado ao Santo Ofício, sob a acusação de ter pronunciado palavras
heréticas e totalmente ímpias sobre Cristo. Pelo pároco de Montereale, dom
Odorico Vorai, como o anônimo delator. O processo dá conta que pessoas da
aldeia confirmavam que Menocchio andava pronunciando palavras que poderiam ser
considerada heresias. Baseado nas evidências o inquisidor o frade franciscano
Felice da Montefalco, ordenou a prisão de Menocchio no cárcere do Santo Ofício
de Concórdia. Em 7 de fevereiro de 1584 Menocchio foi submetido a um primeiro
interrogatório.
Suas opiniões nessa primeira
“entrevista,” levam seu filho Ziannuto, orientado pelos amigos a espalhar
noticias sobre a insanidade do pai, más essa estratégia não surte efeito, após
a prisão do pai, Ziannuto busca um advogado conhecido como Trappola, que
adquiriu uma carta na prefeitura de Montereale a favor do acusado para ajudar
na sua defesa. Menocchio no final do primeiro interrogatório (7 de fevereiro)
pediu perdão, no entanto não negava nada. Durante quatro longos interrogatórios
(7, 22 de fevereiro e 8 de março) ele se manteve firme diante das objeções do
vigário, negou, fez comentários, rebateu.
No dia 28 de abril, agora com a
presença de um magistrado da cidade de Portogruaro e do inquisidor de Aquiléia
e Concórdia, Menocchio abandona o receio e explana todo o seu modo de pensar.
Começou denunciando a opressão dos ricos contra os pobres através do uso do
latim nos tribunais, da qual a Igreja era cúmplice e participante. Fez uma
feroz critica a hierarquia da igreja católica e seus membros, acusando-a de
arruinar os pobres. Criticou ainda a luxuria da Igreja, e disse que a mesma
deveria abandonar seus privilégios e seguir o que Cristo pregava a
simplicidade. Declarou recusar todos os sacramentos da Igreja, criticando o
Batismo, a Crisma, o Casamento, a Extrema-unção e a Confissão, sempre alegando
que todas essas celebrações foram criadas pelo homem e serviam apenas como
mercadoria e era usado pela igreja para subjugar as pessoas. p42
Mas qual era o fundamento dessa crítica
radical aos sacramentos? Com certeza não as Escrituras, que estas Menocchio
submetiam a um exame sem preconceitos, reduzindo-as a “quatro palavras” que
constituíam sua essência: “Acho que a Sagrada Escritura tenha sido dada por
Deus, mas, em seguida, foi adaptada pelos homens”. p44
Para buscar um entendimento maior do
momento em que o personagem principal vive vamos analisar o que disse Carlos
Coner, em 1587, frisava a pobreza natural da partia: “muito estéril porque em
parte montanhosa, pedregosa nas planícies e exposta a freqüentes inundações e
danos das tempestades, que são muito comuns na região”, e concluía: “Assim
sendo, se os nobres não possuem grandes riquezas, os camponeses são
paupérrimos”. No final do século (1599), Stefano Viaro traçava um quadro de
decadência e desolação: “Há alguns anos a assim chamada Pátria se apresenta
totalmente destruída, não se encontrando vila que não esteja com dois terços ou
mesmo três quartos de suas casas arruinadas, desabitadas; pouco menos da metade
das suas terras são improdutivas, o que de fato é de se lamentar muito, já que
desse modo a cada dia declinará mais, com seus habitantes tendo que partir por
necessidade (como já estão fazendo), e ali ficarão apenas os súditos
miseráveis”. No momento em que se diagnosticava a decadência de Veneza, a
economia friulana já se encontra em estado de avançada desagregação. p50
Para Menocchio qual a imagem que
construiria para si no enorme emaranhado jogo de forças que, silenciosamente,
condicionava sua existência?
Menocchio é um dos pobres. Uma imagem
claramente dicotômica da estrutura de classes, típicas das sociedades
camponesas. Em todo caso parece-nos que Menocchio, em seus discursos, dá
indícios de ter uma atitude diferente em reação aos “superiores”. A violência
do ataque contra as autoridades máximas da Igreja – “E me parece que na nossa
lei o papa, os cardeais, os padres. Eles arruínam os pobres...” – contrasta com
a crítica muito mais amena, que vem em seguida, ás autoridades política. p50
Na busca de se compreender as palavras
de Menocchio, é feita uma análise na obra da possível ligação do moleiro com os
grupos da Reforma religiosa e suas idéias, que efervescia a Europa dos séculos
XVI. Um judeu convertido de nome Simon, afirmou que Menocchio negava qualquer
valor ao Evangelho, rejeitando a divindade de Cristo e louvava um livro que
talvez fosse o Alcorão. Essa afirmação do Judeu Simon, já que os ensinamentos
do Alcorão são antagônicos aos ensinamentos de Lutero, afasta a possibilidade
da ligação dele com os Luteranos. A insistência na simplicidade da palavra de
Deus, a negação das imagens sacras, das cerimônias e dos sacramentos, a negação
de Cristo, a adesão a uma religião prática baseada nas obras, a polêmica
pregando a pobreza contra as “pompas” da Igreja, a exaltação da tolerância, são
todos elementos que nos conduzem ao radicalismo religioso dos anabatistas.
Todavia, apesar das analogias apontadas, não parece possível definir Menocchio
como um anabatista. O valor positivo que ele formulou a propósito da missa, da
eucaristia e também, dentro de certos limites, da confissão, era inconcebível
para um anabatista. Sobretudo um anabatista que via no papa a encarnação do
Anticristo, nunca teria dito uma frase como aquela de Menocchio a respeito das
indulgências: “[...] acredito que sejam boas, porque, se Deus pôs um homem em
seu lugar, que é o papa, e mandou perdoar, isso é bom, porque é como se
recebêssemos de Deus, já que são dadas por seu representante”.
Concluímos, que entre as posições de
Menocchio e as dos anabatistas existiam analogias indiscutíveis, embora
inseridas em contextos claramente diversos. Qual a relação entre uma cosmogonia
como a de Menocchio – o queijo primordial do qual nascem vermes que são anjos –
e a Reforma? Como remeter à Reforma afirmação como as atribuídas a Menocchio
por seus conterrâneos: “Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses”; “O céu, a
terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus”? É melhor imputá-las,
por enquanto, a um substrato de crenças camponesas, velho de muitos séculos,
mas nunca totalmente extinto. A Reforma, rompendo a crosta da unidade
religiosa, tinha feito vir à tona, de forma indireta, tal substrato; a
Contra-Reforma, na tentativa de recompor a unidade, trouxera-o à luz, para
expulsá-lo.
Os inquisidores questionavam o réu a
delatar os nomes das pessoas que haviam contribuído para a formulação de idéias
tão divergentes das correntes vigentes, parecia improvável que um simples
moleiro formulá-se teses tão aprofundadas e polemicas sem o auxilio de outras
pessoas. No entanto, Menocchio afirmou que seus pensamentos faziam parte da sua
mente, e que estava pensando coagido pelo diabo. Com o aprofundamento do
processo verificou-se que ele pregava suas doutrinas segundo varias leituras de
livros, alguns até proibidos pela Inquisição, às vezes mal interpretados, e
muitas vezes distorcendo o sentido das histórias descritas nestas obras, o réu
misturava as fontes orais com suas leituras, isso ocasionou opiniões
heterogêneas das que eram comuns no período. Para não deixar de citar algumas
obras lindas pelo protagonista: A Bíblia em vulgar, Il Fioretto della bíblia,
Il Lucidario della Madona, Il cavallir Zuanne de Mandaville, Decameron, de
Boccaccio, entre outras obras identificadas pelo autor. A Igreja católica nesse
período combatia em duas frentes: contra a cultura erudita velha e nova,
irredutível aos esquemas contra-reformísticos, e contra a cultura popular.
A resposta de Menocchio a pergunta do
inquisidor – “O senhor acredita então que não se saiba seja qual seja a melhor
lei?” – foi sutil: “Senhor, eu penso que cada um acha que a sua fé seja a
melhor, mas não se sabe qual é a melhor...”. A posição de Menocchio a cerca da
tolerância tinha um conteúdo positivo: “A majestade de Deus distribui o
Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, tem a mesma
consideração por todos, e todos, e de algum modo todos se salvarão” (grifo
meu).
Seu radicalismo religioso, embora tendo
ocasionalmente se nutrido de temas da tolerância medieval, ia muito ao encontro
das sofisticadas teorizações religiosas dos heréticos contemporâneos de
formação humanista. p94
Menocchio lia seus livros destacando,
chegando a deformar, palavras e frases; justapunha passagens diversas, fazendo
explodir analogias fulminantes. Triturava e reelaborava suas leituras, indo
muito além de qualquer modelo preestabelecido. Suas afirmações mais
desconcertantes nasciam do contato com textos inócuos, como As Viagens, de
Mandeville, ou a Historia del Giudicioi. Não o livro em si, mas o encontro da
pagina escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma
mistura explosiva.
Retornando a cosmogonia de Menocchio,
que no início nos pareceu tão estranha e indecifrável. Ela começava
desviando-se da imediatamente do Gênese e de sua interpretação ortodoxa,
afirmando a existência de um caos primordial: “Eu Disse que segundo meu
pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos...”
(7 de fevereiro). Num interrogatório subseqüente, como vimos, o vigário-geral
interrompeu Menocchio que discorria sobre as Viagens de Mandeville, e lhe
perguntou “se esse livro não falava do caos”. Menocchio negou, repropondo
(desta vez, de forma consciente) o já citado cruzamento entre cultura escrita e
cultura oral: “Não, senhor, mas sobre isso eu li no Fioretto della Bíblia, mas
as outras coisas que eu disse sobre o caos eu tirei da minha própria cabeça”.
Menocchio tentou comunicar essas
“coisas” aos seus conterrâneos: “[...] no princípio este mundo era nada, que a
água do mar foi batida como a espuma e se coagulou como o queijo, do qual
nasceu uma infinidade de vermes; estes vermes se tornaram homens, dos quais o
mais potente e sábio foi Deus e os outros lhe dedicaram obediência...”. A
sequência do processo mostrou claramente que Menocchio estava pronto a variar
este ou aquele elemento da sua cosmogonia, desde que mantivesse intacto seu
caráter essencial. Assim, à indagação do vigário-geral – “O que era essa
santíssima majestade?” – respondeu: “Eu entendo a santíssima majestade como o
espírito de Deus, que sempre existiu”. Num interrogatório subseqüente ainda
precisou: no dia do Juízo, os homens serão julgados “por aquela santíssima
majestade que eu citei antes, que existia antes que existisse o caos”. E, numa
versão ulterior, substituiu Deus pela “santíssima majestade”, o Espírito Santo
de Deus: “Eu acredito que o eterno Deus daquele caos do qual eu já falei tenha
retirado dali a mais perfeita luz, assim como se faz o queijo, e daquela luz
fez os espíritos que nós chamamos anjos, entre os quais elegeu o mais nobre, e
a ele deu toda sua sabedoria, toda sua vontade e todo seu poder, e este é o que
nós chamamos Espírito Santo, o qual foi colocado por Deus na criação do mundo
interior...”. Perguntou o inquisidor, “Deus foi sempre eterno e esteve sempre
no caos?” “Eu acredito que sempre tenha estado juntos, nunca separados, isto é,
nem o caos sem Deus, nem Deus sem o caos.”
Diante dessa miscelânea, o inquisidor
tentou (era 12 de maio) obter um pouco de clareza antes de concluir definitivamente
o processo.
Assim, na sua linguagem densa, recheada
de metáforas ligadas ao cotidiano, Menocchio explicava sua cosmogonia
tranquilamente, com segurança, aos inquisidores estupefatos e curiosos. Apesar
da grande variedade de termos teológicos, um ponto permanecia constante: a
recusa em atribuir à divindade a criação do mundo – e, ao mesmo tempo, a
obstinada reafirmação do elemento aparentemente muito bizarro: o queijo, os
vermes-anjos nascidos do queijo. Parece claro pela resposta de Menocchio que a insistente
remissão ao queijo e aos vermes tinha uma função puramente
analógico-explicativa. A experiência cotidiana do surgimento de vermes do
queijo putrefato servia para Menocchio explicar o nascimento dos seres viventes
– os primeiros, os mais perfeitos, foram os anjos – do caos, da matéria “grande
e indigesta”, sem recorrer à intervenção de Deus. O caos precede a “santíssima
majestade”, que não é melhor definida; do caos nasceram os primeiros seres
viventes – os anjos e mesmo Deus, que era o maior de todos – por geração
espontânea, “produzidos pela natureza”. A cosmogonia de Menocchio era
substancialmente materialista e tendencialmente científica. A doutrina da
geração espontânea da vida a parti do inanimado, compartilhada por todos os
intelectuais do tempo, era, de fato, mais científica que a doutrina da Igreja
no que concerne à criação, baseada no Gênese.
Nos discursos de Menocchio, portanto,
vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo,
tão pouco comum que e torna quase incompreensível. Esse caso, diferentemente
dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página
escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Para que essa
cultura diversa pudesse vir à luz, foram necessária a Reforma e a difusão da
imprensa. Graça à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e
expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre e sobre o mundo. Graças à
segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada
visão de mundo que fervilhava dentro dele. Nas frases ou nos arremedos de
frases arrancadas dos livros, encontrou os instrumentos para formular e
defender suas próprias idéias durante anos, com seus conterrâneos num primeiro
momento, e, depois, contra os juízes armados de doutrina e poder.
Desse modo, viveu pessoalmente o salto
histórico de peso incalculável que separa a linguagem gesticulada, murmurada,
gritada, da cultura oral, da linguagem da cultura escrita, desprovida de
entonação e cristalizada nas páginas dos livros. A vitória da cultura escrita
sobre a oral foi, acima de tudo, a vitória da abstração sobre o empirismo. Na
possibilidade de emancipar-se das situações particulares está à raiz do eixo
que sempre ligou de modo inextricável escritura e poder.
Menocchio era conscientemente orgulhoso
da originalidade de suas idéias e, por isso, desejava expô-las às mais altas
autoridades civis e religiosas. Ao mesmo tempo, porém sentia necessidade de
dominar a cultura dos seus adversários. Compreendia que a escrita e a
capacidade de dominar e transmitir a cultura escrita eram fontes de poder. Não
se limitou, portanto, a denunciar a “traição dos pobres” pelo uso de uma língua
burocrática (e sacerdotal) como o latim. O horizonte de sua polêmica era mais
amplo. A idéia da cultura como privilégio fora gravemente ferida (com certeza
não eliminada) pela invenção da imprensa.
Durante o processo, a atitude dos
juízes mudara imperceptivelmente. De início, fizeram Menocchio notar as
contradições em que caíra; depois, tentaram reconduzi-lo ao caminho certo; por
fim, em vista de sua obstinação, renunciaram a qualquer tentativa de
convencê-lo e se limitaram a perguntas exploratórias, como se desejassem chegar
a um quadro completo de duas aberrações. E assim, no dia 17 de maio, após pouco
mais de três meses de julgamento, a sentença foi promulgada: “condenaste com
teu julgamento profano; foi por influência do espírito maligno que ousaste
afirmar; enfim tentaste com tua boca imunda; imaginaste essa coisa totalmente
abominável; e para que nada permanecesse imaculado e que não fosse por ti
contaminado [...] negavas; adulterando com tua língua maldita [...] dizias;
enfim latias; colocaste o veneno; e o que é terrível que não só se diga mas se
ouça; teu espírito mau e perverso não se contento com essas coisas todas [...]
mas levantou os seus cornos e, como os gigantes, te puseste a lutar contra a
inefável Santíssima Trindade; o céu se espanta, tudo se conturba e estremecem
os que ouvem as coisas tão desumanas e horríveis que com tua voz profana
falaste de Jesus Cristo, filho de Deus”.
Menocchio foi condenado a abjurar
publicamente todas as suas heresias, a cumprir várias penitências salutares, a
vestir para sempre um hábito marcado com a cruz, em sinal de penitência, e a
passar no cárcere, à custa dos filhos, o resto da vida.
No entanto permaneceu no cárcere de
Concórdia quase dois anos. Em 18 de janeiro 1586, Ziannuto, seu filho,
apresentou, em nome dos irmãos e da mãe, uma súplica ao bispo Matteo Sanudo e
ao inquisidor de Aquiléia e Concórdia, que era então o frade Evangelista Peleo.
A súplica fora escrita pelo próprio Menocchio: [...] “arrependido e sofrendo
por tantos pecados, peço perdão, primeiro ao senhor Deus, em seguida a este
Santo Tribunal, e lhes peço a graça de me libertar. Comprometo-me a lhe dar
garantias idôneas de viver nos preceitos da Santa Igreja romana como também de
fazer as penitências que este Santo Ofício me impuser, e peço a Nosso Senhor
toda a felicidade para os senhores”.
O bispo de Concórdia e o inquisidor do Friuli
reconheceram nisso tudo sinais de uma autêntica conversão. Convocaram
imediatamente o magistrado de Portogruaro e alguns nobres do lugar e comutaram
a sentença. Como cárcere perpétuo para Menocchio foi determinada a aldeia de
Montereale, ficando-lhe proibido afastar-se dali. Ficava-lhe expressamente
proibido também falar ou mencionar suas idéias perigosas. Deveria se confessar
com regularidade e usar sobre a roupa a hábito com a cruz, sinal da sua
infâmia. Um amigo, Daniele de Biasio, se responsabilizou por ele,
comprometendo-se a pagar duzentos ducados em caso de violação da sentença.
Arrasado física e mentalmente, Menocchio voltou para Montereale.
Tenta leva uma vida normal na
comunidade, passando por dificuldades, visto que sofria com a discriminação por
conta do hábito com a cruz, faltava-lhe emprego, dirige-se ao inquisidor e pede
para tira-lhe o hábito com a cruz, e revogar a proibição de sai de sua cidade,
ao que o segundo pedido foi atendido, Menocchio tentava leva uma vida com
prudência guando falava de assuntos religiosos, no entanto seu pensamento não
mudara, e ele cometera alguns deslizes, fazendo comentários críticos a Igreja.
Por volta do fim de junho de 1599, ele foi novamente preso e confinado no
cárcere de Aviano. Algum tempo depois foi transferido para Portogruaro. Em 12
de julho compareceu diante do inquisidor, frade Gerolamo Asteo, do vigário de
Concórdia, Valeiro Trapola, e do magistrado do lugar, Pietro Zane. Quinze anos
eram passados desde que Menocchio fora interrogado pela primeira vez pelo Santo
Ofício. E passara três deles na prisão. Nessa altura já estava velho: magro,
cabelos brancos, barba grisalha, sempre vestido como moleiro – túnica e gorro
cinza-claro. Tinha 67 anos. Depois da condenação exercera diversas profissões:
Foi marceneiro, moleiro, hospedeiro, deu aula de ábaco, etc. Ao contrário de
quinze anos antes, o medo o levou, pouco a pouco, a renegar quase tudo o que era
repetido pelo inquisidor. Porém, mais uma vez, mentira com dificuldade; apenas
depois de esta “raciocinando muito pouco” é que afirmou nunca ter “duvidado que
Cristo era Deus”. Em seguida, caiu em contradição, dizendo que “Cristo não
possuía o poder do pai, já que tinha corpo humano”. “Está uma confusão” –
objetaram-lhe. E Menocchio: “Eu não sei o que eu disse; eu sou ignorante”.
Humildemente afirmou que, quando dissera que os Evangelhos haviam sido escritos
por “padres e frades que estudaram”, estava se referindo aos evangelistas, “os
quais acredito que tenha estudado muito”. Procurava dizer tudo o que esperavam
que dissesse: “É verdade que os inquisidores e outras autoridades não querem
que nós saibamos o que eles sabem, porém é preciso que nos calemos”. Todavia,
em certos momentos não conseguia se conter: “Eu não acreditava que o paraíso
existisse porque não sabia onde estava”.
Em 2 de agosto a congregação do Santo
Ofício se reuniu: Menocchio foi declarado, por unanimidade, um “relapso”, um
reincidente. O processo terminara. Decidiu-se, no entanto, submeter o réu a
tortura, para arrancar-lhe o nome dos cúmplices. Isso aconteceu em 5 de agosto;
no dia anterior, a casa de Menocchio fora revistada e, na presença de
testemunhas, havia sido abertas todas as caixas e confiscados “todos os livros
e escritos”.
Resistir a pressões tão fortes era
impossível e depois de pouco tempo Menocchio foi executado. Temos certeza disso
pelo depoimento de um tal Donato Serotino, que em 16 de julho de 1601 disse ao
comissário do inquisidor do Friuli ter estado em Pordenone pouco depois de
haver “sido justiçado pelo Santo Ofício [...] o Scandella”, e ter se encontrado
com uma taverneira que lhe contara que “numa certa vila [...] um certo homem
chamado Marcato, ou Marco, dizia que, morto o corpo, a alma também morria.”
p192
Creio que esta obra seja de fundamental
importância para aqueles que desejam adquirir conhecimento, e saber mais da
Idade Media no século XVI, apartir do processo de um simples moleiro (quem faz
queijo) que através de leituras, e da reflexão da sua condição de camponês,
passa a desafiar a ordem estabelecida, tanto pela sociedade que privilegia os
nobres donos das terras em detrimento dos camponeses, como pela Igreja, que
possuía o poder de vida e morte, através do julgamento dos hereges nos
tribunais da inquisição.
A poderosa Igreja Católica medieval,
que no século XVI tinha seu poder desafiado pela Reforma religiosa, jamais
poderia aceitar o que o moleiro afirmava: segundo ele tudo que existia no
inicio era como se fosse um queijo, do qual nascia vermes, estes vermes seriam,
tudo o que veio do queijo, ou seja, tudo o existia até ali, como as pessoas, os
anjos, a terra, o céu, o inferno, Deus o Diabo, etc. Através da metáfora do
queijo e dos vermes, o personagem da historia mostra de forma simples, seu
pensamento de como teria originado-se todas as coisas. Negando que tenha sido
Deus que tenha feito tudo. Além de criticar os sacramentos, que ele considera
mercadorias inventadas pela Igreja para subjugar os homens, também criticava a
Santíssima Trindade, Cristo como sedo filho de Deus e a virgindade de Maria mãe
de Jesus.
É mesmo desafiador imaginar um camponês
rodeado de misticismo religioso, de credos populares, no final do século XVI,
fazer suposições e levantamentos sobre as “coisas da fé” de forma tão
eloqüente, e defende-las com tanta convicção mesmo sabendo que isso poderia lhe
custar a própria vida.
Fonte: GINZBURG, Carlos. O queijo
e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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