01 dezembro 2015

“Ipu dos antigos preconceitos”: conflitos de gênero e de classes. (1950 – 1970)

ELAINE RODRIGUES GALVÃO
(Texto adaptado a partir da Monografia de graduação em História, mesmo titulo, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, ano 2015)  

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa aborda as relações de gênero e de classe na cidade de Ipu durante os anos 1950-1970. Para tanto utilizo como fontes entrevistas orais, bem como documentos escritos, cedidos pelo professor Francisco de Assis Martins. Por meio desses documentos e das memórias das entrevistadas, é permitido analisar diversos temas como: os estigmas sociais, os espaços de segregação, a situação da mulher que trabalha para garantir à subsistência de sua família, o lazer, a sociabilidade, as relações amorosas, as formas de resistência, o “olhar” vigilante da Igreja, a conduta feminina, entre outros. Nessa pesquisa, portanto, foi imprescindível a metodologia de História Oral que possibilitou o acesso às experiências de mulheres, considerando o que fora vivenciado na cidade de Ipu, permitindo assim que se conhecesse memórias e histórias há muito marginalizadas.

Certamente, as nossas apreensões com o período transcorrido surgem a partir das nossas inquietações do tempo atual. Algumas histórias contadas como verídicas, quase nunca foram contestadas por nós ipuenses. Creio que como pesquisadora devo questionar as verdades estabelecidas, talvez tenha sido isso que me levou a pesquisar sobre o passado de minha cidade e sua sociedade.

Nessa pesquisa empenhamo-nos em esclarecer alguns aspectos sobre um período marcado pelas inúmeras formas de preconceitos sociais que seriam sócio-étnico-cultural, bem como depreender por meio de algumas narrativas a respeito de como se dava o comportamento das jovens pertencentes às classes sociais vigentes, que viveram na cidade de Ipu durante as décadas de 1950 a 1970.

Para tal proposta, será utilizada a História Oral, metodologia esta que há muito tempo estava destinada a fazer parte do meu trabalho monográfico, visto que trabalhar com narrativas orais sempre me foi bastante prazeroso desde a minha participação na produção do documentário “Estivado as Histórias de fé” apresentado no IV Visualidades em 2012.

A princípio, meu objeto de estudo ainda não se encontrava bem definido, tendo o mesmo sido substituído diversas vezes no decorrer do meu percurso acadêmico até ter minhas ideias finalmente esclarecidas a partir das orientações com a professora Viviane Prado Bezerra. A sua experiência esclareceu minhas ideias e fez com que definitivamente escolhesse essa temática como assunto do meu trabalho de conclusão de curso.

Essa pesquisa se propõe a problematizar as memórias e os discursos em torno das relações de gênero e de classe da sociedade ipuense, enfocando mulheres de elite e mulheres das classes populares, recuperando inúmeros aspectos de suas vidas e das suas relações sociais.

A escolha do título “Ipu dos antigos preconceitos” simboliza os antigos estimas vivenciados pelos moradores e moradoras da cidade de Ipu. Estes fortes preconceitos poderiam ser étnico, religioso, econômico, social e de gênero. Apesar de este período parecer longínquo para alguns, para outros já não aparenta estar tão longe assim.

Mesmo depois de ter passado todos esses anos, estas práticas ainda se fazem presentes nas memórias daqueles que vivenciaram ou praticaram alguma espécie de preconceito tão vigorosamente fixada em parte da sociedade ipuense.
Para tal fim utilizarei a metodologia da História oral buscando captar as diversas variações por trás dos discursos desses entrevistados cujas experiências perpassam toda a história vivenciada na cidade de Ipu, sendo sujeitos transformadores e transformados pela nova dinâmica empreendida à cidade pela diversificação e modernização de seu espaço social.

Foram então estudados alguns autores que discutem acerca da história das mulheres, bem como algumas monografias, dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre a cidade de Ipu, que em seus mais diversos âmbitos me possibilitaram a criação e elaboração deste trabalho monográfico.
A etapa seguinte dessa pesquisa foi a realização de entrevistas. Durante o mês de maio, no período de recesso da faculdade, apesar dos inúmeros contratempos, foram realizadas oito entrevistas, sendo que já haviam sido realizadas duas anteriormente, todas elas foram registradas em áudio e feitas com algumas mulheres pertencentes à elite ipuense e com mulheres pertencentes aos seguimentos populares, como também com um memorialista da cidade. Todos estes entrevistados foram de extrema importância visto que fizeram e ainda fazem parte da história da cidade de Ipu.

Os meses seguintes foram dedicados à análise detalhada do conteúdo das entrevistas, aspirando compreender melhor as nuances presentes nos relatos daqueles cujas memórias perpassam as mais diversas situações, buscando assim compreender um pouco mais sobre em que condições as mulheres viviam, o que faziam, se sofriam estigmas, bem como descobrir sobre o passado de nossa cidade como também os principais lugares irradiadores de preconceitos que acabaram se dissipando com o decorrer do tempo deixando apenas sinais da relevância que possuíram.
Com base nas narrativas analisadas ressalto algumas problemáticas que podem ser abordadas acerca do cotidiano dessas mulheres que, em certa medida apresentam muitos pontos em comum e algumas desigualdades, mostrando que as suas realidades se correspondem intensamente.

Dentre as entrevistas realizadas, escolhi sete, por ter identificado nelas informações e situações de grande relevância para minha problemática, como qual seria o comportamento feminino ideal para as mulheres da elite ipuense e das mulheres dos segmentos populares? Se sofriam preconceitos? Se haviam regras, quais seriam? Além de elencar as questões relativas aos relacionamentos amorosos, sociabilidade e lazer.
No primeiro capítulo discutiremos a respeito da história da mulher e sobre a construção da “identidade feminina” investida dos enunciados médicos, jurídicos e de controle social que carregavam olhares masculinos, com isso esta historiografia acabou por silenciar estas mulheres.
Os discursos normativos tinham um objetivo de reafirmar hierarquias socais, de gênero e de raça. A figura feminina foi caracterizando-se como um ser irracional, frágil e subordinado, contrapondo-se ao homem que era considerado um ser racional, forte e dominador.

Surgiram os movimentos feministas de “primeira” e “segunda onda” que se firmaram com um discurso de característica intelectual, político e filosófico, que além de preocuparem-se em romper com a opressão sofrida pelas mulheres, buscavam transformar toda a sociedade e lutavam para conquistar uma melhor qualidade de vida e uma sociedade mais igualitária.
Ainda no primeiro capítulo faremos um esboço a respeito da cidade de Ipu no início do século XX, esta que sofreu uma série de transformações no âmbito econômico e demográfico devido à chegada da estrada de ferro, considerada pela elite local um enorme avanço que classificaria a cidade e a sociedade como progressista.

Nomes como Euzébio de Sousa, Abílio Martins, José Osvaldo de Araújo, Chagas Pinto, Thomaz Corrêa, entre outros, foram os principais responsáveis por adotar práticas para configurar a cidade e a sociedade como progressista, para isso construíram espaços exclusivos para a sociabilidade de grupos restritos. Entre eles foram criados o Grêmio Ipuense (1912), o Gabinete de Leitura Ipuense (1919), o Centro Artístico Ipuense (1918) entre outros espaços que impulsionavam a civilização, a modernização e o progresso.

Devido á grande preocupação com a estética da cidade, foram criados diversos espaços com o objetivo de embelezar o município de Ipu, para deixá-lo com ares de civilização e progresso para impressionar seus residentes e visitantes. Como o Jardim de Iracema (1927), local preferido para o divertimento e lazer da elite ipuense. Lembrando que estes espaços foram criados apenas para o entretenimento dos mais abastados, sendo proibida a presença de populares nestes locais.

Cremos que no primeiro capítulo fora demonstrado como a cidade de Ipu foi transformada com a chegada da linha férrea, havendo assim diversas modificações nos espaços do município, segregando os lugares e inibindo a presença dos populares nestes locais destinados somente à elite da cidade, para que desse modo não houvesse misturas entre as classes sociais que formavam a sociedade ipuense.
No segundo capítulo, por meio das narrativas orais vamos demonstrar como viviam as mulheres da elite e as mulheres das classes populares, estas que revelam ter sofrido inúmeros preconceitos. Discutiremos a respeito de como tiveram as suas atitudes e comportamento vigiado e controlado não apenas pela Igreja Católica, como também pela própria sociedade.

As mulheres da elite passaram a desligar-se de sua clausura e começaram a frequentar inúmeros ambientes de lazer, como bailes e matinées no Grêmio Ipuense, os piqueniques na Bica e no Gangão, mas sempre acompanhadas, porque jamais poderiam ter a sua imagem associada à “mulher da rua”, vulgar e imoral, pois se não seriam condenadas pela sociedade.
Ainda no segundo capítulo discutiremos acerca da história das mulheres pertencentes às classes populares, estas que para garantir o sustento e a sobrevivência de sua família tiveram que adentrar o universo do trabalho e enfrentar os padrões da moralidade, exercendo inúmeras atividades fora do âmbito do lar e da família.

Através de suas narrativas analisaremos como se deu a presença da classe baixa feminina e quais foram os seus espaços de atuação. Estas que inúmeras vezes tiveram a sua imagem associada à imagem de “mulheres públicas” empenharam-se diariamente para conquistar respeito, dignidade e um meio de subsistência.
Nossas entrevistadas trouxeram para discussão a sua rotina diária de trabalho, as suas resistências, experiências e ainda compartilharam os seus conflitos por meio de suas histórias de vida. Por meio de seus relatos foi possível dar voz e visibilidade a estas mulheres que viveram por bastante tempo silenciadas.

CAPÍTULO I - REVISITANDO A CIDADE DE IPU E SEUS ANTIGOS PRECONCEITOS.
1.1- As Mulheres na Historiografia: lutas, resistências e conquistas.

Durante muito tempo as mulheres não tiveram sua história registrada pela historiografia, viveram esquecidas e submissas à dominação masculina. Para Simone de Beauvoir (DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres: As vozes do silêncio. In FREITAS, Marcos César de (Org.). Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000.p.217.) o historiador manteve-se por bastante tempo atrelado exclusivamente a história de um único sexo. Por conta disso, a história oficial veio sendo escrita sob a perspectiva masculina, produzindo um conteúdo limitado, representando apenas a imagem do homem como um sujeito único e universal.

Ao longo do período colonial brasileiro a figura feminina foi-se legitimando como um ser frágil e subordinado, características provenientes da Europa, onde a mulher ocupava lugar inferior nas relações sociais externas, como na própria estrutura familiar. No período patriarcal, costumava-se venerar a delicadeza e vulnerabilidade da mulher, os bons modos, os costumes, tudo deveria tornar as mulheres diferente dos homens, isso reforçaria a concepção de sexo forte, portando dominador. Conforme nos diz Freire:

No regime patriarcal, o homem tendia a transformar a mulher num ser diferente dele, criando jargões do tipo “sexo forte” e “sexo frágil”. No Brasil colonial, a diferenciação parecia estar em todas as esferas, desde o modo de se trajarem até nos tipos que se estabeleciam. A sociedade patriarcal [...] extremava essa diferenciação, criando um padrão duplo de moralidade, no qual o homem era livre e a mulher, um instrumento de satisfação sexual. Esse padrão duplo de moralidade permitia também ao homem desfrutar do convívio social, dava-lhe oportunidades de iniciativa, enquanto a mulher cuidava da casa, dedicava-se aos filhos e dava ordens às escravas. (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos:decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio-INL, 1977, p.93. apud MOURA, Erick Marcelo de. A mulher e a luta pela terra no Brasil: Uma Abordagem Sócio cultural da Constituição Simbólica no MST no que concerne ao estudo de Gênero. UFAL, sem ano. p.8.)

Desde a antiguidade que as mulheres são enfatizadas nas pesquisas sempre com preconceito e hierarquia de valores. Havia-se uma binaridade que tratava-se da diferenciação entre os dois sexos, e mais tarde com o humanismo essa distinção continuou não mais pela binaridade mas pela desqualificação da razão feminina. Diferentemente dos homens que eram considerados racionais e superiores, as mulheres estavam relacionadas ao conceito de natureza por estarem fortemente propensas à emoções, maternidade e paixões desmedidas que faziam com que dependessem da razão masculina para controlá-las. Segundo Humer e Rousseau (DEL PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de. Op.Cit.) era preciso que se fizessem com as mulheres tal e qual é feito com a natureza, seria necessário adestrá-las e dominá-las.

O movimento feminista se firmou como um discurso de caráter intelectual, filosófico e político que procura romper os padrões tradicionais, suprimindo a opressão suportada ao longo da história da humanidade pelas mulheres. Este movimento adquiriu bastante força, sendo endossado por todos que defendiam a equidade entre os sexos.

Segundo Joana Pedro (PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v.24, N.1, P.79, 2005), o movimento feminista inicial caracterizado como de “primeira onda” se desenvolveu no final do século XIX e centralizou-se no requerimento dos direitos políticos, econômicos e sociais como: poder votar e concorrer a cargos eletivos, ter direito a trabalho remunerado, a educação, a propriedade e a herança.

Mas só a partir de 1970, com o movimento chamado de “segunda onda”, que o tema emergiu por conta da manifestação do feminismo e suas lutas, marcadas pelo uma ampla variedade de reivindicações, associadas à antropologia, a história das mentalidades como também a história social. Segundo Del Priore (DEL PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de. Op.Cit.) este foi um período que as feministas fizeram a história da mulher, antes mesmo dos historiadores. Diante disso, as universidades passaram dar certa importância à temática e criaram grupos de pesquisa e laboratórios para se debater sobre o assunto e impulsionaram a elaboração de trabalhos e monografias.

Percebe-se que o movimento feminista preocupava-se não somente em transformar a situação das mulheres, mas a sociedade como um todo, e também lutavam para conseguir melhor qualidade de vida, realização pessoal e uma sociedade mais humana. A década de 1970 foi um período em que as mulheres puderam assumir o controle de sua vida reprodutiva, por conta da propagação da pílula anticoncepcional, e ampliaram sua participação na educação, no mercado de trabalho e na política. Mas houveram obstáculos religiosos contra o método contraceptivo. E por muitas vezes a mulher foi marginalizada por assumir o papel de chefe de família, a educação dos filhos e sua subsistência dificultando assim a sua realização pessoal.

Havia-se uma grande dificuldade em fazer uma história das mulheres. Já nos anos 1980 após uma grande produção de estudos sobre a mulher, os historiadores se indagaram sobre se teriam ou não modificado a história tradicional ou renovado seus métodos. Segundo Del Priore (DEL PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de. Op.Cit) havia-se uma necessidade de se fazer uma história diferente que levasse em conta a experiência pessoal e subjetiva, assim como as atividades públicas e políticas. Historiadoras americanas sugeriram criar uma nova história “tout court”. Mas constatava-se que mesmo tendo revelado histórias nunca vista sobre as mulheres como: as lutas femininas ou o papel da mulher trabalhadora, mãe e esposa, estava-se condenado a fazer uma história paralela.

Enquanto não era feita a história das mulheres, o movimento operário já tinha o seu espaço e tornava-se um movimento de excepcional importância para a história econômica e social, e enquanto isso as mulheres não tinham papel social definido na historiografia. A não ser o de mantenedora do lar, educadora dos filhos e de esposa dedicada ao marido.

O que também dificultava ao se fazer a história das mulheres, era a ausência de fontes sobre elas, posto que não nos deixavam nenhum escrito ou oficial sobre suas vivências no passado. As mulheres não participavam dos fatos históricos, enquanto os homens transmitiam sua herança e faziam-na perpetuar. E isso nos faz admitir que a sua história só começava quando quebravam barreiras e se manifestavam levando os historiadores a buscar uma explicação para a sua aflição e inquietação. As historiadoras feministas afirmavam que a história surgia dos padrões masculinos e que só discorriam sobre a história dos homens e de suas leis.

A história das humilhações e submissões pelas quais as mulheres estiveram sujeitas ao longo desses anos passaram a interessara maioria dos historiadores. Estes passaram a enxergar a figura feminina e tiraram-lhes do silêncio e do esquecimento a qual estavam submetidas, desvendaram os contínuos casos de lutas e as suas constantes resistências. Com isso a história da mulher passou a obter relevância e começou a se fazer presente nas bibliotecas e livrarias, mas ainda assim tinham seu espaço controlado, sempre associado a questões sociais, sexuais e religiosas.

Enquanto os historiadores da Europa e dos Estados Unidos levantavam questionamentos e se interessavam em saber mais sobre os mecanismos familiares, sociais e políticos que impulsionaram os homens a subordinarem, a reprimirem e forjarem uma visão secundária das mulheres.
No Brasil, os estudos sobre a figura feminina tiveram bastantes dificuldades em encontrar um espaço em nossas universidades. As pesquisas sobre este assunto eram escassas, com pouca circulação e eram fornecidas a um número reduzido de pessoas. Os trabalhos que abordavam esta temática discorriam mais a respeito da história da família, do casamento e da sexualidade do que acerca da mulher. Segundo Del Priore (Idem), a partir 1978 a Fundação Carlos Chagas foi uma das poucas que proporcionou aos seus pesquisadores apoio a muitas pesquisas envolvendo as mulheres.

O que podemos considerar de grande relevância para o avanço da história das mulheres no Brasil, é o fato dela ter vivenciado uma revolução documental, pela redescoberta da pesquisa em arquivos por temáticas que questionavam-se as mulheres, a família ou a demografia. A Nova História na Europa também colocou em questão a incumbência de se refletir sobre a sexualidade, a criminalidade e os desvios.

Os historiadores brasileiros passaram a buscar nos arquivos práticas contrarias a normalidade, passaram a extrair deles a história dos subalternos. Surgiu-se então inúmeras teses, artigos e livros que tratavam a história das mulheres pobres, das prostitutas, das concubinas, das mal faladas, das defloradas, das escravas, das forras, das loucas, entre outras. Nos arquivos policiais e eclesiásticos percebe-se toda a humilhação e violência pelas quais sofreram através dos interrogatórios impostos pelas autoridades. E com isso procurava-se compreender a perseguição praticada por estas instituições, conforme observado por Maria Odila Dias, em sua obra Quotidiano e poder:

Em Lisboa, a Câmara pagava uma mulher para castigar com açoites públicos as regateiras e vendedoras que usassem de bradar e gritar impropérios nas ruas e mercados de Lisboa. Nos processos policiais da cidade de São Paulo, no século passado, não faltam indícios de mulheres bravas, revoltadas, que gritavam em linguagem de baixo calão. (DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder em S. Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. P.21.)

Além dos documentos oficiais, de cunho judiciais ou notariais, a história das mulheres beneficiou-se das fontes literárias que seriam os romances, biografias, jornais e revistas que foram responsáveis por propagar um amplo campo de pesquisas que concedia esmiuçar inúmeros pontos de vista a respeito da vida social.
Através das revistas feministas foi possível fazer uma releitura a respeito da imagem da mulher controlada que seguiam os padrões conservadores impostos pela Igreja e pelo Estado. Em suas páginas retratavam a mulher e mãe ideal a rainha do lar.

Outro método utilizado pelos historiadores para se ouvir as vozes dos subalternos seria através da História Oral. Por meio dessa metodologia foi possível ouvir suas vozes que por muito tempo foram silenciadas. Esta seria a possibilidade de se construir uma identidade feminina, libertando-a da opressão.

No início dos anos 90 um novo conceito chamado “gênero” chega ao Brasil. Desde os anos 70 que historiadoras americanas viram a necessidade de se estudar e compreender os grupos de gênero, seus sentidos e significados.

As compreensões dos conceitos relativos ao gênero são inexistentes em boa parte das teorias sociais desenvolvidas a partir do século XVIII até o começo do século XX. De acordo com Scott algumas dessas teorias sistematizaram a sua fundamentação em conformidade “com a oposição masculino/feminino, outras reconheceram uma “questão feminina”, outras ainda preocuparam-se com a formação da identidade sexual subjetiva, mas o gênero, como o meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos, não tinha aparecido” (SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.Traduzido por Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila a partir do original inglês (SCOTT, J. W.. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press. 1989).

E esta ausência explicaria em parte o impasse que as feministas contemporâneas tiveram para incorporar o termo gênero em grupos teóricos já existentes e em sugestionar adeptos de outras escolas teóricas que o gênero faz parte da sua linguagem. O conceito de gênero figura os intentos portados pelas feministas contemporâneas para pleitear um campo de definição, para reiterar a cerca do caráter inapropriado das teorias existentes em elucidar disparidades insistentes entre homens e mulheres.
Outro aspecto salientado por Scott é que a categoria gênero indica explicações a partir da diferença sexual e ainda insere o conceito de que a desigualdade entre homens e mulheres é construída por meio da atribuição, entre os dois sexos, de papéis distintos e hierarquizados. A sua elucidação a respeito de gênero constitui-se de alguns fundamentos que conforme a autora estão ligados entre si, mas deveriam ser distintas na análise:

O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (Idem.)

Segundo Joan Scott, “reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra definições de história e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância no passado)” (SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História – Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 75. Apud KARAWEJCZYK, Mônica. Mulheres, Modernidade e Sufrágio: Uma aproximação possível. PUCRS, 2007, p.2.)

 Desse modo, temos como objetivo dar visibilidade a história contada pelas mulheres ipuenses, passando a conhecê-las melhor e resgatar a participação das mesmas nos diversos espaços da cidade de Ipu, pensar qual seria o comportamento ideal se sofriam preconceitos, se haviam regras, quais seriam.
Nessa pesquisa buscamos elucidar alguns aspectos de um passado marcado pelas diversas formas de preconceitos sociais em relação ao comportamento das mulheres que viveram sua juventude na cidade de Ipu durante as décadas de 1950 a 1970. Passado esse que, embora esteja distante dos livros de história e dos documentos oficiais, ainda encontra-se muito vivo na memória das pessoas que, por esses tempos, em Ipu se encontravam, sendo essas praticantes de alguma modalidade de preconceito ou alvos dessa prática intransigente e tão fortemente engessada no seio da sociedade.
Assim sendo a Metodologia da História Oral torna-se meio indispensável para se aproximar das memórias das pessoas e conhecer seu contexto histórico, uma vez que, como coloca Thompson, “a história oral é uma história construída em torno de pessoas [...]”, dando a esses saberes a importância histórica intrínseca a eles e lhes dando novas perspectivas, lembrando que “ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação” (THOMPSON, Paul. (1992). A voz do passado: História Oral. Tradução de: Lolio Lourenço de Oliveira. Rio de janeiro: Paz e Terra, p. 44, 1992.)

A História Oral desponta então como sendo a principal estrada a ser trilhada no decurso dessa pesquisa, fornecendo não só possíveis soluções às problemáticas levantadas a priori, como também contribuindo com novos olhares que poderão vir a serem lançados à medida que essas narrativas orais impregnadas de experiências forem sendo trazidas à tona.

Esses relatos ajudarão, inclusive, a desvendar novos lugares de memória que foram irradiadores de preconceito na cidade de Ipu, bem como a fornecer o aporte necessário para tratar da importância ensejada pelos já englobados dentro dos arranjos e objetivos dessa pesquisa.

O município de Ipu vivenciou nas décadas de 1950 a 1970 fortes preconceitos de origens múltiplas, podendo ser étnicas, quando pensamos na segregação sofrida por pessoas negras; social, pela existência de uma elite aristocrática que discriminava o restante da sociedade; religioso, esse que se constituía nos mandos e desmandos do sacerdote local e, por fim, o qual irei me aprofundar, o preconceito de gênero, herança muito forte de uma época onde o homem era o chefe da casa e a mulher deveria sempre obedecer, resquício esse de uma sociedade patriarcal mantida pelos coronéis que representavam a moral e a ordem na cidade de Ipu.
Assim sendo, compreenderemos o contexto do surgimento destes lugares de memória, bem como o motivo que os levou a receber uma conotação diferente daquela para eles proposta, recebendo ares preconceituosos.
Ademais discutiremos a dualidade existente entre o Grêmio Recreativo Ipuense e o Clube Artista, bem como a dicotomia presenciada entre a elite aristocrática e os artistas, artesãos e trabalhadores em geral, principal público de cada um desses espaços, respectivamente. Mas antes façamos uma pausa e falemos um pouco sobre a cidade de Ipu no início do século XX.

1.2- “Ipu em Foco”: o Progresso e a Segregação dos Espaços de Lazer.

Com a Chegada da estrada de ferro que ligou Ipu as cidades de Sobral, Camocim e Crateús em 1894, segundo Iramar Miranda Barros, a cidade passou por uma série de transformações no âmbito econômico pelo significativo crescimento do comércio local e demográfico com o crescimento populacional, a formação de novos bairros em torno dos trilhos e a “segregação de alguns espaços” (BARROS, Antonio Iramar M. Ipu nos trilhos do meretrício: Intelectualidade e Controle numa Sociedade em Formação. (1894 – 1930). 2009. 127 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual do Ceará – UECE, Fortaleza. 2009.(Em 15 anos (1900 a 1915), mostra o historiador Antonio Vitorino F. Filho que o crescimento populacional da cidade girou em torno de 50%. Ele atribui isso a partir da chegada da ferrovia, uma vez que antes dela o crescimento populacional não era significativo. Ver: FARIAS FILHO, Antonio Vitorino. O discurso do progresso e o desejo por uma outra cidade: imposição e conflito em Ipu-CE, (1894-1930). Dissertação de Mestrado, Fortaleza-CE: UECE, 2009. São os casos do Bairro Pereiros e Corte. Este último leva este nome porque as obras de construção da ferrovia fizeram um corte em um morro para o assentamento dos trilhos. As casas do bairro passam ser construído nos dois lados cortados, margeando, portanto, os trilhos.)
Com o crescimento da cidade, uma parte da população enriquecida por meio deste avanço, agora considerada elitista passa a enunciar que a cidade de Ipu estava alcançando o tão almejado progresso. Estas figuras passaram a adotar práticas para configurar a cidade e a sociedade como progressista, para isso foram construídos espaços exclusivos para a sociabilidade de grupos restritos.
De acordo com análise realizada pelo historiador local Antonio Vitorino Farias Filho, a cidade de Ipu vai aos poucos se modernizando. Foram fundados diversos espaços destinados a socialização dos aristocratas locais como: o Grêmio Ipuense (1912) mais tarde Grêmio Ipuense Sociedade Recreativa Dançante (1924), o Gabinete de Leitura Ipuense (1919), o Centro Artístico Ipuense (1918) a Euterpe Ipuense entre outros espaços que fomentavam a civilização, a modernização e o progresso.

Os principais responsáveis por fundá-los foram homens considerados ilustres e detentores do saber como: Euzébio de Sousa, Abílio Martins, Augusto Passos, Leonardo Mota, José Osvaldo de Araújo, Chagas Pinto, Thomaz Corrêa, Francisco Araújo, José Aragão e Manuel Dias estes homens eram fascinados pelo progresso.

É de grande relevância falarmos que estas associações estavam abertas apenas para o ingresso dos aristocratas escolhidos, os mesmos se diferenciavam pelo comportamento, pelos paramentos e pelos argumentos, realizavam festas suntuosas, saraus e soirées que seguiam um protocolo de etiquetas e de boa convivência e sempre proporcionavam aos seus associados ares de modernização.

Estes homens atribuíam para si a missão de remodelar a cidade em um local novo e habitável que fosse dotado de novos espaços que o impulsionavam para o desenvolvimento. Os mesmos interferiam na vida da sociedade ipuense, consideravam-se guardiões em defesa da moral e dos bons costumes, práticas consideradas imorais seriam um retrocesso para a referida sociedade.

Havia-se uma preocupação com a estética e a higienização da cidade, seria necessário modernizar prédios e casas e os seus diversos espaços, como construir amplas avenidas, ruas limpas e praças arborizadas. Estes locais foram criados para embelezar e aformosear o município, para deixá-lo com ares de civilização e modernização para assim impressionar seus moradores e principalmente seus visitantes, como também foram criados por conta da necessidade de se fundar lugares de socialização restritos aos grupos abastados da cidade de Ipu. Desde o planejamento da criação destes espaços, notamos que já foram grandes ícones de irradiação de preconceitos.

Segundo Sebastião Rogério Ponte, a nossa capital Fortaleza desde 1860 passou por “um processo de remodelação sócio-urbana” (PONTE, Sebastião Rogério. “A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle”. In: Simone de Sousa (org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.) E esse processo significou a inserção da capital cearense no contexto da belle époque que seria um processo civilizatório, de caráter europeizador, favorecido por suas elites políticas, econômicas e intelectuais.

Essa remodelação foi impulsionada pelo crescimento da exportação algodoeira, que deu-se por conta da descontinuação provisória da demanda do algodão norte-americano para a Europa, causada pela eclosão da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, naquele período.
O que podemos verificar diante disso é que a cidade de Ipu passou a ter um crescimento econômico significativo a partir do momento em que a ferrovia, em 1894, passou a dinamizar ainda mais a produção de algodão que já se fazia presente na pequena cidade desde meados do século XIX. Com a chegada da ferrovia, a cidade de Ipu passou a ser uma das maiores e ter os principais exportadores de algodão da região. Vejamos o que Antonio Vitorino nos diz a respeito disso em sua tese:

Em 1921, segundo dados dos “assentamentos da Estrada de Ferro”, apresentados pelo Jornal Correio do Norte, em 1921, Ipu e Serra da Mata eram os dois maiores exportadores de algodão no norte do Ceará. A primeira cidade teria exportado 298 toneladas de algodão beneficiado “não se falando na grande porção de algodão em rama, que a casa J. Lourenço, desta cidade enviou para Ipueiras onde possui uma fábrica de descaroçar e que dáli foi remettida para Camocim”. (FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade Ipu-Ce: Verso e Reverso de uma Cidade nas Primeiras Décadas do Século XX. 2013. Tese de Doutorado em História _ Universidade Federal de Pernambuco. Recife, p.53.)

Sebastião Ponte (PONTE, Sebastião Rogério. Op Cit.) discorre que novos princípios e padrões passaram a serem difundidos em Fortaleza, normas, medidas e reformas procuravam ordená-las ao modelo europeu de modernização urbana. Ainda no final do século XIX, estas ambições por modernização passaram a se materializar, por meio da construção da Santa Casa de Misericórdia que zelariam pela saúde pública, a edificação de um novo cemitério, o São João Batista, em local mais afastado, a reforma no plano urbanístico da cidade que seria o aumento da extensão das ruas até os subúrbios, a correção de becos e vias sinuosas entre outras.
No início do século XX, após a chegada da estrada de ferro, foi à cidade de Ipu, que impulsionada pelas elites e intelectuais passou por um conjunto significativo de reformas urbanas capaz de ordenar a cidade aos códigos de civilização e modernização.
Segundo vimos na tese de Antonio Vitorino seria necessário remodelar o mercado público, “deveria levar em conta, ainda, o fato de torná-lo mais higiênico, com o objetivo de prevenir “miasmas” causadores de doenças” (Idem, p.71.), bem como dever-se-ia construir uma nova cadeia pública e um novo cemitério mais afastados do centro da cidade, como também edificar uma nova Igreja Matriz pois a que localizava-se no quadro da Igrejinha ou na praça São Sebastião que ainda hoje continua de pé e que foi construída na década de 1880 era apresentada como inferior ao progresso local.

Em 1927 foi inaugurado o Jardim de Iracema que foi projetado pelo arquiteto Francisco Quixadá e idealizado pelo Sr. Thomaz de Aquino Correia, para ele “deveria ser construída no Ipu, uma Avenida para embelezamento da cidade e que deveria ser ponto preferido pelas famílias da terra, para seus entretenimentos domingueiros e dias de gala”. (Jornal dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Dezembro/95 – Janeiro/96.).

O Jardim de Iracema só poderia ser frequentado pela “fina flor” da sociedade, havia em volta ao Jardim “um gradil para não dar acesso àquele recinto a certos elementos que poderiam estragar a relva e retirar as flores” (Idem.) Desta forma os mesmos esclareciam que os populares não eram bem vindos.
Segundo o depoimento da Srª. Maria Cajão ao professor e historiador Petrônio Lima, o Jardim de Iracema não poderia ser frequentado por pessoas que não faziam parte da sociedade, estas quando contrariavam a ordem do Sr. Thomaz Correia eram expulsas do recinto forçadamente:

Thomaz Corrêa [...].[...] ficava dentro, vigiando, porque era muito intransigente, tá entendendo?! Aquelas mocinhas que não freqüentava a sociedade... Pegava no Bracim e botava pra fora e fechava duma veiz (pausa). Tinha quermesse dentro né! Tudo isso. A música tocava a gente também dançava... O que é que tinha? Não tinha nada de mais, era uma beleza! Tudo era bonito! Tá entendendo? E o rei butava as pobrezinha das pirão; chamava as “pirão (pausa) “as pirão fria” (...) pois seu Thomaz Corrêa ia atrais e bota pra fora...(LIMA, Francisco Petrônio Peres. “Iracema”: Trilhas e Memórias de um mito. Da literatura ao Espaço Urbano de Ipu. 2005. 46 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Estadual Vale do Acaraú. Sobral, p. 34. )

O belíssimo Jardim de Iracema foi edificado em 1927, e segundo alguns dos nossos entrevistados, este ambiente foi palco de inúmeras práticas preconceituosas para com a população menos favorecida, práticas estas que se perpetuaram além dos “anos dourados de Ipu”. Anos estes que para aqueles que fizeram parte da elite ipuense, foi marcado por diversos entretenimentos no referido espaço, cenário destas condutas intolerantes.

Em um artigo do Jornal dos Tabajaras - Ed. 95/96, um ipuense rememora o período em que o Jardim de Iracema além de ter sido um belo espaço de lazer e divertimento para “sociedade” ipuense, ainda marcou os “anos dourados de Ipu” com as suas retretas aos domingos com a banda de música do Maestro Raimundo Vale, ao som de valsas, Fox, boleros, tango entre outras, estas informações também se encontram na memória dos nossos entrevistados.

Era a época dos romances platônicos, onde “a juventude ipuense se deleitava e os casais de namorados num banco de jardim, trocavam juras de amor eterno” (Jornal dos tabajaras. Ipu, p.3, Edição Dezembro/95- Janeiro/96). Havia ainda no Coreto serestas, ao som do violão, cavaquinho, flauta, clarinete e “na voz bonita e saudosa do músico e compositor Abílio Coelho”. (Idem)

Mas como já foram ressaltados anteriormente estes eram locais reservados apenas para a alta sociedade. De acordo com o depoimento da Srª. Maria Cajão, percebemos que haviam fortes preconceitos enraizados na sociedade ipuense desde a criação destes espaços no início do século XX. Estes locais foram criados apenas para o divertimento da elite para aqueles que ambicionavam o tão sonhado progresso, deixando de fora destes ambientes os pobres, considerados desqualificados.

As empregadas domésticas, as lavadeiras, as cozinheiras, as passadeiras, ou seja, as mulheres de baixa condição social que residiam na cidade de Ipu, só poderiam frequentar outros espaços um pouco afastados para que não tivessem contato com as senhoras e senhoritas da sociedade ipuense. A Praça 26 de agosto inaugurada no dia do centenário de Ipu em 26 de agosto de 1940 foi um dos locais frequentados por estas mulheres que eram vulgarmente chamadas de “pirão frio”. Segundo Francisco de Assis Martins:

Quem passear no jardim de Iracema não pode passear no 26 de Agosto, quem era que ia passear na 26 de agosto eram as nossas funcionárias, as nossas domésticas de casa que hoje nos ajudam, as nossas secretárias que na época eram chamadas de “pirão frio”, então resultado disso até uma prostituta morreu ali naquela praça, será por obra do destino? Que eu acredito q tenha sido ou por coincidência, uma prostituta chamada de Braulina morreu na época ali admite-se ninguém sabia porque na época não era conhecido, morreu ali com a rede armada do lado e do outro lado amanheceu morta no chão...admite-se que tenha sido de AIDS porque ela definhou muito.” (Entrevista realizada no dia dez de outubro de 2012 com o ipuense e ex-professor, formado em Ciências Físicas e Biológicas pela UFC e Memorialista Francisco de Assis Martins, de setenta e um anos, na residência do mesmo no bairro Reino de França em Ipu – CE.)

Até meados da década de 1960 as “pirão frio” ainda sofriam preconceitos, tendo como ponto de encontro a Praça 26 de Agosto. Pela fala de nosso entrevistado observa-se que esta, mesmo com a quebra de algumas barreiras continua sendo alvo de alguns estigmas ao longo dos anos, principalmente por ter se tornado abrigo a prostituta Braulina que admite-se ter falecido de AIDS naquele espaço no início dos anos de 1980.

A referida doença veio a ter casos diagnosticados no Brasil justamente a partir da década de 1980. Pondo-nos em dúvida se Braulina faleceu de AIDS, ou talvez de outra doença não diagnosticada pelos médicos da época, devido a falta de recursos apropriados para a análise de sua enfermidade.

É certo que na época haviam doenças sexualmente transmissíveis que segundo Célio Marrocos Aragão “eram a blenarrogia, o cancro duro ou mole, a temível “mula”, que na classificação do médico italiano Vucetti era o linfoglanuloma venéreo, todas curáveis”, (Jornal dos tabajaras. Ipu, p.7, Edição Outubro/97.) e inofensivas em relação a temível AIDS.

Houve-se uma necessidade de se construir uma sede onde funcionassem os bailes, as matineés, os saraus, os encontros exclusivamente restritos para as famílias abastadas. Conforme é ressaltado por Antonio Vitorino, no início do século XX por conta da inexistência destes Clubes dado o fato de que o Grêmio Ipuense ainda não possuía sede própria, os diretores de mês faziam suntuosas festas particulares nos salões de suas residências de dois em dois meses, mas a sociedade deveria progredir e para isso seriam necessárias a criação de novos espaços modernos destinados para o divertimento do “escol social”.

O Grêmio Recreativo Ipuense foi definitivamente instalado com sede própria, em 12 de outubro de 1924 e organizado como uma sociedade composta pelos homens e mulheres abastados de Ipu. Tinha como objetivo: “congregar as famílias dos seus sócios num meio civilizado. Promover bailes, festas literárias, comemorações cívicas, reuniões e outros divertimentos congêneres”. (Jornal dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/Março/96.)

Os suntuosos bailes realizados nos salões do Grêmio Ipuense, fazem parte da memória daqueles que vivenciaram, presenciaram, ouviram falar e dos que foram sócios da instituição. As memórias dos depoentes reafirmam ainda mais que os sócios eram escolhidos pela diretoria do Grêmio, deveriam além de pertencer à elite ipuense, serem pessoas de estima, civilizadas, e de boa conduta.
Antonio Vitorino Farias Filho reafirma em sua tese que “para fazer parte da diretoria daquela agremiação e ser aceito como sócio era necessário pertencer a “alta sociedade” da época, “ter bons modos”, uma “moral civilizada” e comungar com os ideais modernos e progressistas de seus fundadores, ser indicado por um ou mais sócios efetivos e aceito em votação pela maioria da diretoria em uma de suas sessões ordinárias”. (Jornal dos tabajaras. Ipu, p.7, Edição Outubro/97.)

Os saraus, os bailes entre outros divertimentos do Grêmio realizados restritamente para alta sociedade ipuense, era um local que cooperava para os enlaces matrimoniais dentro de uma mesma classe. Como foram os casos de Francisco Quixadá e de Sephira Natalia de Carvalho, de Omar Coelho e Marietta Alverne, e de Cursino de Mello e Francisca de Mello. Todas estas uniões datam de 1913 (quando o Grêmio Ipuense ainda não possuía sede própria), mas houveram muitos outros ao passar dos anos que conheceram seus parceiros nos salões do Grêmio.

Havia baile sempre uma vez por mês, e além dele o Grêmio realizava ainda os “saraus extraordinários”, que seriam os bailes realizados “em comemoração as datas festivas e cívicas, como o 7 de setembro, o 20 de janeiro, dia de São Sebastião e padroeiro da cidade, o 11 de julho, aniversário da batalha de Riachuelo”. (Idem, p.110.)

Os bailes realizados no Grêmio Ipuense eram sempre feitos com muito luxo e pompa, seus eventos eram geralmente decorados pelas esposas e filhas dos sócios e havia tudo de mais moderno naquele período, seus frequentadores vestiam a última moda, as moças preocupavam-se sempre em fazer uma roupa nova, caso a festa ocorresse em dois dias consecutivos, seriam dois trajes exclusivos. Era um local apropriado “a uma sociabilidade restrita, próprio para a exteriorização de riquezas”. (Ibidem, p. 112.)

Os bailes do Grêmio eram bastante aguardados pelos jovens da cidade filhos dos associados, que viam naquele momento uma oportunidade para paquerar e dançar com seus futuros pretendentes. Em uma fotografia da época (Imagens na monografia na integra) observasse como os frequentadores do Grêmio buscavam vestir-se bem, para assim expor sua elegância, bons modos e riqueza, típicos da elite da época.

Ao discorrer sobre estruturas sociais hierarquizadas, as fotografias nos fornecem importantes evidencias sobre a constituição da sociedade ipuense. Os aspectos presentes nos fazem levar em consideração que tudo que ali se encerra é proposital e traz um significado que não pode ser negligenciado, como coloca Maurício Lissovsky: “[...] a distribuição dos objetos no espaço não é gratuita, tudo se posiciona no espaço, devendo serem levadas em consideração as relações entre os objetos. A orientação dos corpos também não é gratuita, eles traduzem orientações: linhas de autoridade, de subordinação, de hierarquia, de disciplina.” (LISSOVSKY, Maurício. "A fotografia como documento histórico", in Fotografia: Ciclo de Palestras sobre fotografias. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1983. p. 117-126.)

Como já foi dito anteriormente o Grêmio Recreativo Ipuense, o Jardim de Iracema, o Gabinete de Leitura Ipuense, entre outros espaços, foram criados por homens distintos que tinham a mente progressista. Esses locais trariam a civilização e estavam abertos apenas ao ingresso dos mais abastados.
São inúmeras as memórias dos que presenciaram e sofreram algum tipo de preconceito nesses espaços. Era inadmissível a entrada de pessoas negras e pobres nestes estabelecimentos, e quando alguém insistia em adentrar nestes locais eram postos para fora forçadamente. Francisco de Assis Martins relatou um caso ocorrido no Grêmio Ipuense entre as décadas de 1950 e 1960:

Zezé Carlos, Antonio Olimpio e Raimundo Salú, aquelas três pessoas por serem de uma pele escura queriam ir a festa do dia 20 de janeiro que era a maior festa dançante que tinha lá e não poderiam entrar porque eram caminhoneiros trabalhavam em caminhão carregando pessoas pra São Paulo, pra Brasília, pro Rio de Janeiro naquela época, nos chamados pau de arara não podiam dançar lá no grêmio, e num certo momento lá , falaram com o Vicente Belém Rocha que era uma pessoa muito acessível de uma mente muito aberta, muito livre... ele disse, quando for entre assim 9:30 pras 10 horas você vai ...quando for 10hs vocês vão lá. E foram lá entraram e começaram a dançar, quando a diretoria deu que eles estavam lá dentro começou uma parte aceitando a permanência deles e outras não, (eu aceito você não aceita, bota pra fora tira pra fora) ... e começaram a derrubar mesa, derrubar cadeira, quebrar garrafa, quebrar copo e aquela confusão danada colocaram pra fora, o Zezé mais sensato saiu logo e o Antonio Olimpio vamo embora Zezé vamo pro Artista e o Raimundo Salú não saiu... e o Raimundo Salú ficou. (Entrevista realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op. Cit.)

Vejamos no depoimento de Francisco de Assis Martins que havia um forte preconceito com as pessoas de cor e de procedência humilde como os caminhoneiros, carpinteiros, pedreiros, entre outros. Os mesmos eram proibidos de frequentar o Grêmio Ipuense e mesmo quando tinham o apoio de um dos Diretores do referido Clube eram postos para fora, pois boa parte da elite não queria se misturar com aquela gente pobre.
Sentindo-se atingidos por um enorme preconceito, um grupo de operários que não tinham acesso ao Grêmio Ipuense resolveram criar um clube que fornecesse divertimento e lazer para suas famílias. No “dia 29 de junho de 1918, durante uma reunião na residência do Senhor Francisco das Chagas Paz foi criado o Clube Artístico Ipuense, funcionando temporariamente numa casa alugada situada a rua Pe. Mororó de 1935 a 1942.” (MARTINS, Francisco de Assis. Centro Artístico Ipuense. Disponível em: http://professorfranciscomello.blogspot.com.br/2010/05/centro-artistico-ipuense.html. Acesso em 29/05/2015.)

Em entrevista o ex-professor e memorialista Francisco de Assis Martins relatou que as mulheres e homens da elite frequentavam o Grêmio Recreativo Ipuense e as mulheres e homens que pertenciam as camadas populares frequentavam o Clube Artista Ipuense, este último criado para receber aqueles a quem se negava entrada no primeiro.

Os homens que frequentavam o Grêmio Ipuense poderiam adentrar no Clube Artista, mas as moças da alta sociedade não poderiam comparecer naquele ambiente de segunda classe se não eram “mal vistas”. Presenciamos então um preconceito com os indivíduos de classes sociais menos favorecidas havendo assim uma espécie de segregação sócio-étnico-cultural e certo machismo em relação às mulheres pertencentes ao “escol social”. Vejamos o relato de Francisco de Assis Martins:

No Grêmio Ipuense, por exemplo, você dançava no Grêmio Ipuense, eu dançava no Grêmio Ipuense, eu homem podia ir lá no clube artista e dançar, mas as moças não podiam ir lá no clube artista, por que era uma sociedade de segunda classe, que miseravelmente chamavam de segunda classe, os artistas, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, os barbeiros, aqueles bodegueiros da época e outros tantos similares e criou-se então aquele problema social dentro do Ipu quem dança no Artista não dança no Grêmio e vice-versa. (Entrevista realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op. Cit.)

Esses dois clubes são apenas uma pequena faísca dentre as chamas do preconceito social na cidade de Ipu, ainda buscamos aprofundar sobre outro marcante espaço de segregação que foi o Paredão edificado em 1942 pelo então interventor Dr. Humberto Aragão que, embora tenha sido construído com o intuito primeiro de ornamentar a cidade acabou sendo alvo de preconceito por ter sido, por vezes, utilizado pelos integrantes das classes menos abastadas para seus encontros amorosos. Vejamos o que Zezé do Vale um dos mais importantes e conhecidos músicos e compositores ipuenses, nos fala em sua canção a respeito do Paredão:

Se quer falar comigo
Procure outro ambiente
Mas ali no paredão
O padre briga com a gente.
É muito feio uma moça enxovalhada,
Você não casa comigo
E eu faço moça falada...
(MARTINS, Francisco de Assis. Centro Artístico Ipuense. Disponível em: http://professorfranciscomello.blogspot.com.br/2010/05/centro-artistico-ipuense.html. Acesso em 29/05/2015.)

Zezé do Vale, música Paredão.
Os versos acima citados formam a estrofe inicial da música “Paredão”, de autoria do músico e poeta ipuense José Cecílio do Vale, popularmente conhecido como Zezé do Vale, o mesmo retrata em sua música os antigos costumes, comportamentos, e preconceitos que marcaram a sociedade ipuense desde a edificação do Paredão.

O Paredão era um muro extenso e elegante de aparência rústica, “constituído de escadarias, caramanchões, vasos com diferentes plantas ornamentais e uns postes com globos luminosos ostentando cada vez mais o ambiente”. (MARTINS, Francisco de Assis. Ipu dos Antigos Preconceitos. Ipu, 21 de março de 2015.p.1.) Localizado no centro da cidade, próximo do Jardim Iracema, do Grêmio Ipuense, dos famosos Bar Cruzeiro e do Iraciara Bar. Era o ponto favorito da juventude ipuense que nas noites, principalmente dos finais de semana, concentravam-se no Jardim de Iracema dando voltas ao seu redor e ficavam subindo e descendo incessantemente os batentes entre a praça e os bares.

O Paredão era um ambiente pouco iluminado, e isso atraia os jovens casais de namorados que procuravam um local mais reservado para namorarem um pouco mais colados e se acariciarem, já que não eram permitidos naquele tempo se beijarem publicamente. “Difícil era se convencer a namorada ficar no paredão” (Jornal dos Tabajaras. Resgatando Memórias. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/98.) Naquela época os preconceitos eram ainda mais rígidos e qualquer desvio poderia acabar com reputação e a honra de uma moça. “Por isso moça que se prezava não corria tamanho risco e quando assim procedia se expunha ao ridículo de ser considerada moça falada e geralmente era censurada pelo padre no sermão das missas domingueiras”. (Idem.)

Que o Paredão foi um espaço marcado por inúmeros preconceitos já sabemos. Mas ainda levanta-se uma questão seria ele um divisor religioso ou um divisor social? Pelo que nos foi narrado e pelos estudos realizados concluímos que o referido ambiente resultou-se como um divisor social e religioso juntamente. Pois quando os padres durante sua homília pediam aos pais para que não deixassem seus filhos namorarem nas proximidades do Paredão cria-se um divisor religioso, o sacerdote local passa a interferir na moral e educação dos filhos da sociedade ipuense.

[...] os padres na época das festas de São Sebastião e São Francisco eram muito grandes aqui na cidade eles ficavam falando na igreja que as moças e os rapazes não deviam namorar no paredão...Então os padres batiam para que as moças não fossem namorar lá... (Entrevista realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op. Cit.)

O Paredão era um ambiente destinado apenas para as pessoas de segunda classe, quem namorasse ou frequentasse o paredão não poderia de forma alguma adentrar no belíssimo Jardim de Iracema, pois fazendo isso quebrariam as regras e abalariam a moral tão resguardada e preservada pelos aristocratas. Este fator contribuía para que o paredão se tornasse também um divisor social e, seus frequentadores, vítimas desse estigma. Vejamos o que Francisco de Assis Martins nos diz a respeito:

[...] quem namorava no paredão não podia namorar no Jardim de Iracema... a conclusão que eu tiro daí é que existia um preconceito tremendo partindo do paredão, ora o paredão de um lado ficava o jardim de Iracema e do outro lado ficava o Grêmio Ipuense, paredão no meio formando um divisório social por que quem ia namorar no paredão não podia ir namorar no jardim de Iracema e eu procurei uma certa vez quebrar esse tabu,eu mesmo quebrei esse tabu, fui ao paredão com uma namorada minha e cheguei lá para ver o que ia acontecer comigo nessa época eu estava fazendo um curso de preparação para ser oficial do exercito...e saí e fui para o paredão e a menina disse não eu não vou Francisco aí eu disse vai, vai para o paredão comigo que eu quero ver o que é que vai acontecer e fiquei lá, andei e terminado uma hora mais ou menos fui para a Avenida que era o Jardim de Iracema que era proibido andar e fui lá e fiz voltas e mais voltas por lá e voltei. Quando foi no outro dia meu pai chegou e disse assim olha eu fui abordado pelo seu Xavier Timbó (que era um aristocrata do Ipu na época) aí disse assim ora o seu filho quebrou a moral da gente, foi pro paredão depois foi pro jardim de Iracema aí o papai também querendo seguir aquele conservadorismo aí disse assim: não vá mais fazer isso; aí eu não num vou mais não, no outro dia fiz a mesma coisa, fui e fiz a mesma coisa.(Idem.)

Ao analisarmos os relatos de Francisco de Assis Martins, percebemos que durante “os anos dourados de Ipu”, estava havendo uma ruptura destes comportamentos pré estabelecidos pelos aristocratas locais, o próprio entrevistado foi um instrumento para se quebrar esses paradigmas a tanto tempo enraizados na sociedade ipuense.

No desenrolar dessa pesquisa tivemos a possibilidade de entrevistar algumas mulheres que fizeram e que ainda fazem parte da história da cidade de Ipu. Por meio dessas narrativas obtivemos a oportunidade de poder conhecer melhor o passado de nossa cidade como também esses lugares que acabaram se perdendo na voragem do tempo deixando apenas vestígios da importância que tiveram.
São surpreendentes as descrições colhidas e a riqueza de informações que elas contêm. Por intermédio delas conseguimos assimilar de uma excelente forma os processos que permearam o passado dessas mulheres na cidade de Ipu. Os relatos também nos proporcionam diferentes amostras acerca do cotidiano dessas mulheres, se sofriam preconceitos, se haviam regras, quais seriam.
Por meio dessas narrativas também é possível se compreender qual seria o comportamento feminino ideal para as mulheres da pequena elite local ipuense e das mulheres dos segmentos populares. Sem dúvida, deveriam estes paradigmas abranger aspectos diferenciados. Teriam seu comportamento regrado e controlado não somente pela Igreja Católica, mas também pela própria sociedade haja visto que havia uma preocupação social que essas jovens viessem a ter atitudes de “mulheres públicas”.
Todos os relatos referem-se, de maneira singular, inúmeros pontos dessa pesquisa, sendo habitual encontrarmos neles diversos pontos de vista que se integralizam, bem como vários elementos que se contradizem. O que está posto inalteravelmente em um, em outro se altera e um novo enunciado é então incorporado.
Por meio de análises elencarei, incorporado ao material de que disponho, algumas narrativas que na minha óptica fornecem o discernimento para tentar explanar alguns dos pontos essenciais que são discutidos nessa reflexão, tais como o processo de segregação sócio-étnico-cultural, compreender como se dava o comportamento feminino das classes sociais existentes, bem como as relações de gênero.
Devido à escassez de documentos históricos e oficiais, nos empenhamos através dos relatos orais em desvendar o universo feminino até então desconhecido das mulheres da elite ipuense nas décadas de 1950 a 1970. Estimaria conhecer o seu cotidiano, seu comportamento na vida familiar e na vida pública, quais as normas de conduta e os comportamentos ditados pela igreja, que a todo o momento interferiam em suas vidas.

A partir do século XIX a figura feminina passa a ser estereotipada por um pensamento marcado pelo patriarcalismo em que acreditavam que a mulher era um ser inferior por sua condição biológica. Os médicos, juristas e, principalmente, os eclesiásticos foram os responsáveis pela criação dessas ideias e com isso passaram a construir aquele que seria o comportamento ideal para as mulheres, que deveriam sempre assumir o papel de mãe educadora dos filhos, de esposa dedicada ao marido e excelente dona de casa.
O comportamento das mulheres pertencentes à elite ipuense não difere muito do comportamento ideal feminino impostos pela Igreja Católica e pela ciência desde o século XIX. Estas moças tinham uma vida tranquila, sempre reservadas aos afazeres domésticos, aos trabalhos manuais, como crochê, bordar, coser, viviam sempre sob a vigilância dos pais e da própria sociedade.
Indagando as nossas entrevistadas a respeito de como seriam a vida das mulheres pertencentes à alta sociedade ipuense nas décadas de 1950 à 1970, foram-nos revelados alguns aspectos interessantes como em que condições viviam, o que faziam e quais os lazeres recomendáveis.
Segundo os relatos de Gonçalinha Bezerra Aragão, professora aposentada, as moças e mulheres da elite ipuense eram mais recatadas, caseiras e prendadas, dedicavam-se apenas aos afazeres domésticos, trabalhos manuais e aos estudos:

As mulheres eram mais recatadas, mais caseiras, mais dentro de casa nos afazeres familiares por que a gente não tinha muito lazer... prendadas, estudar, era os trabalhos manuais de casa bordando, por que o lazer aqui na cidade era pequeno não tinha pra onde a gente ir... então a vida da gente era mais dentro de casa com os pais, com os amigos, à tarde nas calçadas conversando nas noites de lua em que agente ficava apreciando a lua, era contando histórias era uma vida muito recatada. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora,formada em Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e Administração Escolar, Gonçalinha Bezerra Aragão, de sessenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce.)

Maria do Carmo, professora aposentada, reforça em seu depoimento o cotidiano das mulheres ipuenses, como uma vida simples, pacata e muito inocente, dedicavam-se aos estudos e tinham os trabalhos manuais e do lar como atividades principais:

A gente tinha as diversões, mas era de maneira muito inocente, existiam os bazares que eram as festinhas dançantes de sete às nove horas da noite, às nove horas da noite todo mundo já ia pra casa, não ficava ninguém em rua, moça não frequentava a rua além dessa hora. A gente estudava, outras pessoas trabalhavam era tudo trabalho humilde, trabalho simples, nesse tempo não existiam empregos públicos eram poucos, existiam escolas e professores, mas eram pessoas também de mais idade e os serviços públicos eram poucos geralmente era trabalho do lar e bordado, crochê, bico de renda, tricô, fazer flores, era essas as atividades principais, era a arte. (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em pedagogia pela UECE e especializada em Administração Escolar, Maria do Carmo (este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em Ipu- Ce.)

A cidade de Ipu durante as décadas de 1950 a 1970 passou por diversas mudanças, período em que os estigmas tão arraigados nas décadas anteriores passaram a ser fragmentados moderadamente. Na memória daqueles que viveram nestas décadas ficaram as inesquecíveis lembranças dos bailes suntuosos realizados no Grêmio Ipuense para o divertimento da “fina flor” da sociedade, das belíssimas serenatas realizadas pelos apaixonados nas casas de suas namoradas, do Cenáculo, local onde se reunia a juventude da época para conversar e trocar ideias, do Clube Artista Ipuense e das suas matinées, dos passeios e piqueniques na Bica e no Gangão, entre outros.
No próximo capítulo as nossas entrevistadas discutirão sobre o modo de vida e os costumes na cidade de Ipu nas décadas de 1950 a 1970, bem como nos revelarão os principais ambientes de lazer, muitos deles irradiadores de preconceito, lembrando que, em grande parte, esses lugares simplesmente desapareceram ou sofreram transformações irremediáveis, restando apenas a memória dos que vivenciaram estes anos em Ipu.

CAPÍTULO II - A HISTÓRIA DAS MULHERES IPUENSES: CONFLITOS DE GÊNERO E DE CLASSE.
Os historiadores orais podem escolher a quem entrevistar e a respeito do que perguntar. A entrevista propiciará, também, um meio de descobrir documentos escritos e fotografias, de outro modo, não teriam sido localizados. (THOMPSON, Paul. 1992. p. 25.Op.cit.)

Para se obter informações sobre fatos não documentados, apenas vivenciados e, portanto, existentes apenas no campo da memória é imprescindível que se utilize da metodologia da História Oral. Ela é uma das únicas ferramentas com as quais podemos alcançar essas informações, principalmente, em sociedades onde poucos dominam a escrita.
Dessa forma a História Oral ainda realiza um trabalho de “resgate” dessas experiências das classes marginalizadas, lembrando que essas têm grande valor histórico e narram os acontecimentos através de lentes diferentes daquelas com que se escrevem os livros de história, deixando de lado os vencedores para se conhecer os vencidos. Dessa forma, ela “[...] admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo.” (Idem. p. 44) Nos fornecendo uma perspectiva totalmente diferente e inovadora daquela que sempre se vinha rebuscando na prática historiográfica.

Pensando esse processo de marginalização de discursos dos indivíduos de classes sociais menos favorecidas podemos inferir também que houve uma espécie de segregação histórica, uma vez que essas pessoas perderam seus lugares de direito enquanto sujeitos sociais. Desse modo, os grupos populares não se encaixam dentro dos determinados padrões estipulados no âmago da sociedade e coletivamente aceitos como padrões morais, sociais e econômicos preestabelecidos.
Esse processo de segregação se confunde com o presenciado na cidade de Ipu durante meio século onde muitas pessoas foram alvo de algum tipo de segregação levada a cabo pela elite local, que estipulava os parâmetros em que as pessoas deveriam se enquadrar para integrarem efetivamente a sociedade.

“A consideração pela humanidade do outro não é abstrata, mas passa pela diferença que o individualiza. É, pois, o oposto da indiferença. Mas também não é mera diferença, distinção solta, desencadeada: sua referencia é universal [...]” (COHN, G. Indiferença, nova forma de barbárie. In: NOVAES, A. (Org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 81-89), com isso Cohn reforça ainda que aquilo que torna uma pessoa diferente da outra e, portanto, passível de segregação, não é apenas apontada como tal, mas intimamente reconhecida por todos, inclusive pelos discriminados.

2.1 – “Fina Flor da Sociedade”: Lazer, cultura e comportamento feminino.
Neste capítulo, utilizamos a História oral como metodologia de pesquisa, pois trabalhamos com histórias de vida, procurando preservar a trajetória, a experiência dessas mulheres. Discutiremos através da fala de nossas entrevistadas qual seria o comportamento feminino ideal para as mulheres da pequena elite local ipuense e das mulheres dos segmentos populares.

Os grupos dominantes locais (as famílias tradicionais, conservadoras e abastadas) ao lado da Igreja católica eram considerados os “guardiões da moral e dos bons costumes” estes eram os responsáveis por controlar e vigiar as famílias ipuenses. Havia-se uma preocupação social que as jovens viessem a se tornar “mulheres públicas”. E esta preocupação se faz presente desde os tempos coloniais. Segundo Emanuel Araújo:

Das leis do Estado e da Igreja, com frequência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições eclesiásticas. (ARAÚJO, Emanuel. A Arte da Sedução: Sexualidade Feminina na Colônia. In: DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora, 1997. p. 45.)

As “mulheres honestas” que faziam parte da sociedade ipuense deixaram o seu habitual isolamento e passaram a frequentar bailes, matinées, entre outros tipos de lazeres recomendáveis. Bem como passaram a adquirir mais autonomia a partir do momento que começaram a se dedicar ao trabalho docente, trabalho este considerado digno para mulheres honestas e certa distinção social.

Diversos estudos já constataram que as mulheres das classes populares, há muito, possuíam um cotidiano que lhes possibilitavam um convívio social fora do âmbito da casa em virtude das atividades que exerciam para garantir a sobrevivência familiar. E assim constatamos em Ipu.

As moças mais humildes trabalhavam em casas de famílias ricas da cidade para garantir e ajudar no seu próprio sustento. Muitas relataram, em entrevista, que após sua jornada diária de trabalho, arrumavam-se nas casas onde trabalhavam e de lá iam para as festas que aconteciam no Clube Artista Ipuense.
Vale salientar que nesses ambientes de lazer, ainda que o sexo feminino fosse colocado como base do poder de atração, essas diversões respondiam a um padrão moral, que punha a sexualidade feminina inscrita nos parâmetros da respeitabilidade. Permitindo que algumas dessas mulheres participassem apenas sob a vigilância familiar.

Essas manifestações de preservação da moral ainda se encontram vivas na memória das moradoras de Ipu e, assim sendo, fornecem, como nenhum outro documento, informações preciosas sobre esses acontecimentos. Portanto, visando conhecer essas narrativas, a metodologia da História Oral se apresenta como sendo indispensável para essa pesquisa uma vez que ela é uma das únicas fontes capazes de trazer à luz as experiências vividas por estas mulheres que foram alvo dos preconceitos religiosos e sociais, levando em consideração a ausência de documentos escritos.

A professora aposentada Gonçalinha Aragão, pertence a uma família considerada ilustre na cidade de Ipu. Igualmente as nossas entrevistadas que também fizeram parte da alta sociedade ipuense, desde cedo se dedicou e formou-se para ter a educação como seu ofício, lembrando-nos sempre que mesmo diante de sua ocupação não deixava de se preocupar com a sua função de esposa, proporcionando ao seu companheiro todos os cuidados que uma mulher casada deveria exercer.

Indagada a respeito de como as mulheres deveriam se comportar Gonçalinha Aragão nos relata que todas elas deveriam ter princípios morais e um comportamento exemplar, tanto no vestir, como no falar e as mesmas deveriam manter uma boa conduta em todos os ambientes que frequentavam. Vejamos:

Deviam ter sua ética, a moral, a mulher tinha que ter um comportamento no sentar, no vestir, no falar, então a mulher era ética, você não via mulher fumando, você não via mulher bebendo, você não via uma mulher trançar uma perna (pausa) com vestido muito curto, o trajar que era decente, então era uma mulher de um bom comportamento em qualquer lugar no clube, na rua, na Igreja (pausa). Assim, na minha época agente tinha que ter um cuidado em falar com as pessoas, um idoso, se você passasse numa calçada você sempre dizia um bom dia, boa tarde, boa noite, você ser uma pessoa amável, você sabia lhe dar com as pessoas, com seus semelhantes. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e Administração Escolar, Gonçalinha Bezerra Aragão, de sessenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce.)

De acordo com Michelle Perrot (PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998), os gestos obedeciam a códigos de urbanidade que ditavam o que uma mulher “decente” deveria evitar fazer. A repressão era geralmente mais intensa sobre as mulheres “da sociedade”, do que sobre as mulheres pobres que eram sempre mais livres em seus movimentos. As mulheres deveriam vestir-se bem e não deveriam fumar, principalmente em locais públicos.

D. Eunice Martins, assim como todas as jovens ricas da cidade estudou no Patronato Sousa Carvalho, instituição direcionada pelas irmãs de caridade, mas segundo a mesma, devido à frequente mudança de cidade por conta do emprego de seu pai, foi uma interna na escola das freiras, nesta instituição formou-se normalista. Logo mais ao não suportar a distância que a separava de seu noivo casou-se com ele, embora seu pai não fosse a favor no início e tenha demorado cerca de três dias para permitir o casório. Juntos vieram residir definitivamente na cidade de Ipu.
Sobre como se davam os namoros D. Eunice Martins é enfática ao dizer que “a sociedade era muito exigente não queria que ninguém namorasse com gente moreno, que chamavam caboclo” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Administração Escolar, Eunice Martins, de setenta e cinco anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce). A mesma nos relata que as moças daquela época obedeciam e as que não obedeceram fugiram ou acabaram casando contra a vontade dos pais.

Quando foi questionada a respeito de algum acontecimento em que a família foi contra o casório pelo fato do pretendente ser uma pessoa de pele negra, ela relata que muitos foram os casos, mas não iria citá-los por ser uma ofensa a família em questão.
No decorrer desta pesquisa fatos como esse, terão um novo olhar ao passo que as entrevistas ajudarão a desvelar o acontecido. Alguns dos entrevistados preferiram não se enveredar por esse caminho por ter sido o fato ocorrido em uma família pertencente a elite ipuense e bastante conhecida na época, entretanto diante de tanta persistência, consegui extrair aos poucos o que sacudiu a sociedade ipuense naquela época e que tanto impressionou, ficando assim a lembrança guardada nas memórias.

O acontecimento que tanto chamou a atenção da sociedade ipuense foi o fato do baiano Stélio da Conceição Araújo, um homem de cor negra que veio para a cidade de Ipu gerenciar o Banco do Brasil, casar-se com uma moça chamada Maria Alda, considerada uma das mais belas da cidade, de pele branca e de família rica.
Conforme a concepção da historiadora Martha de Abreu Esteves (ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989) em seu livro “Meninas Perdidas”, os namoros ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, eram rodeados pelos olhares vigilantes de pais e vizinhos. Além disso, haviam os novos códigos de conduta determinados pelos juristas e médicos higienistas que estabeleciam, os comportamentos, os espaços e os horários próprios e impróprios para os relacionamentos amorosos.

Estas práticas também se faziam presentes na cidade de Ipu, onde os jovens casais eram continuamente vigiados pela família da moça, que não possibilitava que o casal permanecesse sozinho, e os proibiam até mesmo de irem desacompanhados aos bailes e à pracinha.

Segundo Maria do Carmo os namoros “eram inocentes, o mais que se podia era pegar na mão um do outro, havia o maior respeito, não existia esses “agarra agarra” de hoje, e a gente era muito respeitada.” (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em pedagogia pela UECE e especializada em Administração Escolar, Maria do Carmo (este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em Ipu- Ce.)

As mulheres eram bastante vigiadas, principalmente em seus namoros, mas toda essa vigilância não as impediam de trocarem beijos com os seus parceiros. Algumas delas procuravam burlar estas normas do relacionamento, e de maneira discreta procuravam espaços para se encontrarem frequentemente longe das vistas de seus familiares. Estas aventuras deixaram marcas na memória de D. Eunice Martins.

Ah desde os quatorze anos que eu namoro com o meu marido, (risos) é, só posso dizer que conheci ele mesmo, então era muito saudável né, nos namoros a gente era muito vigiado, oura mais se a gente se escondia e beijava sempre (risos). (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com, Eunice Martins, Op. Cit.)

De acordo com a narrativa de Gonçalinha Aragão os namoros se davam para um conhecimento pessoal e se iniciavam com os flertes que eram uma troca de olhares entre os casais, e quando o flerte se prolongava e passava a se ter uma comunicação, já era considerado um namoro.

E o namoro era a mãozinha pegava na mão, saia pra passear, sentava nas pracinhas, e as conversas se dirigiam pra coisas (pausa) nada de sexo, eram coisa bonitas, eram histórias, ele apreciava a beleza dela e ela apreciava a beleza dele nera, era esse tipo de coisa, o namoro bonito né, (pausa) que via que os dois se compartilhavam né, existia essa química bonita, de uma alma para outra alma, de um coração para outro coração, era diferente era uma coisa muito bonita.(Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com, Gonçalinha Bezerra Aragão, Op.cit.)

Segundo Carla Bassanezi Pinsky (PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) o flerte ou os namoricos poderiam conduzirem-se a um compromisso mais sério ou não. E isso era um perigo, pois um flerte inconsequente poderia prejudicar e manchar a reputação de uma moça.)

As jovens viviam em pânico dos aproveitadores, sedutores e mulherengos que poderiam abusar de sua ingenuidade e partiriam sem se preocupar com os prejuízos causados em suas vidas. Portanto tipos como estes deveriam ser evitados de todo modo.
Com isso, nossa entrevistada prossegue expondo como era o comportamento dos homens durante o namoro com as mulheres. A mesma relatou que sempre haviam aqueles desavergonhados que passavam dos limites, mas as moças da época eram bem instruídas, tinham um certo equilíbrio e uma formação moral, portanto sabiam se sobressair em meio a esta situação.

Tinha os livros que a gente lia de formação do caráter que era um livro muito bonito que formava o caráter e a personalidade dos jovens, então a gente tinha as defesas da gente, mas sempre acontecia um ou outro né, que vinha, sempre tinha sim, mas a gente sabia se comportar. (Idem.)

As mulheres eram vigiadas inclusive no espaço sagrado, tinham a incumbência de apresentar uma conduta que estivesse continuamente em consonância com os preceitos morais cristãos. Os Sermões dos padres no decorrer das missas, eram enfáticos, pregavam sempre os bons modos e o bom comportamento que toda mulher honrada deveria ter.

Segundo D. Eunice Martins, os padres eram bastante rígidos em relação à vestimenta das moças. Estas só poderiam adentrar na igreja com roupas de mangas compridas, com vestidos longos ou abaixo dos joelhos, e a maioria das vezes de meias, “vestido decotado nem pensar, aí a gente tinha os vestidos de sair e tinhas os casacos, então a gente colocava aqueles casacos por cima dos vestidos e a gente ia pra igreja.” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, Op.cit.)

Estas exigências se fizeram presentes não somente na cidade de Ipu. Em Sobral o traje feminino também foi objeto de crítica no Jornal O Correio da Semana, onde o Bispo da cidade desautorizava a entrada de mulheres com os braços descobertos. Conforme salienta Chrislene Cavalcante, com o apoio do vaticano foram publicados artigos referindo-se sobre a necessidade de tomar todas as medidas para se combater a indecência dos trajes, antes que eles atingissem os limites da casa do Senhor. Vejamos o aviso que o Cardeal Pompili ordenou que fixassem nas portas de todas as igrejas de Roma:

A mulher não deve entrar na casa de Deus senão com um vestido afogado, modesto e decente, para que não ofenda a santidade dos templos sagrados. Diante do vestuário decotado das mulheres, os padres deverão avisar os fiéis que tais senhoras que ousam entrar no templo sagrado com decotes, mangas curtas, etc. poderão ser convidadas a sair da igreja. (A Santa Sé e a Moral. Correio da Semana, Sobral, 29 de julho de 1924. Apud, CAVALCANTE, Chrislene Carvalho dos S. P. O Espetáculo da Cidade: Corpo feminino, Publicidade e vida urbana em Sobral (1920-1925). 2013, p.164 à 165.)

Nesse sentido, Dona Maria do Carmo recorda-se de quando foi expulsa da igreja em meio a sua confissão pelo pároco, por conta de não estar vestida adequadamente:

Eu me lembro que um dia, a fazenda não deu pra fazer com a manga até lá mais embaixo, então ficou bem aqui abaixo do cutuvelo e por isso, e eu fui me confessar e o padre: _ Levante-se que você está escandalosa. Me levantei e mandou que me retirasse da igreja por causa da manga bem aqui.(Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo, op.cit.)

Conforme nos conta D. Eunice Martins “As filhas de Maria” (As “Filhas de Maria”, foi uma Irmandade religiosa formada exclusivamente por mulheres católicas solteiras, sob a orientação espiritual do pároco local, se constituía em lugar de práticas sociais de jovens pacatas, virtuosas, de comportamento e reputação ilibados, reunidas em torno da devoção à Virgem Maria.Existiu em diversas Dioceses do Brasil. Para maiores informações, ler: ANDRADE, Maria Lucélia. “Filhas de Eva como Anjos sobre a Terra”:A Pia União das Filhas de Maria em Limoeiro-CE (1915-1945). 2008. Dissertação de Mestrado em História_ Universidade Federal do Ceará. Fortaleza.) só utilizavam roupas de mangas compridas, não poderiam frequentar e nem mesmo olhar, as festas que aconteciam na cidade, “ no carnaval elas se escondiam [...] e eu nem me importava porque eu num era filha de Maria (risos).” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

Na cidade de Ipu a Igreja juntamente com as irmãs de caridade exerceram uma função preponderante por meio de atividades assistencialistas desenvolvidas por mulheres representantes dos segmentos superiores da sociedade. D. Maria do Carmo cita “As Luizas de Marillac” (As “Luizas de Marillac” foi um grupo formado por jovens moças que juntamente com as filhas de Caridade de São Vicente de Paulo e Luisa de Marilacc ansiavam dedicar a sua vida à serviço dos pobres.) que foi um desses grupos a qual ela e muitas outras jovens fizeram parte:

As Luizas de Marillac que formavam os grupos [...] e a gente visitava os pobres, era muito bom. No dia, por exemplo, eu tinha uma velha morava lá no Alto, cada um cuidava duma velha né, duma velhinha ou dum velhinho, então no dia do meu aniversário, (a velha não sabia o dia do aniversário dela), então no dia do meu aniversário, a gente se reunia tudim e ia comemorar o meu aniversário na casa da velhinha, levava presente era pra velhinha, aí a aniversariante levava um bolo, pra comer lá na casa da velhinha e deixava pra ela.
(Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo, op.cit.)

Notamos que na passagem do século XIX para o século XX, a figura feminina passou a se fazer presente, o próprio trabalho de assistencialismo social contribuiu para que estas mulheres realizassem atividades fora do ambiente domiciliar, proporcionando-lhes mais independência.
Devido às diversas transformações dos costumes e modernização pelas quais a cidade de Ipu estava passando ao longo dos anos as mulheres pertencentes aos setores sociais elevados passaram a não estar mais reclusas em seus lares, preocupando-se única e exclusivamente com os trabalhos domésticos, ou mesmo desinteressadas por qualquer instrução ou ocupação e limitadas em suas diversões, estes comportamentos passam a não fazer mais parte das vivências femininas, principalmente nas décadas de 50 à 70 na cidade de Ipu.

É certo que o método familiar paternalista, transmitido desde o período colonial, ainda influenciava as relações familiares, determinando restrições para o comportamento das mulheres, que vinha se desenvolvendo vagarosamente. O padrão burguês de esposa e mãe de família que eram vistas como a “rainha do lar”, não representou a exclusão ou enclausuramento da classe feminina, pelo contrário, requisitou-se dela uma absoluta participação no corpo social, primeiramente negada, e ainda menosprezada e estereotipada pelos historiadores.

Na cidade de Ipu, houveram diversos ambientes em que as mulheres passaram a frequentar. Conforme fosse a sua posição social, elas eram convidadas a desempenhar ações distintas, deixando assim, de serem meras observadoras e coadjuvantes da história, e passando então a criar sociabilidades próprias. Desta maneira os diversos espaços públicos formaram um cenário importantíssimo para ser assistido as inúmeras transformações das atitudes e condutas femininas, bem como avaliar o cotidiano destas mulheres nestes espaços, por meio das formas de lazer e entretenimento desenvolvidas.
Muitos foram os espaços dedicados ao lazer e o entretenimento das mulheres da elite ipuense. D. Gonçalinha Aragão nos relata que participava de muitos lazeres, mas sempre acompanhadas pelos pais ou por alguém responsável. Os principais ambientes que frequentavam eram:

O Cenáculo, era que se juntavam as mocinhas, adolescentes e jovens, pra trocar ideias, pra ouvir música, pra ler, jogar, tinha também a quadra de esportes, que tinha os dois times de voleibol que era um sucesso e time de futebol de salão, tinha o time tabajara e o cisne branco que era o do colégio, tinha os passeios na Bica e no Gangão, eram os tipos de lazer né, as tertúlias nas residências e tinha né, as tradicionais festas do dia 20 e dia 21(janeiro) e tinha a festa de outubro nera, tinha o chitão, tinha as festas, mas sempre sempre a gente não ia só, sempre acompanhada ou pelos pais ou pelo pai, ou então pelo uma tia. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Percebemos que a classe feminina ipuense, já nas décadas de 1950 à 1970 já não viviam mais em um habitual isolamento a qual viveram durante anos. Já possuíam mais liberdade para fazer piqueniques no Gangão e na Bica, a participarem de times esportivos, como também se fazerem presentes nas principais festas do ano que eram as festas em celebração aos santos padroeiros da cidade, São Sebastião em 20 de Janeiro e São Francisco em 4 de Outubro.

D. Eunice Martins relembra com bastante saudosismo o período em que se divertiam no Jardim de Iracema nas noites de sábado e domingo em que haviam as retretas com a banda de música no coreto, e que enquanto a banda tocava as jovens ficavam volteando a praça e flertando com os rapazes, “e sempre eles iam contrário pra gente se encontrar duas vezes (risos).”(Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.) A entrevistada prossegue:

Ah e tinha matinê, matinê era uma espécie de divertimento aos domingos, a gente ia lá e botavam uma vitrola né, com aquele disco né, e a gente dançava lá era muito animado, era uma vida muito feliz, e tinha muito piquenique na bica também dia de domingo, quando não existia outra diversão já programada a gente fazia a viagem a pé, porque não tinha estrada na bica, mas já era um programa muito bom, agente levava comida levava tudo pra lá, e passava o dia lá era uma maravilha, existia Gangão também né, aqui a cachoeira do Gangão aqui mais perto, e a gente tinha muita vida, não tínhamos muita liberdade, mas tinha em parte a ponto de satisfazer a gente. (Idem)

É relevante ressaltarmos que as entrevistadas não sentiam-se presas ou acuadas, pelo contrário revelam ter tido uma vida, bastante movimentada, repleta de diversões, claro sempre vigiadas, mas tinham o necessário para satisfazê-las.
Um dos espaços de lazer dedicados a elite de Ipu, era o Grêmio Recreativo Ipuense. Gonçalinha Aragão nos relata que as festas eram muito bem organizadas pela diretoria, e tinham a entrada permitida somente aos sócios deste estabelecimento, os mesmos eram escolhidos rigorosamente:

[...] quem podia fazer parte da sociedade e ser sócio era aquelas pessoas (pausa) que tinham um bom comportamento sabe, de caráter, de moral, também tinham aquelas pessoas de poder aquisitivo alto, mas também tinham outras pessoas né, que tinha uma moral, um comportamento, um cara decente, um comerciante, uma pessoa bem estruturada na vida. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Todos deveriam seguir os padrões estabelecidos pelos diretores do Grêmio. “Eles queriam uma sociedade limpa, uma sociedade bacana, uma sociedade muito fina flor [...]” (Idem). No supracitado dia 20 de Janeiro comemora-se a festa do Santo padroeiro da cidade e D. Gonçalinha Aragão discorre a respeito de como se davam esses eventos no Grêmio Recreativo Ipuense:

Então era assim, quando eu ainda conheci o grêmio foi um grêmio muito de elite,[...] dia 20 de janeiro que era a festa tradicional podia entrar muita gente, os convidados que vinham de Fortaleza, Rio de Janeiro, de várias partes, de vários Estados do Brasil e cidades aqui circunvizinhas e cidades mais distante um pouco, que ficava lotado né aqui no Ipu, mas a festa do dia 21 era para os sócios, privada para os sócios, ninguém entrava, e era a rigor, terno, gravata, a mulher de longo de vestido de bolsa acho que até de luvas elas iam, então era uma festa para a sociedade, onde eles contratavam orquestras que vinham da Parnaíba, tinha também os Cometas nera, que também tocava, que era um conjunto muito bacana, então naquele dia a festa elitizada era só para os sócios [...](Ibidem)

Gonçalinha Aragão descreve que haviam diversas pessoas que atualmente possuem um alto poder aquisitivo que foram vítimas de preconceitos dentro e nos arredores do Grêmio Recreativo Ipuense. Aqueles que observavam a festa do Grêmio pelo lado de fora eram os que ficavam no “sereno da festa” e os que adentravam neste espaço eram convidados a se retirarem como nos relata a entrevistada:

Eu não vou citar o nome, mas vi várias pessoas que hoje eles são pessoas de alto poder aquisitivo, vários vários, e no entanto eu estava lá dentro né, do clube e olhava pela janela e via as pessoas que não podiam entrar, chamava sabe como, ficavam no sereno da festa era isso aí que chamavam as pessoas que não podiam entrar, aí podiam ter o dinheiro que tivesse mas ele não tinha a cultura e a família né [...]. Mas tinha gente, acho que ainda hoje rodam por aí, gente que eu vi né, que assistir também quando tinha alguém dançando lá, e o diretor do clube chegava e dizia opa meu amigo, você não pode, você não é sócio do clube, lhe convido a se retirar, vi isso, então eu acho que era uma coisa muito fechada, acho que isso aí pode-se dizer discriminação, que eu nunca aprovei. (Ibidem.)

Com isso observamos a importância que se tinha em fazer parte de uma família influente na cidade de Ipu. Não bastava ter boas condições financeiras para adentrar no Grêmio Ipuense ou ser sócio desta associação, tinha que fazer parte de uma família de renome que se destacava não só pelas inúmeras posses, mas também pelo conhecimento, poder e estima que possuíam.

O memorialista Francisco de Assis Martins também narra a respeito desse caso mencionado por Gonçalinha Aragão. Este homem de poder aquisitivo já foi inclusive em anos anteriores prefeito da cidade de Ipu e sua esposa também, e esta foi intitulada como a “mãe dos pobres”. Este homem em sua juventude foi caminhoneiro, por conta de seu trabalho conseguiu possuir inúmeros bens e na época o mesmo embora não fosse rico mas tivesse um bom dinheiro não poderia entrar no clube, pois como bem disse D. Gonçalinha Aragão os sócios deveriam ser de uma família nobre e possuírem cultura.

D. Eunice Martins relembra que não perdia um só baile do Grêmio Ipuense, e que todos deveriam ir bem trajados. Segundo seus relatos, “[...] o baile mais chique que existia era o de 12 de outubro que era o aniversário do Clube, aí minha filha todo mundo muito arrumado, se não fosse muito bonito nem entrava (risos)” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.). Diante disto, notamos que a sociedade da época preocupava-se em manter um alto nível não só por meio de bailes restritos aos mais abastados, mas também pelos bons modos e o bem vestir.

Segundo D. Eunice Martins, os bailes do Grêmio eram uma oportunidade perfeita para os namoros e a paquera, principalmente para aquelas que adoravam conhecer pessoas novas e paquerar com os viajantes que vinham para a cidade de Ipu vender seus produtos e aproveitavam para participar das festas do Grêmio Ipuense. Vejamos o que conta nossa entrevistada:

Elas eram muito cortejadas, mas sempre elas já tinham os pares né, todo mundo já tinham seus namorados nera, agora vinham muitos viajantes como elas chamavam e tinha as moças que não queriam namoro assim fixo aqui pra justamente quando chegavam os viajantes. Eu tinha uma parenta que gostava muito de viajante eles vinham vender alguma coisa por aqui e ficavam pras festas nera. Então cortejava aquelas moças nera e tudo, mas era tudo com muito respeito. (Idem.)

Pelos estudos realizados e pelos depoimentos de Francisco de Assis Martins podemos afirmar que haviam sim moças que sempre permaneciam solteiras para poder conhecer os viajantes que vinham a cidade de Ipu, mas estes homens não poderiam adentrar no Grêmio Ipuense, visto que este ambiente era voltado somente para o divertimento da elite. Nesse ponto, encontramos certa contradição entre as memórias dos entrevistados, visto que se contradizem quanto à presença de certos viajantes no Grêmio.
Desse modo, sabemos que a memória é seletiva e passível ao esquecimento. As recordações que nos atormentam logo são excluídas da consciência, selecionando apenas as lembranças do que se deve rememorar. Portanto, selecionar ou esquecer são manipulações conscientes ou inconscientes, resultantes de inúmeros elementos que acometem a memória individual. Segundo Thompson:

[...] por um curtíssimo espaço de tempo temos algo que se assemelha a uma memória fotográfica, mas isso dura apenas uma questão de minutos [...] esta fase específica é muito, muito breve, e então o processo de seleção organiza a memória e estabelece espécies de vestígios duráveis, por meio de um processo químico. (THOMPSON, P. Problems of Method in Oral History PAUL. Oral History Journal, v. 1, n. 4, 1971. Apud. GOMES, Almiralva Ferraz e SANTANA, Weslei Gusmão Piau. A história oral na análise organizacional: a possível e promissora conversa entre a história e a administração. Cad. EBAPE.BRvol.8 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2010.)
  
Cada perspectiva de uma entrevista se evidencia substancial e passível de análise, o que é dito por nossa entrevistada é tão considerável quanto aquilo que não foi dito, o acontecimento que se distorce também é de grande significado haja visto que podemos empreender entusiasmada discussão sobre os motivos que levaram a pessoa a fazê-lo.

Ao ser indagada a respeito da liberdade para sair de casa, D. Eunice nos conta que foi criada com muita liberdade. A mesma alega que devido sua mãe ser escritora, possuía uma mente muito aberta. De acordo com a entrevistada sua mãe dizia:

[...] que filha presa quando se soltava fazia besteira, ás vezes meu pai dizia:_ Não essa moça, tá escuro, como é que vai ser? ela vai sair?; _ Vai sair, a gente tem que deixar as pessoas ter liberdade pra poder ter comportamento, foi o que a minha mãe me ensinou. (Idem)

Aproveitando o ensejo foi indagado se a mesma tinha a liberdade de frequentar qualquer ambiente. Segundo ela: “as moças não podiam namorar no paredão, se fosse namorar no paredão Ave Maria ficava falada (risos). Então era recomendação, ninguém namorava no paredão, era na Avenida e pronto.” (Ibidem) Ao ser questionada sobre o porquê de não poderem frequentar o Paredão ela relata:

Lá ficavam as domésticas, porque na época existia muito preconceito, não queria que a gente se misturasse, eu imagino que fosse por isso, mas um dia desse eu conversando com minhas amigas da época elas diziam: _Era não é porque lá era meio escuro. Então nós não sabemos o motivo, só sabemos que a gente namorava na Avenida. (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

O acesso ao Grêmio Ipuense era normatizado, de forma a monitorar as sociabilidades desta sociedade. Designar quem tem permissão ou não para envolver-se, ou ainda quem é apropriado ou não para fazer parte desse espaço demonstra-se como uma, entre várias, maneiras de distinção e definição dessa associação. A elite se distingue dos outros, classificando e desqualificando, determinando o que faz parte do seu meio e o que está fora dele.

A diretoria do Clube preocupava-se com as sociabilidades. Por isso criavam normas e costumes que faziam parte de uma vida em sociedade, que iam ao encontro da moral da época. É certo que estes diretores pediam a colaboração dos associados para o cumprimento destas regras, para assim fazer daquele local, um ambiente socialmente elevado. Mas de acordo com o depoimento de D. Eunice Martins, estas sociabilidades restritas eram por vezes quebradas por intermédio dela própria, devido ser filha do presidente do Grêmio tinha algumas regalias. Ela prossegue:

As moças de família, só podia ir as filhas dos sócios e os sócios pra entrar, tinham lá os requisitos aqueles que não respondessem de acordo com o mandamento lá nera, não sei como era bem direito não, meu pai foi presidente também do clube muitas vezes. Eu era da elite (risos) mas eu tinha muitas amigas boas, nunca fiz distinção assim, e as vezes eu levava minhas amigas né, mas nunca fizeram nenhuma objeção, eu entrava com elas e tudo, porque não tinha como eu não era melhor do que ninguém então se houvesse objeção a gente discutia eu já ia preparada mas nunca houve. A entrada só era permitida para os sócios seus filhos e convidados, [...] (Idem.).

De acordo com a fala de nossas entrevistadas observamos que as mesmas deixaram transparecer serem mais tolerantes com as pessoas pertencentes às camadas populares, que sempre foram tão estigmatizadas pela alta sociedade ipuense. Notamos que as novas gerações estavam tornando-se mais complacentes passando a constituir amizades com os mais humildes e a minimizar a distinção de cor e de classe.

Segundo D. Eunice Martins, as mulheres pobres, que trabalhavam para garantir o seu próprio sustento sofriam inúmeros preconceitos, “nem na avenida Iracema elas não podiam fazer o rodeio no gradil, o lugar delas era lá no paredão”(Ibidem). E ainda demonstra sua tamanha indignação: “eu achava isso um verdadeiro absurdo graças a Deus que passou e eu ainda assisti né, eu era ainda bem nova quando não existia mais isso na cidade.” (Ibidem.)

A entrevistada continua falando que as chamadas “pirão frio”, que eram as mulheres que trabalhavam em casas de família tinham um lugar próprio para frequentarem. A mesma se refere à Praça 26 de Agosto: “Tinha essa avenidinha nova aí como chamavam, que elas frequentavam [...] perto da prefeitura né, elas andavam muito aí também, aí nós não íamos né, (risos) as besteiras da época, os preconceitos.” (Ibidem)

Maria do Carmo vivenciou de maneira bem distinta das demais entrevistadas. Revela com bastante pesar ter tido uma vida deveras difícil, pois ficou órfã muito cedo e ao perder seus pais, ela e suas duas irmãs passaram a morar com suas duas tias que já eram idosas. As mesmas sempre foram muito rígidas na educação de suas sobrinhas, não as deixavam brincar com outras crianças por medo delas aprenderem coisas impróprias, e estas deveriam estar sempre bem vestidas até em seu lar, com blusas de manga, saias compridas e até mesmo de meia. Menciona ainda ter sido durante sua juventude, motivo de chacota para suas colegas, pois devido ter sido criada em um ambiente de clausura sempre foi inocente em assuntos referentes à sexualidade feminina.

Quando indagada a respeito de como eram os casamentos, Maria do Carmo nos diz que havia um ritual que antecedia o casamento que seria o namoro onde “o rapaz frequentava a casa da moça sentava na calçada conversava com os pais e com ela também, era uma coisa assim que eles nunca ficavam totalmente a sós” (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo, op.cit.). Mas de acordo com sua narrativa suas tias não permitiram que ela casasse, a mesma para poder encontrar-se com seu futuro esposo saia de casa as escondidas:

Eu pra namorar fugia de casa porque eu já tava com 28 anos de idade, sem pai nem mãe, e a tia que me criou não permitia, então, as tias já estavam velhas , minhas duas irmãs tinham casado e eu não tinha com quem ficar eu não ia morar com uma irmã né [...]. Aí surgiu aí um viúvo e esse viúvo veio atrás de mim, eu aceitei por conveniência não foi por amor [...] e elas não deram a permissão pra mim casar. Olha eu pra falar com ele eu saia escondida e eu dizia _ tem uma reunião dos professores , aí eu saia e encontrava com ele ali do jeito que tava em casa chinelinha no pé, sem me aprontar, sem nada e assim ele me queria. Aí no dia que foi pra casar eu disse: _ Olha amanhã eu vou me casar, aí não foi ninguém. [...] Eu comuniquei pra elas... lá em casa não houve nada, nós entramos na igreja no dia 18 de janeiro a música tocando no patamar da igreja era 5 horas da manhã, era a alvorada sabe de são Sebastião, aí quando terminou o casamento, só eu , ele e as nossas testemunhas, meu não foi ninguém e nem dele porque a família dele não morava aqui, então só nossos padrinhos. Quando terminou o casamento eu saí e vim embora pra casa e ele tirou o paletó lá fora da igreja e foi para o comércio dele, quer dizer que não houve comemoração, não houve nada nada. Quando foi a noite eu fui a igreja, pra novena aí eu disse olha de lá (eu chamava ele Seu Antonio, ele era 26 anos
mais velho que eu ) eu disse:_ olha de lá eu vou pra casa do Seu Antonio, aí fui. Aí fiquei frequentando, mas assim eu sofri muito com isso viu. (Idem.)

Para que se fossem preservadas a ingenuidade das moças, era habitual que as informações referentes à sexualidade humana comparecessem a elas marcadas por desaprovação, retenção, silêncios e estigmas. Segundo Pinsky (PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) até mesmo o rapazes estavam suscetíveis à ausência de informação e diálogo sobre o assunto. E foi com desinformação e falta de comunicação sobre este assunto que foram educadas as jovens ipuenses.

Quando perguntamos se a sua família falava e orientava sobre sexo a entrevistada diz: “Nunca, não, ninguém falava nisto, não se tocava, Ave Maria” (Ibidem.). Quando casou-se sobre sua noite de núpcias a mesma continua dizendo: “por Deus que ele era um pai pra mim, ele assumiu o lugar do meu pai, então com muito respeito nós casamos, ele com muito respeito me levou de uma maneira muito direita que eu aceitei e tudo, e ele me explicando e foi assim que aconteceu, foi me orientando”(Ibidem.). Ao perguntarmos como ela reagiu se ficou nervosa, ela nos fala:

Não, sabe que eu não fiquei, ele conduziu tudo de uma maneira, assim inocente, eu acho que ele sabia, ele notou durante o namoro a minha loucura, que eu não sabia de nada, ele deve ter notado. Ele me respeitava tanto que um dia eu tava na esquina ali dessa pracinha, saí fugi pra ir conversando, quando isso houve um apagão viu, as luzes se apagaram aí ele páááá riscou um fósforo e ficou assim pra todo mundo ver que agente tava bem direitim, quer dizer que ele também rezava na mesma cartilha minha né (Ibidem).

Do mesmo modo, Gonçalinha Aragão relata que não havia uma preparação ou até mesmo uma orientação para a noite de núpcias por parte de sua família. O tema sexo era um tabu, e devido a escassez de informações as mulheres casavam-se virgens e acreditando em histórias fantasiosas sobre essa primeira noite. Não se havia a preocupação em esclarecer a noiva a importância desse acontecimento. A respeito disso nossa entrevistada explica que:

A preparação era feita por a gente mesmo né, pelos estudos e pelos livros, porque não tinha televisão, não tinha computador, não tinha essa interferência de amiga com amiga [...], era uma coisa que a gente tinha vergonha de sair perguntando aos pais. Minha mãe era altamente reservada com as coisas então ela nunca me disse minha filha é assim assim, leve isso. Pra mim fazer meu enxoval era até com vergonha né, eu tinha ajuda, era ajuda de mim mesmo que eu procurava pesquisar, mas perguntar mamãe como é que vai ser na hora? como é que vai acontecer? como eu devo me comportar?. Isso aí nunca, eu não tive essa comunicação com ela e nem ela teve essa comunicação comigo, a gente casava no escuro (risos), seja o que Deus quiser (risos), mas não tinha isso. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão,op.cit.)

A entrevistada prossegue dizendo que somente no Curso Normal era que as mulheres passavam a ter aulas de formação sobre anatomia e biologia ministrada pelo Dr. Thomaz e somente durante e por meio destas aulas que elas eram informadas de como realizava-se a reprodução humana e de como as mães davam a luz a um filho, entre outras coisas:

Agora tinha sim as aulas de formação com o Dr. Thomaz, que ele dava anatomia, dava biologia, tinha outros livros de formação né, tinha as aulas do Monsenhor Moraes também que a gente assistia, e tudo isso ia somando né, você veja que eu já vim saber realmente como era que a mulher..., por onde que era que a mulher tinha um filho já tava no normal, até então eu achava que era a história da cegonha, a cegonha trouxe, que meu pai sempre dizia assim, você sabe que horas foi que cegonha veio lhe deixar, a cegonha veio lhe deixar duas horas da tarde (risos), sua mãe tava deitada assim na cama e eu atravessado quando vi aquela cegonha andando assim naquele bater de asas era você que vinha chegando duas horas da tarde. (Idem.

Gonçalinha Aragão casou-se aos 30 anos, e neste período já havia feito o Curso Normal, portanto já tinha um certo conhecimento por meio dos livros e das aulas de sobre como se dava a noite de núpcias. Mas confessa que não estava preparada para aquele momento tão especial em sua vida:

Eu não entendo como foi que aconteceu né, assim porque eu sabia as coisas pelo livro mas não preparada pra aquele momento né, alguém tivesse me preparado né, eu fiz tudo assim, coisas da natureza mesmo, deixei que a natureza agisse, que Deus agisse na minha vida né e que a coisa fosse acontecendo porque eu só tinha muito era vergonha eu não sabia se apagasse a luz se deixasse a luz acesa, como que era, eu não sabia de nada, foi acontecendo tudo naturalmente tudo foi dando certo, tanto é que até hoje estou aqui 30 anos de casado. Não tinha mais uma camisola e tinha que comprar ainda um desabiê, era a camisola e mais outro negocio por cima (risos) eu acho assim pra trocar minha roupa no dia do meu casamento eu fui no banheiro troquei já vim toda né e eu acho que aconteceu com a luz apagada e debaixo dos lençóis teve nada de preparação aconteceu tudo naturalmente. Fiquei no outro dia com vergonha não olhava nem na cara dele, passei foi dias sem olhar, com uma vergonha danada cada vez que tinha um momento de amor era assim tinha muita doação, porque não houve essa preparação era muita distância acho que sexo pra mãe era a coisa mais difícil dela falar disso pra nós. (Ibidem.)

Conforme discorreram nossas entrevistadas, o sexo era um tema pouco comentado, e totalmente excluído dos assuntos familiares. De acordo com Gonçalinha Aragão “falar de sexo era uma coisa muito sublime, o corpo da mulher era como um santuário”. Continua:

[...] até que se dizia assim: _ A honra da mulher é mais fina do que a honra da moça, porque a mulher tem um marido pra preservar, tem os filhos, então eu acho que o sexo era falado com muita cautela, ela talvez lesse vários livros nera, porque não era comentado a gente não falava sexo pra uma mulher casada, nem se falava em sexo pra uma moça, ninguém saia comentando esse tipo de coisa, então era uma coisa muito sublime, muito reservado, muito respeitado, o sexo era assim uma coisa sublime, onde ele tinha que ser muito bem tratado, e muito bem cuidado nera, não era com todo mundo que a gente conversava sexo, pelo menos é como eu já to lhe dizendo na minha casa ninguém falava em sexo. (Ibidem.)

D. Eunice Martins nos relata que sexo era um assunto proibido, falava-se escondido. Somente com o passar dos anos e com a vinda da televisão foi que facilitou a conversação das pessoas sobre este assunto.

Era de enorme relevância e integridade a moça manter-se pura até o casamento. Pois segundo Rachel Soihet (SOIHET, Rachel. Mulheres Pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) as moças que permitiam que um rapaz lhe desviginasse perdiam completamente a garantia a qualquer consideração e, no caso de uma relação inautêntica, os homens não sentiam-se responsabilizados, devendo as mulheres sozinhas arcarem com o peso das consequências do seu erro.

Eunice Martins nos fala da importância que era casar virgem, pois as mulheres tinham medo de serem abandonadas, por isso deveriam preservar a sua honra até a noite de núpcias, era esse o seu papel. Caso alguma delas descumprisse a sua obrigação eram consideradas imorais e mal vistas pela sociedade:

[...] casei virgem, com oito anos de namoro, o namoro mais chegado do mundo, ainda casei virgem, as moças não “dava” não, tinha que ter honra pra casar porque era muito importante a noite de núpcias foi muito importante, e as moças faladas meu Deus, as que tinham algum programa coitada das pobres sofriam muito e muitos namorados deixavam, os homens também faziam a parte ruim deles né, abandonavam muitas das mulheres as vezes, eles faziam pra experimentar, eu não sei pra que era que eu não sou homem, não sei como era, só sei que muitas foram abandonadas. (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins,op.cit.)

Conforme nos fala Maria Ângela D’Incao (D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) foi possível um desaperto da vigilância e do controle sobre a movimentação e as atitudes femininas, porque as próprias jovens passaram a se automonitorar, consequentemente aprenderam a se comportar. E deste modo aconteceu com as jovens ipuenses que viviam amedrontadas pelo fato de serem largadas caso cometessem alguma imprudência.

A condição das mulheres desquitadas diante da sociedade, não foi das mais amigáveis. Sofriam muito com os olhares e comentários preconceituosos de toda a comunidade e tinham a sua conduta moral constantemente vigiada. Para Rolnik:

As mulheres desquitadas ou as que viviam concubinadas com um homem desquitado sofriam com os preconceitos da sociedade. Frequentemente consideradas má influência para as "bem casadas", recebiam a pecha de "liberadas" e ficavam mais sujeitas ao assédio desrespeitoso dos homens. A conduta moral da mulher separada estava constantemente sob vigilância, e ela teria de abrir mão de sua vida amorosa sob o risco de perder a guarda dos filhos. Estes já estavam marcados com o estigma de serem frutos de um lar desfeito. Apenas para o homem desquitado o controle social era mais brando, o fato de ter outra mulher não manchava sua reputação. (ROLNIK, Suely. Guerra aos gêneros. Estudos Feministas. IFCS/UFRJPPCIS/UERJ, v. 4, n. 1, p.636, 1996. apud GUIMARÃES, Solange Alves. A mulher e o fim do casamento entre 1924 e 1950 (Poções – BA). UESB, p.7.)

Diante desta situação em que as mulheres desquitadas viviam, D. Eunice Martins prossegue dizendo que na cidade de Ipu embora as mulheres tivessem uma relação conflituosa com seus maridos, elas não se separavam, pois preferiam sofrer abusos, do que ficarem mal vistas pela rígida sociedade da época:

Não, se separavam não, morriam de peia e não saia (risos), a mulher não tinha nenhuma liberdade, porque mulher separada do marido na época não valia nada então elas preferiam né naquela época, ficar com eles. Mas aí eu não sei por que eu nunca Graças a Deus tive problema com essa criatura aí meu marido (risos). Não era pra ficar com ele até morrer porque elas diziam na época que o que Deus uniu o homem não pode desunir (risos) era a máxima da época. (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

Na década de 1950 a desigualdade entre os papéis femininos e masculinos prosseguiram explícitas, o trabalho feminino ainda estava continuamente cercado de preconceitos. A família considerada modelo ainda tinha o homem como a autoridade familiar, responsável pela subsistência da esposa e dos filhos.
A mulher ideal tinha como papéis definidos, os serviços domésticos, o cuidado dos filhos e do marido, e como características próprias a doçura, o instinto materno e a resignação, este era o destino natural das mulheres. Para Pinsky a participação no mercado de trabalho, a força, o espírito aventureiro, eram práticas consideradas masculinas. A mulher que não seguisse o seu destino estaria indo contra a natureza, pois desde criança a menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar.

Ainda de acordo com o depoimento de D. Eunice Martins o papel da mulher ipuense era casar-se, ter filhos e ser uma boa esposa, para aquelas que se destacavam e ainda tinham oportunidades o mais que se podia almejar era ser professora, pois as profissões liberais eram designadas somente aos homens. Ainda confessa ter tido bastante vontade em formar-se em direito, pois achava linda a advocacia, mas seu pai lhe disse que formaria apenas seus filhos homens.

Para aquelas que viviam em função do marido, restavam-lhes após o casamento a função de cuidar da casa e dos filhos, mas para as nossas entrevistadas que ambicionavam sua independência e trabalhavam como professoras antes mesmo de formalizarem uma união, após casadas deixavam seus filhos e sua casa sob os cuidados de alguém de sua confiança que seriam suas ajudantes do lar, mas mesmo depois de uma jornada intensa de trabalho as mesmas tinham as suas responsabilidades e não deixavam de averiguar se tudo corria corretamente. Como bem discorre D. Gonçalinha Aragão em sua narrativa:

Na minha casa, a minha responsabilidade com o meu marido nera, porque eu não podia colocar um trabalho, meu trabalho acima das minhas obrigações com meu marido, então sempre eu tava vendo como era que tava, chegava e olhava como era que tava o almoço se tava do jeito que ele queria a roupa dele se tava organizada, nunca deixei de assistir uma missa desde que eu me casei até hoje, 30 anos, [...] sempre fui a missa aos domingos, sábado eu já tava preparando a roupa dele pra gente ir a missa, a dele e a minha já tava tudo no ponto pra não ter nenhum problema nér, e também cuidava da minha mãe, que meu pai faleceu e minha mãe ficou morando comigo e agora essa questão de cozinhar, lavar, sempre agente teve, eu sempre tive alguém minha mãe também uma pessoa que ajudava, trabalhava na cozinha, também eu não dispunha de tanto tempo pra trabalhar em cozinha e nem engomar não, sempre tinha pessoa que lavava, engomava e pessoa que cozinhava, mas eu sempre trabalhei e sempre conciliei e num vou dizer que é um casamento perfeito tão perfeito, eu também tive problemas de contornar dificuldades financeiras, vida mesmo a dois, nem muitas coisas eu também eu gostava né, que eu tive que renunciar a uma vida que eu tinha... (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Segundo Eunice Martins a independência da mulher desestruturou muitos casamentos, “porque o homem era acostumado a mandar né, num to me referindo ao meu caso, é de um modo geral né, eles era acostumado a mandar, as mulheres obedeciam, então quando as mulheres começaram a igualdade nera, houve muita separação, muita mesmo.” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

Mas de acordo com os relatos de Maria do Carmo, a sua independência financeira jamais abalou seu casamento, a mesma desde os 15 anos de idade tinha a educação como o seu ofício e foi dela que ela pode sustentar as suas tias que as criaram desde a infância e seu esposo jamais se opôs a isso. Vejamos:

Não, pelo contrario, eu era quem estava como professora, eu terminei o curso normal com 15 anos de idade, eu me lembro que com 4 anos de idade eu fiz a primeira carta, eu já lia e já escrevia, que elas me ensinavam também em casa e eu estudava particular na D. Valdemira, aí depois, pois bem e eu ganhava o meu dinheiro aí eu fiquei vivendo, aí eu tinha a minha independência financeira que depois eu ganhei um contrato do estado então eu me sustentava e ainda ajudava as duas outras velhinhas que uma morreu logo, fiquei vindo todo dia trazendo tudo pra elas e ajudava e tudo. Agora que ele botava do bom e do melhor dentro de casa comprava roupa bonita eu nunca usei, nunca usei pintura, nunca devido aquela tristeza de nunca ter tido mãe e ter perdido tudo, aí isso aí me desestimulou sabe, aí ele dizia Maria bote uma tintazinha aqui, aí eu dizia não você me conheceu sem tinta me tolere sem tinta. (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo, op.cit.)

Segundo Gonçalinha Aragão para o casamento ser duradouro, não dependia totalmente da submissão da mulher e sim de uma complacência entre o casal para que saibam se entender, perdoar, renunciar e contornar as mais variadas situações que se apresentam em uma união. Continua, dizendo que na sua época muitos casamentos não davam certo devido à frequentes traições do marido, mas as mulheres ditas sofredoras guardavam toda a sua angustia para si e continuavam submissas aos seus esposos:

Na minha época tinha muita coisa difícil, muitos casamentos que não davam certo, muitas traições né, mas geralmente a mulher era mais, ela guardava mais aquilo pra ela, é quase como você diz uma submissão. Hoje não, não da certo casa num dia no outro dia não da certo, ela separa e antes não ela ficava às vezes a gente sabia, eu escutava: _ olha a Dona fulana é uma sofredora, o marido dela faz determinadas coisas mas tem quem saiba, ela aguenta calada. Quer dizer então eu posso concluir que na minha época tinham, já haviam muitas mulheres que sofriam caladas e tinham muitas mulheres também, talvez que não trabalhavam por submissão, que os maridos também não deixavam, tinha que ser aquela mulher que tinha que ficar dentro de casa cuidando da casa, cuidando dos filhos e cuidando do marido, eu tive essa Graça grande que Deus me deu, eu tive esse marido que nunca me pôs empecilho algum né, no meu trabalho, na minha vida, mas eu acredito que teve ainda muitas mulheres desse jeito. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

De acordo com o depoimento de nossas entrevistadas haviam as moças mal faladas pela sociedade da época. Qualquer desvio já era um motivo para estar falada, por menor que ele fosse. Seu comportamento era bastante regrado e vigiado não somente pelos familiares como por toda a cidade e isso poderia até dificultar-lhes de arranjar um marido. Conforme nos explica Pinsky:

Ficava mal a reputação de uma jovem, por exemplo, usar roupas muito ousadas, sensuais, sair com muitos rapazes diferentes ou ser vista em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades com um homem. Os mais conservadores ainda preferiam que elas só andassem com rapazes na companhia de outras pessoas – amigas, irmãos ou parentes, os chamados seguradores de vela. Também seria muito prejudicial a seus planos de casamento ter fama de leviana, namoradeira, vassourinha ou maçaneta (que passa de mão em mão), enfim de garota fácil, que permite beijos ousados, abraços intensos e outras formas de manifestar a sexualidade. (PINSKY, Carla Bassanezi. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 2012, p. 612. Op. Cit.)

No que se refere ao Ipu dos velhos tempos: “Namorar no escuro, namorar no Paredão, saí dos bailes só os dois” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.) já eram motivos suficientes para se estar mal faladas e no dia seguinte enfrentar os olhares e comentários preconceituosos de toda a cidade. “As moças faladas era difícil até se casar, porque o povo falava muito, às vezes nem era muita coisa, mas devido o preconceito da época” (Idem.), tudo se tornava um motivo para o falatório: “Ave Maria fulana beijou fulano e nem casou” (Ibidem.).
  
O que podemos observar pelo que nos foi relatado pelas depoentes é que não foi somente o fato das moças frequentarem locais escuros e impróprios como o Paredão que a fizeram ser vistas negativamente. O modo como falavam, vestiam e comportavam-se também eram justificativas para se tornarem mal faladas. Segundo Gonçalinha Aragão toda jovem deveria ter ética e moral para ser bem vista pela sociedade:

Existiam, existiam as mal faladas e tinha muitas mal faladas (risos), a gente já dizia fulana de tal é mal falada, a outra sai, bebe... existiam as mal faladas que as vezes nem era, coitadas, nem era tanta coisas que faziam pra ser mal faladas, mas como naquele tempo a moça tinha que ser de uma linha[...] de uma ética e uma moral muito elevada né, a pessoa não podia nem falar com um homem casado, se falasse com um homem casado no outro dia a gente tava com nome da gente na rua. _ Vixe fulana de tal tava conversando com um homem casado. Se a gente cruzasse uma perna meio desajeitada, lá se vai, o comportamento tava lá em baixo, Nossa Senhora um cigarro Deus me livre, um copo de cerveja nem pensar, então era desse jeito. Se andasse com uma roupa de alcinha, ou com a costa nua._ oh aquilo ali é uma galinha, se andasse com um vestido mais curtinho era uma galinha, era de todo homem, homem casado. Então eu acho que a gente deveria ter aquela moral e [...] um bom comportamento pra que não fugisse as regras da sociedade, o que a sociedade ta pedindo né um bom comportamento né, ética e moral, a gente não podia falar com homem casado, num podia falar com deboche na rua, nome feio, essas coisas assim você não via, o falar o linguajar tinha que ser uma coisa muito bem pensada e muito bem cuidada. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

O casamento era um evento bastante esperado pelas mulheres da elite ipuese. Embora nossas entrevistadas aguardassem ansiosamente este dia os seus casamentos foram simples e durante o dia, mas as mesmas não preocuparam-se com isso e sim com a união que estava sendo consagrada. Segundo Eunice Martins:

Casar é a ideia de ontem de hoje e será de amanhã, toda mulher hoje... anseia um casamento, porque o casamento, o homem né, é a parte que complementa a vida sexual da mulher e da a vida a outras vidas então eu acho que toda mulher aspira um casamento, não sei se elas aspiram mais um casamento de véu e grinalda ou se elas acham que casar é simplesmente se juntar eu não sei porque eu não vivi esse problema, eu queria era casar (risos). (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.).

Na cidade de Ipu, como já foi dito anteriormente, havia um Clube denominado Artista, destinado para o divertimento de mulheres e homens das classes menos favorecidas, mas este Clube também recebia a presença de homens pertencentes a elite que iam para aquele local segundo nossas entrevistadas por sentirem-se mais a vontade no vestir, no beber, pois no Grêmio Ipuense todos deveriam ir muito bem trajados e comportarem-se muito bem, não podendo passar dos limites.
As mulheres da elite não deveriam de forma alguma frequentar este ambiente, “porque as moças de família não podiam estar junto das pirão frio, pirão frio eram as empregadas domésticas que eram chamadas nera, na época e os homens não tinham esse preconceito não, frequentavam iam naturalmente né, dançavam com as pirão frio, era besteira de mais, era só preconceito e nada mais.” (Idem.)  Conforme Gonçalinha Aragão havia-se um machismo muito grande instaurado naquela sociedade:

Preconceito, machismo, individualismo, eu acho, porque assim era totalmente uma separação nem as moças que frequentavam o Grêmio Ipuense não freqüentavam lá o Artista, nem as do Artista freqüentavam, porque as do Artista a gente já sabia por que, poder aquisitivo, por problema de família, cor, né, existiam esses itens aí, não freqüentavam. Agora os homens que frequentavam o Clube, freqüentava o Artista, mas as mulheres não, então era um machismo, um preconceito, uma discriminação, um racismo, é entrava aí uma série de coisas, moça de família, moça que se presa não vai lá pro Artista. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Sabemos que as mulheres tiveram a sua imagem construída por meio dos discursos morais cristãos que estabeleceram padrões de comportamento feminino que deveriam ser seguidos, para assim andar conforme os modelos veiculados e defendidos pela Igreja Católica.

De acordo com Losandro Antonio Tedeschi  (TEDESCHI, Losandro Antonio. História das Mulheres e as Representações do Feminino. Campinas: Editora: Curt. Nimuendajú, 2008. P.144.), as identificações femininas criadas pelos fundamentos e princípios da Igreja continuam evidentes no imaginário feminino. Estes conceitos impeliram diversos padrões de comportamento religioso e doméstico às mulheres, estimulando-as a praticarem, a obediência, a virtude, o silencio e a imobilidade em prol da ética cristã.

E foram justamente estas, as práticas de comportamento impostas pelo Pároco de Ipu. Foram criadas associações como as Luizas de Marilac e as Filhas de Maria para que as mulheres ipuenses andassem sempre em consonância com as virtudes de “natureza perfeita e inatingível de Maria” (Idem.), contrapondo-se sempre a desobediência e “natureza pecaminosa de Eva” (Ibidem.). Eunice Martins assim descreve essas associações, e seus membros:

Elas eram vistas como pessoas é, importantes né, na sociedade, eram vistas já como reflexo da virgem Maria é por isso que existia muita Filha de Maria, muita gente que freqüentava a igreja, muitas associações religiosas, tinham muita porque a gente achava que devia..., por exemplo nós lá em Nova Russas né , era Legião de Maria a gente tinha que ter as virtudes da virgem, embora nem parecesse que era, mas de qualquer maneira só aquela vontade de ser boa nera, aquela vontade de ser pura, já era alguma coisa, embora num fosse nem muita coisa, mas a gente tinha um pensamento é mais puro do que as moças de hoje, é eu acho, devido a criação, devido aos colégios também, as associações, os exemplos, a própria formação.(Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

As moças ipuenses poderiam frequentar diversos espaços de lazer, mas sempre acompanhadas, geralmente por alguém mais velho e de responsabilidade. De acordo com Eunice Martins, “num precisava nem pai, nem mãe e nem irmão, mas tinha uma senhora que ia pra vigiar as moças, pra num ganhar aqueles arbustos lá da Bica (risos), a gente era muito vigiada né, então tinha aquela senhora que sempre, aquelas senhoras que fazia os piquenique e convidava a gente [...]” (Idem.).

Conforme Eunice Martins as mulheres eram vítimas de muitos preconceitos e deveriam seguir os modelos rígidos impostos pela Igreja e pela sociedade, não podendo frequentar lugares sozinhas nem mesmo adentrar na Igreja com vestidos acima dos joelhos e braços a mostra:

Muitos, sofriam muito preconceito, preconceito que não podia andar só, num podia andar na rua, num podia vestir vestido decotado, num podia entrar na igreja de manga curta, tinha os casacos que a gente botava por cima dos vestidos, era muita coisa, era muito cheio de preconceito, mas a gente se acostumou com aquilo, ah e pra poder entrar na igreja quando não queria ir de casaco tinha os cano que a gente colocava aqui, ninguém usava manga assim não sabe era manguinha curta mesmo aí a gente coloca os cano aqui assim, era besteira nera, hipocrisia eu achava uma hipocrisia, eu acho que do jeito que a gente é tem que entrar na igreja a gente é a gente em qualquer lugar, mas aí era exigência do padre nera, botava pra fora se tivesse mulher de manga curta na igreja, botava pra fora, aí a gente não ia pra não ir pra fora e vestia o casaquinho da gente por cima do vestido nera ou então botava os canos e as filhas de Maria era de meia, não andavam sem meia nem pra fazer as compras na feira, as filhas de Maria era tudo de meia, rígido né e elas usavam fita azul que eram filhas de Maria. (Ibidem.)

Com o intuito de progredir e modernizar os espaços da cidade de Ipu foi travada uma verdadeira luta para extinguir do centro da cidade práticas como a prostituição, para isso houve-se um aumento do controle e da vigilância e foi necessária a mudança destes locais destinados ao amor livre para bem distante das proximidades da cidade agora limpa e organizada.
É fato que as mulheres públicas resistiram vigorosamente às tentativas de domínio e enfrentaram a tudo e a todos para prosseguir utilizando os espaços da cidade e lutaram ainda contra os preconceitos sempre associados a sua imagem como a imundície, o vício, e a depravação moral.

E foi por meio desta busca de controle ao meretrício que surgiram os cabarés de mais destaque na cidade de Ipu na época: a Vila Nova e o cabaré da Maria Maga, localizados no atual bairro da Caixa D’água e nas proximidades do bairro das Pedrinhas respectivamente. Na época eram praticamente desabitados e afastados da área central. Vejamos:

Havia a vila nova ali depois da igreja era o cabaré, e o cabaré da Maria maga era lá nas pedrinhas, ninguém andava nem nas pedrinhas acolá onde é hoje a estrada né, em frente da cadeia publica que hoje é secretaria de cultura dali daquela cadeia onde era a cadeia velha pra lá era as mulheres da vida né, e também lá em cima também era das mulheres da vida onde as moças não podiam andar. (Idem.)

Segundo o memorialista Francisco de Assis Martins, até por volta de 1958 as meretrizes tinham um horário reservado para circularem na cidade para poderem comprar seus mantimentos, se fossem vistas circulando fora do horário destinado a elas, as mesmas eram presas pela polícia que garantia a segurança da cidade, como bem ilustra Eunice Martins:

Tinham o horário delas circularem, naquele horário as moças não iam, nem as mulheres casadas só elas pra fazer as compras rodiar o mercado e ir atrás do que precisava nera pra elas e a partir daquela hora elas se isolavam, ah e iam pra estação vê a chegada do trem, elas iam mas tinha lá uma árvore que elas tinham que ficar lá naquela árvore não podiam também ta transitando no meio do povo era muito preconceito. Se ficasse aqui depois das 8:30 iam direto pra cadeia. (Ibidem.)

Ainda de acordo com os depoimentos de Eunice Martins houveram muitas moças que se envolveram de maneira mais íntima com seus parceiros sem serem casadas e estas ficavam marcadas na sociedade principalmente se não casassem com os seus respectivos namorados:

Muitas, muitas outras se recolhiam né, nunca mais saiam de casa, outras iam era se dar bem por aí iam embora né, mas era sempre uma pessoa marcada, era sempre uma pessoa marcada por tanta coisa, mas geralmente eles casavam né, porque os pais se entendiam né, geralmente era a mulher bulida como chamavam se tava bulida os pais pelejavam lá pra fazer o casamento se não desse certo tudo bem né (Ibidem.). O preconceito racial se fez presente desde muitos anos na cidade de Ipu. As famílias da alta sociedade não permitiam de maneira alguma que suas filhas casassem com homens de pele escura causando assim a fuga dos namorados que quando retornavam “já tinha acontecido o acontecido aí era o jeito” (114 Ibidem.) casarem-se mesmo contra a vontade dos pais.

Como vimos, muitas vezes o namoro não desejado pelos pais encorajou o rapto da moça pelo pretendente. O rapto deveria ser consentido pela moça, com promessa de casamento feita pelo rapaz. De acordo com Miridan Falci, “o rapto ou a sedução, como os parentes julgavam na época, trazia contrariedades para a família e cabia ao poder masculino, patriarcal, caso não houvesse casamento, resolver o problema: interpelar o sedutor e obrigá-lo a casar. Moça raptada que não casou virava “mulher perdida”.” (FALCI, Miridan Knox. Mulheres do Sertão Nordestino. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.)

Conforme salienta Eunice Martins, “esse preconceito era grande não podia casar com negro não, nem moreno, tinha que ser branco com branco, moreno com moreno e negro com negro, olha a besteira como se o espírito, se a alma tivesse cor” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.).

A mulher da alta sociedade que casasse com um homem de cor, era censurada pelos olhares da sociedade. O Stélio “era um moreno muito educado, muito gentil e muito respeitado né, mas ela sofreu muito a Maria Alda, porque casou com ele ainda existia preconceito, mas ela tinha a cabeça levantada né e foi pra frente e deu certo o casamento” (Idem.). A entrevistada refere-se ao caso mencionado anteriormente, o qual o baiano Stélio, um homem de pele negra que veio para a cidade de Ipu gerenciar o Banco do Brasil, casou-se com a Maria Alda, uma moça branca e de família rica.

Quando indagada se a família foi contra o casório, Eunice Martins nos conta: “eu nunca ouvir falar que não queriam não, acho que nunca se incomodaram com isso não, porque já era melhor né, nessa época não era tão arraigado este sentimento de preto e de branco não, na época não, mas o povo ainda falou muito, mas ela nem ligou, casou e pronto, e a família toda respeitou, e outra que aqui no Ipu todo mundo respeitava o Stélio, era uma pessoa maravilhosa, muito educado, muito melhor que certos branco e amarelo.” (Ibidem)

Para se ter algum tipo de relação amorosa, a moça deveria arranjar um bom partido que tivesse atributos que estariam dentro dos quesitos que seriam indispensáveis pela família como: ser de cor branca, necessitaria ter ética e moral, não poderia ser um homem que bebesse constantemente, deveria ter uma boa estrutura econômica e religiosa. Gonçalinha Aragão diz que sua mãe sempre aconselhava quem era o melhor para se relacionar com ela, e segundo nossa entrevistada ela nunca contrariou a vontade de sua mãe:

[...] minha mãe me dizia assim:_ Olha esse aqui é o melhor. Ninguém nem, eu nem me atrevia a ir pra uma situação que não fosse né, do querer dela, mas a questão de namoro de outras coisinhas de amizade ela sempre existia um preconceito né, por exemplo se fosse uma pessoa de cor tinha um preconceito né, se não fosse uma pessoa que tivesse moral tinha um preconceito, se fosse um cara que bebesse e vivesse nos botequins bebendo tinha preconceito nera, se num fosse assim uma pessoa que tivesse uma estrutura uma religião tinha o preconceito, porque sempre minha mãe queria o de melhor pros filhos, então ela sempre orientava nesse sentido, mas tinha um preconceito, tinha sim (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Conforme salienta Pinsky (PINSKY,Carla Bassanezi. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 2012, Op. Cit.), a partir da década de 1950, a escolha matrimonial já não cabia mais aos pais e sim aos enamorados. Entretanto, a influência familiar, ainda que menor que nos tempos do casamento arranjado, continuava firme e reconhecida como uma prudência que os pais deveriam ter com o futuro dos filhos. O consentimento dos pais também era considerado de grande importante para a felicidade conjugal dos filhos.

Prossegue Gonçalinha Aragão, dizendo que sua mãe vez por outra implicava com seus amigos ou pretendentes a um namoro. Lembra-se que certa vez...

... um deles ela não queria, ela botou na cabeça que não dava certo, e eu me lembro como se fosse hoje, [...] eu tava com ele nessa casa, na parte de baixo e ele era engraçado, ele era até do banco o rapaz, não era daqui, mas ela cismou, ela disse que aquilo ali num dava, num era pra mim, e um dia ela chegou e recebeu uma farinha, [...] e foi desocupar o saco de farinha lá dentro, quando ela voltou ela sacudiu o saco de farinha e o cara tava com uma calça assim escura e a calça do rapaz ficou quase toda assim cheia de pozinho branco sabe, foi uma das vezes. (Idem.)

O preconceito com pessoas negras se fez bastante presente na cidade de Ipu e em sua família também, como recorda Gonçalinha Aragão. Lembra-se ainda de quando sua mãe a viu com um rapaz de pele escura reagindo muito mal e com certa deselegância:

[...] quando eu trouxe um amigo aqui que era de cor e ela achava que eu tava namorando né, uma pessoa aqui que era de cor bem escura e ela passou até mal ela disse:_ Eu num acredito, eu não to acreditando que minha filha tenha esse amigo, eu não to acreditando. A reação dela foi horrível. Quando ele saiu eu cheguei e ela tava deitada e eu disse: Ein, o que que a mamãe tem?; _Porque eu não acredito que você vai ter amizade com esse cara. Então ela tinha e meu pai também tinha preconceito.[...] Quando eu via que o negócio tava muito, tava assim pesado pra mim entendeu que não ia dar certo aquela rixa com mãe e com pai que eu amava minha mãe e meu pai que eu tinha amor por eles que talvez eu até me sacrificasse, fazia tudo por eles, então eu ia saindo de jeitinho e acabava e aí pronto tava conversado e eu não me lembrava mais, aquilo ali era uma pedra em cima e acabosse, procurava sempre fazer as vontades dela (Ibidem.).

Conforme já foi visto em nosso primeiro capítulo, o Jardim de Iracema era um espaço destinado apenas para o divertimento da elite ipuense, local onde as jovens poderiam ouvir a banda de música tocar no coreto e passear em volta ao jardim para flertar e conversar. As mulheres pertencentes à alta sociedade só poderiam frequentar ambientes apropriados para a sua classe social. Gonçalinha Aragão assim o descreve:

O jardim de Iracema era as pessoas da elite, a fina flor né, as pessoas de sociedade, as moças da sociedade nera, tinha o coreto, o coreto no meio da pracinha ali tinha uma banda de música as moças iam sentar lá ou então passear lá no passeio né e ali elas encontravam as amizades suas amigas os namorados sentavam na pracinha pra escutar música e era essa moça de sociedade que se chamava de elite de família que frequentava lá [...] (Ibidem.)

Já as moças de baixa condição, vulgarmente denominadas de “pirão frio”, frequentavam a Praça 26 de Agosto, não poderiam de forma alguma juntarem-se as mulheres da elite e estas não deveriam aproximarem-se do Paredão pois corriam o risco de ficarem faladas na cidade.

[...] porque a outra turma nera, era aqui na praça 26 de agosto, era geralmente chamavam as pirão frio eu achava isso ridículo nera e tinha também o paredão o paredão era um local não muito conveniente era muito bonito, era cheio de jarros plantados, porém não era lugar pra gente né, uma moça de família, uma moça da sociedade ir namorar lá no paredão, então eu namorava mais em casa, na pracinha nera, ou no clube quando ia para o clube ou no cenáculo mas nada de paredão. (Ibidem.)

Gonçalinha Aragão confessa ter se encontrado escondido com um namoradinho seu de infância, “toda adolescente faz uma travessura na sua vida e essa eu fiz né, mas assim só de conversa e até logo e pronto, mas paredão era um lugar que ninguém ia pra ter conversas não, não sei porque, porque é tão bonito, era só a pracinha” (Ibidem.).

Segundo Gonçalinha Aragão os religiosos da época não interviam em seu cotidiano, pelo contrário, o Monsenhor Moraes os orientavam, “a igreja formava a personalidade, o caráter da jovem né, da mulher” (Ibidem.). Houveram ainda os encontros de casais a qual participou, “mas eu nunca presenciei a igreja intervir em nada pelo contrário a igreja orientava os casais [...]” (Ibidem.).

Mas em seguida nossa entrevistada nos conta que o monsenhor ditava como deveria ser o comportamento da mulher ipuense. “Eu peguei uma época que usava véu, era mocinha bem nova, não podia andar de vestido, não podia entrar na igreja de manga cava e nem de vestido de alça, nem transparente” (Ibidem.). O comportamento deveria ser exemplar:

a gente podia rezar o terço dentro da igreja né, só depois que aboliu e hoje em dia a gente participa né da celebração, mas também o padre ficava de frente para o altar e todo mundo calado, então existia um respeito assim total, assim sublime mesmo, a missa era em latim só depois é que mudou sabe, mas era um comportamento que a gente tinha que ter na igreja, que a gente não escutava assim nada nenhuma palavra. (Ibidem.)

Por outro lado, Gonçalinha Aragão parece não interpretar a ação de orientação da Igreja como uma intervenção, um controle do comportamento feminino.
Em virtude da carência de professores com boa formação ainda durante o Império, foram reivindicadas escolas de formação para professores. Já em meados do século XIX devido a tantas reclamações foram criadas em algumas cidades do país as primeiras escolas normais, destinadas à formação de docentes.
Contudo a prática docente no Brasil se iniciou com homens, foram eles que se ocuparam do magistério com mais frequência. Mas ao serem criadas as escolas normais, o objetivo era formar professores e professoras que atendessem o aumento da demanda escolar. Mas conforme salienta Guacira Lopes (LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na Sala de Aula. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.449.), os relatórios informavam que as escolas normais estavam formando mais mulheres que homens, estava havendo uma “feminização do magistério”.

Este processo passou por muitas resistências e críticas. Quando a mulher passou a ser responsável pela prática docente foi alvo de muitas discussões. Para alguns, entregar a missão de educar crianças, as mulheres, era totalmente imprudente, pois elas eram “despreparadas e portadoras de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso”.” (Idem.)

Mais tarde quando justificada a saída dos homens para profissões mais rentáveis, passava a ser legitimada a entrada das mulheres nas escolas. Com isso o magistério passa a ser uma profissão feminina, pois para este ofício deve-se conter características como paciência, afetividade e doação, consideradas próprias das mulheres.

Em 1942, foi inaugurada na cidade de Ipu a Escola Normal Rural, por iniciativa do professor Heleno Gomes de Matos, contando com o apoio das autoridades locais. Esta foi a primeira escola criada em Ipu, que tinha como propósito a formação de professores. Em julho 1951, a Escola foi transferida para o Patronato Sousa Carvalho, sob a direção da Irmã Nogueira.

Eunice Martins concluiu seu Curso Normal no colégio Patronato Sousa Carvalho que tinha seu ensino direcionado apenas para a educação das jovens ipuenses preparando-as para serem futuras educadoras, sempre tendo como base os preceitos cristãos tão pregados pelas freiras e pelo pároco da cidade.
A respeito desta instituição a mesma nos conta que estudou lá durante dois anos “e era muito bom, a irmã Nogueira era uma mãe pras alunas conversava com a gente normalmente, fazia tantas perguntas preparava a gente, era uma freira de outra época que tinha a mentalidade de hoje, Irmã Nogueira que foi a primeira diretora do Patronato” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)

A entrevistada prossegue dizendo que não conseguia se recordar muito bem quais eram as disciplinas estudadas no Curso Normal. Mas lembra-se que estudavam português, matemática entre outras sempre voltadas para a preparação pedagógica. Quando a indagamos se o ensino era rígido, a mesma nos fala:
Rígido não, era totalmente liberal porque existia uma Valdemira Coelho que era uma professora muito boa, que alfabetizava todo mundo aqui, tinha uma escola particular e quando fundaram o Patronato ela passou pra lá, foi a Fortaleza fez concurso, fez cursos, fez tudo e passou a ensinar no Patronato, então era uma verdadeira mestre, Valdemira, Irmã Nogueira, Irmã Rosali, todas já tinham o pensamento de hoje, hoje eu me admiro como é, quando eu vejo os trabalhos né, que agente já fazia desse jeito. (Idem.)

Já Gonçalinha Aragão que também estudou no Centro Educacional Sagrado Coração de Jesus Patronato Sousa Carvalho até a quarta série, tem uma opinião bastante divergente sobre o colégio, para a mesma a educação pregada pelas freiras era muito rígida:

muito rígido por sinal, [...] você não podia chegar atrasado, você quando faltava o pai ia lá, se existisse alguma indisciplina alguma coisa o pai era chamado lá na secretaria né, na presença do filho era onde ele recebia conselhos e a gente também recebia conselhos, a farda tinha que ser da mesma altura que era três dedos abaixo do joelho, com aquelas meias cano longo, tinha que ficar em determinada altura da perna e tinha que a gente ir tudo engomado, num podia ta amassado, num podia ta descosturada a barra da saia e antes de iniciar as aulas a gente ficava perfilados, todo mundo perfilado na galeria cantando e tínhamos um respeito muito grande aos nossos superiores, todas as freirinhas eram muito bem respeitadas, mesmo que a gente visse qualquer coisa que a gente num tivesse aceitando a gente não dizia nada ficava calada né, em sala de aula a gente era super atenciosa deveres cumpridos, cadernos cobertos, livro tudo, lápis impecável era muito rígido o colégio. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Prossegue a entrevistada dizendo que as freiras eram tão rígidas ao ponto de proibi-las de brincarem com as sombrinhas quando saiam da escola em dias de chuva, como também não poderiam usar a farda em outros locais, a não ser dentro do ambiente escolar, “era muito rígido a educação era muito rígida”. (Idem.)

Os uniformes eram padronizados para todos os colégios vicentinos, não podendo de forma alguma suas alunas irem diferentes umas das outras.“ Teve uma época que era uma blusa de lingerie e manga comprida que era a roupa de gala, com o chapéu [...] o colégio aqui era comparado com o colégio da Imaculada Conceição [...] em Fortaleza [...] o colégio daqui tinha que fazer do mesmo jeito, não podia ser uma diferente da outra, inclusive o chapéu era comprado mesmo lá no colégio, sapato também, era tudo o uniforme impecável” (Ibidem.).

Gonçalinha Aragão lembra-se muito da Irmã Rosali que era uma freira que amedrontava a todas as alunas, pois prezava bastante que estas andassem em consonância com os padrões da escola. “Ela não permitia que as barras da saia fossem descosturadas e uma vez eu vi, assim na minha frente tinha uma aluna que foi com a saia descosturada, ela chegou olhou, olhou assim, aí pegou e fez shizzzz, aí descosturou, aí não disse nada, a menina entendeu que não estava com a farda do jeito que era pra ir” (Ibidem.)

Recorda-se do terço em que rezavam na capela da escola sempre antes de começar as aulas ou ao final destas. Das freiras que ministravam as aulas e dirigiam o colégio e das aulas que as preparavam para serem excelentes donas de casa:

O terço era antes de começar a aula ou já onze meia, todo mundo com fome ainda tinha que meia hora rezando um terço na capela e tinha os retiros nera também tinha os retiros, então era uma educação rígida, muito apurada a irmã Rosali era uma professora excelente de português, [...] tinha a Irma Marta que era da cozinha também, tinha a Irma Bernadete que era Aragão que era filha aqui de cima da serra de São Benedito se não me engano, que dava trabalhos manuais, a gente tinha uma aula por semana de trabalhos manuais e de cozinha que preparava a gente exatamente pra ser dona de casa (bidem.).

Indagamos nossa entrevistada Gonçalinha Aragão se havia algum tipo de preconceito dentro do colégio, pois era sabido que lá estudavam também pessoas de classes menos favorecidas, acerca disso ela nos relata que:
[...] o colégio de manhã era só pras que tinham condição, como o colégio foi projetado pelos Carvalhos pra atender a população carente pobre então a tarde a clientela todinha delas era o pessoal pobre que não podiam pagar mas eu nunca presenciei assim discriminação delas com os pobres não entendeu eu via que eles recebiam uma merenda usavam o bebedouro porque também teve uma época que o normal passou a ser a tarde em que também os meninos né os pobres, os que tinham mais dificuldades financeira também estudavam a tarde mas eu nunca presenciei, tinha o mesmo tempo de aula recebiam os livros e tudo mais. (Idem.)

A mesma diz que nunca presenciou algum tipo de preconceito, mas logo menciona que o uniforme das alunas de baixa condição era totalmente diferente das alunas que pertenciam á elite. “Olha a farda não era a mesma já existia a descriminação.” (Ibidem.) Mas justifica essa diferença pelo fato delas serem crianças, “elas eram mais jardim nera, naquele tempo tinha o jardim I e jardim II, tinha a primeira série eu acredito que tivesse até a quarta série eu não me lembro” (Ibidem.)

Gonçalinha Aragão relembra com bastante entusiasmo os momentos de diversão com a chegada e a saída do trem da Estação de Ipu, este momento era considerado um lazer para todos os jovens da cidade que encontravam uma oportunidade para passear, conversar com os amigos, ver as pessoas chegando e partindo e namorar:

Ah a chegada do trem era bom demais era um momento de lazer,[...] era a diversão da cidade, o trem vinha de Fortaleza passava aqui às cinco horas da tarde né, então o lazer era as cinco horas da tarde que todo mundo ia pro passeio esperar o trem, isso era uma coisa muito boa ali a gente se juntava até arranjava namorado e arranjava flerte era os flertes com o pessoal que passavam no trem nera, e faziam aquelas moças e aqueles rapazes que vinham pra janela do trem aí papeava durante aquele tempo que o trem parava que ficava ali em 15 minutos, ah dava pra fazer muita coisa (risos) dava pra conversar, arranjar namorado, ali flertava, menina aquela era a hora do divertimento era um lazer, essa aí foi da cultura né pra você ver. (Ibidem.)

De acordo com o depoimento de Gonçalinha Aragão os divertimentos eram bastante reduzidos, pois naquele período as pessoas não tinham o hábito de viajar por conta das dificuldades que eram de se chegar a qualquer lugar, por isso havia-se uma valorização muito grande destes espaços de lazer dentro da cidade como: o Jardim de Iracema, o Cenáculo, o Grêmio Ipuense, os passeios na Bica e no Gangão e até mesmo a passagem do trem que para aquela pacata cidade tornava-se um momento importantíssimo de lazer:

Era todo mundo muito limitado, as diversões aqui eram muito limitada, o lazer das meninas aqui era muito limitado, era um povo que vivia mais dentro de casa, curtia mais sua cidade, mais sua casa, as coisas da cidade entendeu, a valorização tudo que tinha na cidade era tudo muito bem valorizado né, que a gente dava o maior valor porque era aqui que a gente vivia, tudo acontecia aqui dentro, por exemplo, o cenáculo os jogos de voleibol, de futebol de salão, era a chegada do trem, os passeios na bica, era as festas, era o chitão que era em julho nera, que era muito bom também tudo era aqui dentro, a pessoa não saia pra outras cidades, não ia outros estados, o pessoal valorizava era isso aqui mesmo. Então a gente tinha que arranjar alguma era pra se divertir aqui mesmo, era muito bom nera, o Ipu era como das grandes culturas. (Ibidem.)

As novelas pelo rádio bem como as leituras geraram um público eminentemente feminino. Os momentos de lazer entre as mulheres da elite possibilitaram um êxtase das novelas românticas e sentimentais. Conforme Maria Ângela D’Incao “as histórias de heroínas românticas, langorosas e sofredoras acabaram por incentivar a idealização das relações amorosas e das perspectivas de casamento”(D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.229.).

Gonçalinha Aragão recorda-se ainda do período em que não tinham televisão e ouviam as novelas pelo rádio, este seria mais um dos entretenimentos das jovens da época que ficavam encantadas com os belos romances e que após o almoço corriam para não perder nenhum capítulo:

A gente não tinha televisão, a minha nossa senhora, nós terminava o almoço meio dia uma hora a gente ia assistir a novela pelo rádio, o rádio minha filhinha nós tinha um rádio onde ninguém perdia a novela “o direito de nascer” era a novela que passava no rádio quem era que perdia “pinguinho de gente” de Gilda Abreu, ninguém perdia as novelas no rádio porque não tinha televisão então a gente ficava depois do almoço, já ta na hora da novela, aí sentava todo mundo né, ali perto do rádio e ali a gente chorava, a gente ria, tinha aquele sentimento tão grande no coração que a gente tinha impressão que tava vendo porque quando dizia assim :_ toca o sino num sei o que [...], o cara lá né, que tava lá no rádio né, narrando a novela batia os sinos e a gente tinha impressão que tava vendo né, era tão bem feito, era tão bem escrito, era tão bem narrado e era tão bem executado pelos locutores, que a gente tinha impressão que tava vivendo aquela vida ali, era o rádio, só depois que veio a televisão. Era um dos grandes divertimentos da gente inclusive tinha uma programação na radio Tupinambá de Sobral que era a hora das senhorinhas, ah essa hora das senhorinhas ninguém perdia (risos) porque quem fazia esse programa era o Gomes Farias e na época ele namorava com a minha irmã, a minha irmã ele chamava de gauchinha então ninguém podia perder esse programa né, que saia aquelas músicas lindas sentimental né, era a música do Nelson Gonçalves a normalista, então foi na época de Roberto Carlos, foi aquela geração daquelas músicas bonitas e sentimental que tinha conteúdo, que tinha história, que tocava o coração da gente nera, foi essa época. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)

Vimos que as mulheres da elite ipuense foram continuamente controladas para que preservassem os “bons costumes”. Os olhares da sociedade estavam estreitamente voltados para suas ações, sua postura, suas roupas e expressões. Inicialmente as suas participações no meio social era assumir integralmente as funções consideradas características de uma “mulher”, como esposas e mães responsáveis pela criação e educação de seus filhos.
Mas aos poucos o isolamento no lar foi sendo alterado pela intervenção cada vez maior e mais incessante dessas mulheres nomeio social. A presença nos mais variados espaços destinados ao lazer possibilitava uma movimentação mais livre pelas ruas, apesar de que as moças tivessem que apresentar-se de uma maneira reservada, evitando uma exibição indecorosa para elas e para os pais. Os princípios da decência, da moral e da família não poderiam ser desprezados, ao menos, por essas mulheres.

Além de passarem a frequentar os diversos espaços de lazer destinados a sua classe, as mulheres ricas passaram a assumir o importantíssimo papel de educadoras e uma parte considerável delas se encarregou de por em prática, através do assistencialismo, as obras direcionadas pelas irmãs de caridade e pela Igreja Católica.

As jovens moças, pertencentes aos segmentos privilegiados, foram classificadas como ícones da nobreza e distintas das classes abastadas, o desempenho social dessas mulheres foi permeado pelos preceitos da classe social a que pertenciam. Nem todos os lugares, nem todas as ações lhes eram autorizadas não podendo se misturar de forma alguma com as moças pobres da cidade.

As moças das classes populares há muito tempo foram estigmatizadas e ameaçadas a sofrer a vergonha de serem tachadas como “mulheres públicas”. Viviam uma dura realidade em que tinham que trabalhar fora para sustentarem a sua família porque muitas vezes os rendimentos de seus maridos não supriam as necessidades de seus lares. Em seguida veremos ainda, que o fato das moças das camadas populares estarem desde muito cedo envolvidas nas tarefas domésticas, no trabalho da roça e no cuidado dos irmãos menores, não possibilitou que a maioria delas tivessem qualquer forma de educação escolarizada.

2.2- “Pirão frio”: Cotidiano, estigmas e resistências das mulheres pobres.
Entrar nessa empreitada foi uma tarefa bastante árdua, visto que não foi fácil obter informações destas mulheres que há muito vivenciaram uma vida bastante sofrida e relutavam em contá-las, pois estariam rememorando momentos difíceis.
Por meio de seus relatos percebemos a opressão vivenciada por conta da condição social, racial e econômica das mulheres de baixa condição do município de Ipu e a maneira como a perspectiva de mundo dessas mulheres foi formada com base no seu lugar ou não, na sociedade ipuense.
Devido ao fato das mulheres de famílias pobres, lidarem com a inconsistência do trabalho masculino, encontrava-se acessível variados serviços referentes a realização de atividades domésticas. Apesar de em várias situações a mulher fosse a incumbida pelo sustento principal da casa, o seu ofício continuava a ser visto de modo inferior, como um complemento ao ganho masculino.

Os inúmeros preconceitos, geralmente relacionados ao estereótipo da mulher pública, incidiam sobre as mulheres pobres que trabalhavam fora do lar. Mas até aquelas que ocupavam-se nas tarefas domésticas, também não viam-se livres de serem estigmatizadas.
Inteirar-se sobre a experiência das classes empobrecidas nos proporciona compreender a racionalidade das mulheres pobres, ou seja, a sua maneira particular de organização social. Desta forma, as questões relativas ao cotidiano destas mulheres antes vistas como insignificantes, podem agora ser novamente esmiuçados desvendando os novos significados das contribuições femininas.
Embora houvesse discordância existente entre a moralidade oficial imposta e a realidade vivenciada pela a maioria dessas mulheres nas décadas de 50 à 70 na cidade de Ipu. Mesmo diante deste conflito entre classes, as mulheres pobres e trabalhadoras determinaram meios de resistências e assim resguardaram suas tradições, valores e costumes.
D. Esmeralda, dona de casa aposentada, foi à única das nossas entrevistadas pertencente às camadas populares que teve a oportunidade de estudar embora não tenha concluído o fundamental II. Quando solteira dedicava-se as tarefas do lar e trabalhava em casas de famílias ricas. Depois de casada deu prosseguimento à mesma rotina de trabalho, mas aumentaram as dificuldades que teve de enfrentar na luta pela sobrevivência da família que constituiu. Revela ter sofrido bastante para criar seus sete filhos, pois devido à ociosidade de seu marido a nossa depoente teve que sozinha garantir o sustento de sua prole.
Ao ser questionada sobre como se davam os relacionamentos amorosos, D. Esmeralda nos fala, que os namoros em sua juventude eram parecidos com os de hoje em dia, mas difere-se de sua época pelo fato de haver naquele período um respeito mútuo entre os casais, que não se faz mais presente nos relacionamentos atuais. Vejamos:
O namoro de antigamente eram normal como d’agora, só que os rapaz respeitavam né, respeitava as moças, as moças respeitava os rapaz, num esse negócio de quando a moça conhecia um rapaz, num é como agora quando conhece um rapaz já leva logo pra cama, de primeiro não a pessoa já namorava, namorava anos e anos, quando o rapaz mexia com a moça aí tinha que casar logo. (Entrevista realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com a ipuense e dona de casa, possui o fundamental II incompleto, Esmeralda Alves de Oliveira, de sessenta e cinco anos, na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce).

Em seguida a entrevistada prossegue fazendo críticas a maneira como se dão os relacionamentos atuais e relembra-se que quando suas irmãs mais velhas namoravam as mais novas ficavam em vigilância ao casal a pedido do pai. Observemos:

[...] minhas irmãs namorava, o papai botava nois pra pastorar, tinha que ficar uma ali pastorando, namorava até, mais ou menos que, umas dez horas aí pronto o rapaz ia simbora, pronto só no outro dia, num tinha esse negócio de passar o dia na casa dele, nem ele na casa dela, era respeitador, era respeito, de primeiro tinha respeito hoje em dia num tem não, a moça começa a namorar com o rapaz a mãe acoita logo [...]. (Idem.)

A moça deveria preservar a sua honra até a noite de núpcias, mas caso isso não ocorresse à família providenciava o casamento mais rápido possível para assim reparar a honra perdida da moça, assim aconteceu na família de Esmeralda:

Fazia casar, era obrigada a casar, tinha minha cunhada, meu irmão mexeu com a filha do Crispim aí a veia foi e obrigou, aí a mãe fez ele voltar do Rio pra casar com ela, foi a coisa mais mal feita que a mãe já fez na vida dela, porque ela num prestava, aí empaio ele casar que é o Francisco ali, mais a Maria. (Ibidem.)

Um número considerável de homens só casavam com a moça se ela fosse virgem, caso a mesma já tivesse relacionado-se intimamente com outra pessoa se descoberta a farsa após o casório a mulher era devolvida aos pais como aconteceu com um conhecido de Esmeralda:

Ah às vezes num era todo rapaz que queria não, num era todo rapaz que casava com moça que num era virgem mais não, de primeiro a moça só se casava com o rapaz se fosse virgem, se o rapaz se casasse com a moça que ela não fosse mais virgem ele ia entregar . O Zé da Maricota casou com uma moça do juazeiro do Norte aí quando foi no dia da noite de núpcias ela num era virgem e ele foi entregar ela, foi deixar lá no Juazeiro. (Ibidem.)

Segundo Pinsky “eram raros os homens que admitiam a ideia de casarem com uma moça deflorada por outro. No próprio código civil estava prescrita a possibilidade de anulação do casamento caso o recém-casado percebesse que a moça não era virgem e, se tivesse sido enganado, poderia contar com o Código penal que garantia punições legais para o “induzimento a erro essencial”.” (PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.613.)

O Clube Artista Ipuense era destinado ao divertimento daqueles menos favorecidos, mas os jovens ricos da cidade também frequentavam o Clube. As moças não pagavam entrada, mas tinham que dançar com quem a convidassem por ordem dos Diretores do Clube, Esmeralda nos conta que dançava com os jovens ricos, mas todos eles deviam respeitá-la:

Eu também toda vida me guardei, toda vida eu achei gente pra me respeitar agora tinha uma coisa se o caboco num me respeitasse ele caia fora era cedo. Se eu fosse pro forró eu gostava muito de forró, dançarra muito aí quando eu ia pas festas tinha aqueles caboquim rico que entrava lá no Clube do Artista nera que era só dos pobe aí eles chegarra lá e tirava pa dançar aí a gente ia e dançarra nesse tempo mulher num pagava pa dançar, a gente dançava e aí na hora que ele tava querendo meter os pés por a mão a gente tacava o chute nas canela dele e butava ele pra dançar era, num tinha isso comigo não minha fia. Notro dia eu tarra dançando com um rapaizim rico daqui de dentro do Ipu, fi de gente marromeno mermo aí ele rei quere me agarrar aí eu dei um tupetão na canela dele aí o diretor que era o Gonçalo Fortuna nesse tempo mais o mestre Chico disse:_ Esmeralda porque você fez isso? _ porque ele vei com falta de respeito comigo aqui dentro e aqui dentro nem o presidente vem com falta de respeito comigo. Era assim, era bom nesse tempo a gente andava, passeava, andarranaquelas avenida acolá, ninguém via falta de respeito, ninguém via as pessoa falando dos outro nem nada, era bom, mas agora num presta não. (Entrevista realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira, op.cit.)

Conforme reitera nossa entrevistada, a entrada no Grêmio Ipuense era restrita a alta sociedade, mas o Clube Artista recebia todas as classes sem distinção. Esmeralda lembra-se com bastante entusiasmo das noites em que saia do trabalho e ia divertir-se no Clube Artista Ipuense:

Ali onde é a Caixa, ali era o clube dos ricos nera, só dançava gente assim fi de doutor, gente marromeno mermo, gente rica, era o antigo Grêmio, e ali onde vende aquelas coisa de bolo agora, ali era o Artista era só o clube dos pobres. Só que os pobre não ia dançar no Grêmio porque era dos rico né, mermo que pagasse não podia dançar, e os rico se pagasse ali nos pobre ele podia dançar, entrarra e dançarra e aí a gente dançarra as festa, tinha as festa, quase todo dia dançava, era bom, aí só tinha uma coisa, na hora que os caboco e o pessoal gostarra de dançar e eu gostarra de dançar mermo, dançarra de segunda a segunda, trabalhava durante o dia e de noite eu ia pros forró, aí eu dançarra,dançarra,dançarra, mas tinha na hora que os caboco desses rico chegava que ficarra olhando e chamarra a gente pra dançar a gente ia, porque se agente num fosse aí diretoria já recramavacom a gente,era sócio né, já vinha recramar, porque tinha que respeitar aí a gente ia dançar. (Idem.)

Segundo Rachel Soihet “a organização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós” (SOIHET, Rachel. Mulheres Pobres e violência no Brasil urbano. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.362). As mulheres populares devido as condições em que viviam não eram submissas e frágeis como as mulheres da elite e os homens pobres por conta de suas condições de vida estavam longe de assumir o papel mantenedor da família previsto pela ideologia dominante, tampouco o papel de dominador, típico desses padrões.

Esmeralda relata com bastante desgosto o seu casamento, pois alega ter vivido toda sua vida trabalhando pra sustentar a casa, os filhos e o marido, que segundo a entrevistada foi sempre muito preguiçoso, por conta disso passou a ser responsabilidade dela garantir a sobrevivência de toda a família:

Não foi essas coisa demais não, me arrependo não porque eu tenho os meus filhos a única coisa de bom que eu tenho do meu casamento é os meusfilho e os meus neto, o resto é resto. [...] uma moça sai de dento da casa de seus pais pa casar, pa se ajuntar com outa pessoa, pa aquela pessoa lhe ajudar, trabaia né, não pa você morre de trabaia dia e noite pa sustenta ele como eu faço aqui, o único desgosto que eu tenho da minha vida é eche de morrer de trabaiapa sustenta e ainda num tem quem dê valor. (Entrevista realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira, op.cit.)

Esmeralda foi a única de nossas entrevistadas pertencente à classe baixa que casou-se virgem. Revela ter casado por conta que seu pai não a deixava sair, e viu em um casamento o passo para a liberdade confidenciando que com “o primeiro doido que aparecesse eu casava” (Idem.). Casou-se no religioso e no civil, logo em seguida nasceram os seus filhos e confessa que: “num passaro muita fome, porque eu comecei trabaiar, pa num deixar eles passare fome” (Ibidem.).

De acordo com nossa entrevistada, inicialmente seu casamento não foi tão ruim, mas passou a ser a partir do momento em que sua sogra começou a interferir na vida do casal, pedindo para que seu filho a proibisse de trabalhar e se assim o fizesse deveria entregar todo o dinheiro nas mãos dele.
Esmeralda ainda revela que deveria ter tido somente um único filho, pois chegou a separar-se de seu marido, e nos conta que só possui uma casa para morar devido sua madrinha ter-lhe cedido um terreno:

Hoje em dia era pa mim ter só o Antonio josé por causa que eu botei ele pra ir simbora larguei ele , o Antonio José tarra com um mês de nascido eu ainda morarra mais a mãe dele aí peguemo uma briga na hora do almoço aí eu fui membora mas o Antonio josé aí minha vó me deu a casinha dela pra mim morar com ela, aí depois a madrinha comprou esse terreno aqui mas se não fosse isso hoje tarra só com o Antonio José. (Ibidem.)

Prossegue dizendo que seus planos eram deixar o seu filho sob os cuidados de seus pais e ir embora para poder sustentá-lo, mas seus planos não foram adiante devido seus pais lhe negarem esse pedido, pois eles queriam que sua filha permanecesse casada. Após seu esposo ir atrás de voltar e seus pais não a apoiarem a mesma resolveu retomar a vida de casada:

Foi, ele foi lá adular, aí mãe vai e o papai vai, fia minha não pode viver separada é pa viver casada, casou é pa ir viver mais o marido. Porque eles num quiseram ficar com o Antoniojose, porque o meu negocio era esse eles ficasse com o Antonio Jose pa mim ir memboratrabaia, pra mim cria só meu fi né, aí num quisero ficar com o menino, aí foi o jeito, eu me ajuntei com ele aí nasceu o Giudásio, nasceu a Aninha, veio a Joana, o Cicim, o netim, a Manuela tive, aí eu fazia o meu papel né de Dona de casa respeitadera, respeitarra tinha minhas obrigação mas agora cabô. (Ibidem.)

Nesse sentido, é indiscutível o quanto as mulheres pobres vieram adquirindo independência ao longo dos anos. Vivendo precariamente seja como autônoma ou assalariada, improvisavam continuamente suas fontes de subsistência. Oferecendo seus serviços como lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, domésticas entre outras.
Dona Dedê, dona de casa aposentada, de origem humilde, revela nunca ter estudado, pois começou a trabalhar desde os oito anos de idade para ajudar no sustento da casa, rememora os momentos difíceis pelos quais enfrentou por conta da ausência de capital com mais um agravante, o alcoolismo de seu pai, que por diversas vezes desestruturou toda sua família:

Quando eu tinha a idade de 8 ano já foi começando a trabalha porque meu pai não podia me dar nada eu tinha que trabalhar e fui crescendo trabalhando quando eu compretei meus quinze ano trabaiando todo tempo trabalhando nunca ficava em casa quando eu tava em casa eu butava água pra beber eu nunca tive boa vida a minha boa vida era ter só minha saúde pra mim poder enfrentar a vida e era um sofrimento naquela época que os pai naquela época não tinha recurso e ainda tinha a maldita da bebida que maltratava a família né. (Entrevista realizada no dia dezenove de maio 2015 com a ipuense e dona de casa, analfabeta, Antonia Fátima da Costa Vieira, conhecida popularmente como Dona Dedê, de sessenta e cinco anos, na residência da mesma no Bairro do Reino de França em Ipu-Ce.).

A entrevistada prossegue dizendo que nunca teve vergonha de trabalhar, lembra-se do desgosto de seu pai em não poder lhe dar nada, obrigando-se assim mesmo tão jovem a trabalhar em casas de família, quando não, ia vender água para ajudar a manter a sua parentela:

Eu trabalhei minha filha naquela época eu vou lhe falar os pai, naquela época tinha pai que era carrasco, o meu pai num era carrasco, mas ele num podia era me dar nada, ele num ia me bater pra mim trabalha não, tinha vez que ele dizia assim: minha fia eu tenho uma vontade tão grande deu chora, e eu: porque pai? Não faça isso não. Eu vendia água uma coisa que eu num tinha vergonha minha fia pegava uma lata e ia pro buraco da giaque nesse tempo chamarra o buraco da gia [...] e eu butava minha água e vendia recebia o meu dinheirim e dava minha mãe. (Idem.)

De acordo com nossa entrevistada, ela e suas irmãs não poderiam sair sozinhas iam sempre acompanhadas por senhoras de idade suas vizinhas que as vigiavam para que nenhum mal ocorresse. Seu pai jamais as deixavam saírem só, queria saber para onde iam e com quem saiam:

Os pai da gente dizia: _ Fulana tu vai pra onde? _ Pai eu vou pra tal parte, mas eu venho jajá viu. _ Mais quem você vai? _Eu vou com fulana de tal assim, assim. A gente dava tudo detalhe com quem ia e com quem vinha. _Pai eu vou com fulana e volto com fulana viu pai. _Eu vou cuspir no chão. A gente tinha que ir e voltar na mesma hora, eu andei muito com pessoa aqui, que essa pessoa já morreu é a dona Eveline eu andava com ela, só saia com ela, que vinha mi entregar na porta de casa e dizia: _Ta aqui cumpade Luís, ta aqui a Dedê, ninguém arrancou pedaço dela viu, cumpade deixe de ser besta deixe ar bixinha sair. E ele: _Não minhas fia num andam solta por aí não. [...] outra a Dibrinca, só saia com elas também, ia e voltava com elas, naquela época eu saia com as mulhe de idade que era as pessoa que me pastorava, elas me potregia, era minha guarda costa era elas [...] na minha época era diferente. (Ibidem.)

As festas no Clube Artista eram para as mulheres de baixa condição, um excelente divertimento, principalmente para aquelas que adoravam dançar no salão do Clube. D. Dedê recorda o fato em que o baiano Stélio expôs a ela sua predileção por este Clube nos confirmando assim que os homens da alta sociedade ipuense preferiam o Clube Artista por diversos fatores. Vejamos:

[...] um dia eu ainda me lembro, nóistava dançando os carnaval e chegou o bancário lá, era aquele bem moreno[...] aí ele chegava e dizia assim:_Esse aqui é que é o clube, eu dou mil por esse clube aqui e num dou nem um por aquele outro lá, uma hora dessa já fechou tudo lá. Era o seu Stélio, era bem pretim ele viu, aí eu disse: _Valha, você vem se misturar com nois?um gerente do banco?aí ele fez foi dizer pra mim: _Você vai é dançar comigo agora; aí eu disse: _Não senhor, eu já rou é embora, já tamo encerrando aqui. Até que o finado mestre Chico pediu pra mim dançar com ele porque lá era diferente, o nosso clube lá, era como se diz, era classe média, mais era uma sociedade de responsabilidade. (Ibidem.)

Nossa entrevistada recorda-se com bastante entusiasmo sobre os bailes do Clube Artista Ipuense. Lembra-se ainda de como se saiam daqueles homens que sempre passavam dos limites e daqueles que se irritavam quando as mulheres se negavam a dançar com eles:
Eu ia, ah era muito bom, maravilhoso, a gente dançava muito, dancei muito ali, quando tinha um assanhado a gente saia sabe de bandinha, agora tinha um minha fia, que quando a gente dizia que num ia dançar com ele que ia dançar com outro, a briga que dava lá dentro, queria da na cara das muié, nessa época era desse jeito. (Ibidem.)

Dona Dedê afirma que durante sua juventude as mulheres e os homens de baixa condição não frequentavam o Grêmio Ipuense, devido justamente aos preconceitos presentes na época por ser um ambiente restrito apenas para a alta sociedade. Mas após casada e mãe de seus filhos teve a oportunidade de adentrar ao clube, mas a entrevistada confessa não ter se sentido muito bem naquele ambiente há tanto tempo destinado única e exclusivamente a uma só classe:

[...] era uma coisa muito diferente a gente num ia pra lá não eu num vou mentir a gente ficava era no nosso, nóis tinha o nosso clube, nois tinha o nosso chitão lá, tinha a quadrilha né e nois tinha o carnaval e tinha as festa de janeiro, festa de outubro, tudo o povo festejava lá, então a festa nossa era lá, eu nunca fui festa fora. Quando eu tive de entrar no Grêmio foi depois de casada que eu levei or meu menino pra ir olhar o carnaval de criança que eu ganhei os ingresso e fui entrar lá ,mas muito diferente sabe, a gente vai, mas num é como a gente se sinta bem no da gente, porque lá é tudo igual, lá é outra coisa, mar eu fui, marré como eu to lhe falando mermo, era uma coisa dividida era as duas sociedade que tinha no Ipu. (Ibidem.)

Conforme explicita Rachel Soihet (SOIHET, Rachel. Mulheres. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 2012, Op. Cit.), na cidade do Rio de Janeiro as autoridades costumavam empenhar-se em impedir a presença dos populares em certos locais, no esforço de afrancesar a cidade para desfrute das camadas mais elevadas da população e para dar mostras de civilização aos viajantes e visitantes. E assim notamos na cidade de Ipu.

Como já foi dito anteriormente o Paredão foi um dos ambientes destinados as empregadas domésticas as chamadas “pirão frio”. E Dona Dedê confirma isso ao revelar o Paredão como um dos seus poucos espaços de divertimento e lazer, lembrando sempre que essas mulheres divertiam-se geralmente à noite, pois durante todo o dia trabalhavam ou dedicavam-se aos afazeres domésticos de seu próprio lar:

Naquele tempo minha fia só tinha o paredão, era o paredão né, aquele povo sentado ali, era uma voz da cidade tocando a gente passeava por ali e eu andava com as minhas irmã por lá, mar era bom naquela época, era uma época que podia sentar lá, era um paredão mermo minha fia que a gente sentava lá em cima e via o povo passano em baixo dexe tamaizim, mas era bom lá a gente sentava era bem ventilado era simples mas era melhor. (Ibidem)

Dona Dedê diverte-se ao rememorar como se davam os namoros em sua juventude, revela ter sido bastante vigiada pela família: “era ele bem acolá e eu bem aqui, [...] e os pai ainda ficava pastorando se a gente vinha do rumo da rua só segurano no dedim assim, eu lhe juro pela fé de Deus, era muito diferente, num era como agora não” (Ibidem.). Vejamos o que Nossa entrevistada nos conta a respeito:

Naquela época eu mermo diga pa Aparecida quando eu namorava com teu pai, era eu, minha mãe, meu pai e o Antonio, a Socorro e a Maria tudo ali perto, minha mãe ia fazer café a gente tomava, era muito diferente, muito diferente. Era o papai conversando com ele, mal eu conversava com ele, pa mim lhe dizer, conversava comigo quando ia, Toinha boa noite, até amanhã, tchau, inté amanhã, e eu: _ Pois vá com Deus, Deus te acompanhe. Eu ainda ficava era rindo sabe do nosso namoro porque era muito diferente sabe, num tinha esses agarrado, quando o rapaz ia colocar a mão no pescoço a moça e eu mesmo dizia:_ tira a mão do pescoço , mão no pescoço é mão no pé do ouvido, tira mão do meu pescoço, e ele dizia:_ porque Toinha?_ porque eu num gosto. (Ibidem.)

Conforme os relatos de nossa entrevistada, os homens costumavam honrar habitualmente as moças. Mas o que mais atraia a sua atenção negativamente, era quando sucediam-se casos em que o casal se relacionava intimamente e os mesmos eram obrigados a casar forçadamente:

Naquela época os rapaz tinha mais respeito pela moça, só tinha uma coisa que eu acharra horrive na época, era os rapaz buli com a moça, tinha que casar a força, tinha que casar na marra porque num era mais moça, num é cuma hoje, hoje não, as coisa são mais muderna na minha época era diferente. (Ibidem.)

Dona Dedê possuiu o seu primeiro namorado aos 19 anos e com menos de um ano de namoro casou-se, relembra a mesma ter sido o seu marido quem a tirou de toda a pressão que vivia em sua casa por ter um pai alcoólatra que frequentemente criava confusões ameaçando sua mãe de morte com uma espingarda e deixando os filhos inúmeras vezes dormindo do lado de fora tendo os mesmos que se abrigarem na casa de algum vizinho.
Casou-se primeiramente no civil e logo após que reaprendeu as rezas, no religioso, alega ter a sua dura vida de trabalho ocasionado o esquecimento das rezas. Confessa ter casado-se grávida de seu primeiro filho. Diante disso percebemos que as mulheres de baixa condição se entregavam com mais facilidade aos seus parceiros do que as mulheres de elite:

Eu me casei civil primeiro e depois casei padre enquanto eu apredia a reza,porque quando eu fiz a primeira comunhão eu tinha uns 7ano pa 8 ano quando eu fiz a primeira comunhão, aí a gente fica trabalhando não fica rezando né, tive que rezar novamente, eu tive que rezar outra vez, eu mais meu marido[...] aí eu já casei foi grávida do meu filho, eu acho que meu filho é abençoado de nascença esse que ainda mora na Brasília.(Ibidem.)

Logo mais quando indagamos nossa entrevistada se seus pais sabiam que ela estava casando-se grávida, ela se contradiz ao afirmar que não:

Não eu num casei grávida não, eu casei normal mermo ele só fez bulir comigo e nós casamos, também não teve confusão né porque ele queria e o papai queria demais nós casamos quando eu fui ter minha menina parece que nós já tava com 8 mês de casado. (Ibidem.)

De acordo com Maria Ângela D’Incao:

A mulher das classes baixas, ou sem tantos recursos, teve maiores possibilidades de poder amar pessoas de sua condição social, uma vez que o amor, ou expressão da sexualidade, caso levasse a uma união, não comprometeria as pressões de interesses políticos e econômicos. As mulheres de mais posses sofreram com a vigilância e passaram por constrangimentos em suas uniões, de forma autoritária ou adoçada, na sua vida pessoal. Para elas o amor talvez tenha sido um alimento do espírito e muito menos uma prática existencial. (D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família Burguesa. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.234.)

Para Dona Dedê a Igreja Católica tinha um papel fundamental para a formação dos jovens, pois o Monsenhor Moraes utilizava os momentos de sua homilia e no confessionário para pregar e instruir os pais e os filhos que frequentavam a sua paróquia:

Mulher o monsenhor Moraes sempre dizia, ele era um padre daquele diferente desses outro, era o Monsenhor Moraes ele dizia mermo assim: _Eu peço que vocês crianças (ele num chamava jovem, era criança), não vão sempre no caminho errado não, vão sempre no caminho certo. Porque ele rá sabia né, ele como padre, um monsenhor já, ele tava dando uma orientação nera, o modo de viver daquela juventude, isso ali era um conselho que ele tava dando né, se um pai num dá um monsenhor daquele já tinha que dá né, eu mermo me confessei com ele e ele mermo dizia pra mim ele tinha os conselho dele né ele sempre dizia: que hoje os finum obedece mais mãe e nem pai, e é verdade porque ele ensinava e as coisa era diferente. (Entrevista realizada no dia dezenove de maio 2015 com Dona Dedê, op.cit.)

Recorda-se do período que o Monsenhor Moraes não permitia o uso de roupas consideradas indecentes dentro da Igreja, “quando a gente ia de vestidinho assim a gente colocava o veuzim” (Idem.). Mas acrescenta que a atitude do Monsenhor Moraes era a correta pois ninguém deveria frequentar a casa de Deus vestindo-se de maneira indevida.

“Controlava né, porque de primeiro tinha as confissão” (Ibidem.). Acrescenta ter suas atitudes controladas por meio das confissões, que era um modo que os párocos tinham de saber o que os cristãos estavam fazendo de correto e impróprio.

Rememora ainda, o período em que quase se divorciava de seu esposo. Dona Dedê nos relata sempre ter sido uma mulher bastante independente e sua autonomia passou a deixar seu marido bastante enciumado. Nossa entrevistada passou então a aconselhá-lo, pois permanecer em seu trabalho seria o melhor para toda sua família:

Eu nasci pra trabalhar Antonio, desde 8 ano que eu trabalho, e eu quero vencer a vida é trabalhando meu nego,vamo trabalhar, vamo manter nossos filho, nois tem que ter as coisa pra eles, como é que nois vamo butar uns menino desse pra estudar num é, tem que trabalhar.(Ibidem.)

O homem pobre passou a se ver em uma situação divergente em relação a sua companheira que tornava-se cada vez mais independente, causando assim a sua insegurança. Desta forma o ciúme surgia diante “de sua incapacidade de exercer o poder irrestrito sobre a mulher” (SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.370.).

Dona Dedê relata ainda ter visto seu esposo aconselhando-se com o Monsenhor Moraes, que a apoiou totalmente, fazendo com que seu marido passasse a compreender os motivos pelas quais a sua mulher não saia do emprego:

Um dia eu cheguei e ele tavacunvesando com o Monsenhor Moraes e ele disse: _Monsenhor eu vou lhe dizer uma coisa, minha mulher é muito vivedeira eu brigo com ela. e ele:_ Porque que cê briga com a sua mulher, ela lhe da motivo ?_ não Monsenhor é porque eu num quero que ela trabalhe. _Ela trabalha porque ela gosta, isso é que é uma mulher boa, que ela lhe ajuda. _Ela faz o que? _Ora ela vai lá pacumade iIlza e lá cumade da o material todim dos estudo. E ele: _Antonio imagina se tu fosse comprar esse material, você já viu quanto é que dava não, então fique calado ela num ta fazendo nada errado ta fazendo coisa que preste. (Entrevista realizada no dia dezenove de maio 2015 com Dona Dedê, op.cit.)

Segundo Dona Dedê toda mulher “tinha seu bom comportamento, seu modo de falar, se entrar num ambiente pedia licença, quando saia pedia novamente e ali a pessoa era muito respeitada porque tinha o seu modo de vida.” (Idem.)

A estação era um ambiente bastante frequentado por todas as classes sociais, a chegada e a partida do Trem movimentava bastante a cidade, pois os curiosos ficavam observando o intenso fluxo de viajantes e isso tornava-se para todos um grande divertimento, pois tinham a oportunidade de fazer novas amizades, de flertar , e de fazer novos clientes. Dona Dedê nos fala que as moças de baixa condição não poderiam observar a passagem do Trem no turno da manhã porque trabalhavam para garantir o sustento da família, mas no segundo turno não perdiam esse momento de lazer:

Ia, era animado minha fia, uma vez nois fumo [...] ali no Chiquim né, aí noisficamo ali, aí o povo ia pra lá, tinha as barraquinha pa vender o café o pedacinho do seu bolo, aí todo mundo ficava lá, era animado comprando passagem, aí eu disse assim: _ Valha aqui é tão animado eu num sabia. A Maria: _Émuié, nois vem é pra cá agora, de manhã ninguém pode vim Dedê porque noisvamo buscar água e fazer as coisas em casa mas de noite é bom. Era muito bom muié. (Ibidem.)

O cotidiano das mulheres pobres na cidade de Ipu, sempre foi em busca pela sobrevivência diária, muitas delas além de serem responsáveis pelas tarefas do lar, trabalhavam ainda em casas de família, no trabalho agrícola, entre outros. Mas apesar das dificuldades as moças pobres deveriam ter bons modos, caso não se comportassem adequadamente essas mulheres eram ainda mais estigmatizadas.

Dona Mundica, dona de casa aposentada teve um cotidiano semelhante ao de nossas outras entrevistadas que como ela, também eram de baixa condição. Revela-nos que trabalhou muito durante toda sua vida para ajudar a criar os irmãos e mais tarde para sustentar os filhos. Como as demais, confessa ter vivido toda sua infância e juventude sem liberdade alguma, via em um casamento a oportunidade de viver livre,mas continuou com uma vida limitada aos afazeres domésticos e a trabalhar fora para manter sua família:

A minha infância foi como escravo né, de casa pra ir por mato buscar lenha, passar no passador com uma lata d’água na cabeça, indo de madrugada pos posto com as criança doente, chegava não tinha comida pra mim comer , aí eu fui levando aquele tempo , aí eu tinha vontade de me casar aí eu digo:_ Ai meu Deus um dia eu saio desse cativeiro, aí arrumei esse marido, casei, continuou o sofrimento mais, sofrendo pra ganhar o pão de cada dia só pa não ver os meu filho pedindo e andarrafazeno faxina nas casa com eles pequenininho aí criei eles tudim trabalhei noutra casa fazendo tudo até 8 mês pa chegar ao ponto pra eu compra aquela casinha pra eu morar, aí graças a Deus eu venci e to aqui viva e forte graças a Deus. (Entrevista realizada no diavinte de maio 2015 com a ipuense e dona de casa, alfabetizada, Raimunda de Sousa Moura, conhecida popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos, na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.)

Segundo nossa entrevistada, a vida tinha dificuldades até mesmo para os donos de terra e de gado que não tinham condições de manter trabalhadores, tendo eles mesmos que empenhar-se para dar conta de todo o serviço:

Minha fia a vida de outrora era sofrida pa todo mundo mermo, que a pessoa tivesse gado, tivesse terreno como eu conheço vários que tem mais sofria porque eles não queria botar empregado, eles mesmo cuidava nera, e aí outros cuidava tudo de serviço grosseiro, negocio de curtição de couro, essas coisa era tudo serviço grosseiro, era uma vida muito complicada e sofrida né. (Idem.)

Dona Mundica confessa ter sido bastante “humilhada, porque às vezes aquelas pessoas que a gente propriamente ajudava humilhava a gente.” (Ibidem).  Conforme nossa entrevistada o preconceito era nítido, pois não poderiam comparecer ao Grêmio Ipuense, somente os ricos adentravam naquele recinto. De acordo com Dona Mundica até mesmo o bancário Stélio era vítima desta sociedade racista:

O Grêmio ali, só dançava no Grêmio quem era de família, quem era rico, aí de certo tempo pra cá é tão provávio que o Stélio era bem pretão era um bancário que tinha, ele colocava as luva no braço pra poder pegar na mão da mulher dele pra poder dançar, era só os rico que entrava. (Ibidem.)

Com as mudanças na direção do Grêmio Ipuense, já na década de 1970, o clube tornou-se mais acessível passando a adentrar naquele ambiente todos aqueles que dispunham de verbas, independente de sua condição social:

Certo tempo já vi outras pessoas entrando, também pobre entrando lá pra dançar, aí eu via que o que valia era o dinheiro porque onde vai o dinheiro tem tudo né, aí como eles tinha dinheiro num fez diferença do branco pro preto né, é isso. (Entrevista realizada no dia vinte de maio 2015 com a ipuense e dona de casa, alfabetizada,Raimunda de Sousa Moura, conhecida popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos, na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.)

Devido viver constantemente enclausurada, Dona Mundica nos conta que jamais ia a Igreja a não ser para fazer sua primeira Eucaristia, revela ainda, que não sabia andar pela cidade, não conhecia nenhum ambiente localizado no centro de Ipu:

Eu não tinha aquela frequência assim de andar nas igreja, que o negocio da mamãe era só cuidar de minino, ir pos posto, lavar roupa nos riacho e tudo, aí eu não sei, eu não sabia onde era Prefeitura, eu não sabia onde era o Banco do Brasil, eu num sabia onde era a Igreja era, era só dentro de casa. Só quando eu fui fazer a primeira comunhão, porque a moça pegou um monte de criança pra fazer a primeira comunhão, aí nós fizemo, aí elas iam tudo arrumada e eu só ia arrumada porque minha madrinha Maria Ceci do cartório foi quem me arrumou, aí eu fui arrumada, pois é mais eu ia até descalço só de meia, aí quando cheguei lá no Artista a minha madrinha foi buscar um sapato e eu calcei. (Idem.)

Mesmo possuindo poucas condições, era exigido das moças que usassem roupas cobertas: “Eu pero meno minha roupa era abaixo do joelho né, porque meu pai nunca consentiu da gente usar roupa acima do joelho só abaixo mesmo, nós num usava pintura só cabelo grande, tipo crente sabe (risos)”. (Ibidem)

Ao ser indagada se as moças falavam ou os pais orientavam em relação a vida sexual, ela nos conta que: “Não, ninguém ouvia falar disso não, é tanto que meu marido me fez uma pergunta já perto de nois casar sobre coisa de homem, aí eu disse que não sabia, eu casei e nunca perguntei a ele o que era.” (Ibidem.)

Relata que “naquela época se o homem casasse e a moça num fosse virgem ela ia voltar pra casa do pai dela, várias moças que eu conheci foi” (Ibidem.). Nos revela ainda que como seus pais não admitiam o seu casamento com o Luís seu esposo, “ele mexeu comigo pra poder, se eles chegassem a saber eles já iam ajeitar o casamento, só que não deu pra eles saberem porque nois casamo logo nera”. (Ibidem.)

Prossegue dizendo que não foi feliz em seu casamento, “porque eu casei e fui morar nas casas por aí você tira né, a gente durmia numa sala junto com dois cunhados solteiro e a gente com marido, num fui feliz não, quando eu fui ser feliz dona da minha casa não tinha mais graça, pronto aí eu me acostumei pronto” (Ibidem.).

Dona Mundica revela que seu maior sonho era poder ter frequentado a escola:

[...] nunca estudei, porque meu pai num podia nem minha mãe eu chorava pra ir pra escola eu achava a coisa mais bonita do mundo quando eu via uma pessoa ir de sapato e meia, aquela roupinha da escola e tudo, chorava mais nunca fui. (Ibidem.)

Mas embora não tenha sido alfabetizada, confessa que aprendeu a ler e a escrever sozinha, pois sempre teve bastante interesse em conhecer o alfabeto. Lembra que transcrevia as cartas que seu pai enviava a sua mãe quando morou fora, e sempre quando ele retornava pedia para que o mesmo tirasse suas dúvidas.
Por meio destes relatos orais tivemos a oportunidade de analisar e discutir sobre a presença e as formas de atuação feminina em diversos espaços da cidade de Ipu. Estas, que por diversas vezes, foram consideradas o oposto dos padrões desejados, e que muito negociaram suas possibilidades de sobrevivência e empenharam-se a alcançar seus espaços de atuação como sujeitos de suas próprias vidas.
A análise realizada teve como objetivo discutir a presença das mulheres enquanto sujeitos históricos. Buscamos elucidar o cotidiano e as experiências dessas mulheres, perceber o quanto elas desempenharam uma sorte de papéis. Compreendemos o quanto ser mulher e ser pobre é capaz de contribuir para a formação de estereótipos.

Foi possível discutir a rotina e as resistências diárias dessas mulheres pautadas na ideia de cor e classe social. As fontes, no entanto, nem sempre dizem aquilo que se espera delas, mas a partir de relatos orais, principal fonte dessa análise, procuramos evidenciar nesse capítulo quem eram essas mulheres e quais os diferentes espaços que elas apareceram inseridas.

Esse caminho de análise mostrou-se brilhante para traçar um perfil das mulheres ricas e pobres da cidade de Ipu. Seus relatos foram capazes de trazer para a discussão parte das suas vivências. Resgatar o cotidiano dessas mulheres, compartilhar suas experiências, trazer a tona o seus conflitos diários através de suas histórias, é uma forma de dar voz e visibilidade a esses sujeitos há tanto tempo silenciados e ignorados.
Felizmente, pudemos efetuar esta incumbência não somente “através da difusa lente da justiça ou do olhar estereotipado de seus contemporâneos” (SANTIAGO, Silvana. Tal Conceição, Conceição de Tal. Classe, gênero e raça no cotidiano de mulheres pobres no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Dissertação de mestrado – UNICAMP. Campinas, SP. 2006. 91). Mas por meio de seus relatos, onde foi possível perceber as maneiras como estas mulheres sobreviveram em meio as mais variadas situações de preconceitos e opressões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dessa discussão pudemos mostrar as diversas transformações ocorridas no âmbito econômico, social e dos costumes na cidade de Ipu. A vinda da ferrovia causou intensas modificações. O crescimento urbano, econômico e demográfico fez com que os elitistas passassem a anunciar que esta cidade estava alcançando o tão sonhado progresso.
Alguns aristocratas passaram a exercer condutas para ajustar a cidade e a sociedade como progressista, para isso foram edificados espaços destinados apenas para a sociabilidade de grupos abastados. Desde então, foram identificadas algumas práticas de preconceito em relação à classe menos favorecida, estes que não se enquadravam com o progresso, a civilização e a modernização pela qual a cidade estava passando.
Estes homens considerados ilustres tinham como propósito remodelar a cidade, deixá-la habitável e composta por diversos e novos espaços apropriados para a socialização da elite ipuense. Estes ainda consideravam-se defensores da moral e dos bons costumes, atacavam todas as práticas que viessem a ser consideradas impróprias, pois eram incompatíveis com progresso vivido pela cidade.
O belíssimo Jardim de Iracema inaugurado em 1927 e o Grêmio Recreativo Ipuense inaugurado em 1924 foram edificados para o embelezamento da cidade e divertimento das famílias ricas ipuenses, estes espaço foram criados com o propósito de modernizar o município e impressionar seus moradores e visitantes, bem como foram formados devido à necessidade de se construir ambientes destinados únicos e exclusivamente para a socialização de grupos restritos.
Desde a sua elaboração, estes espaços foram considerados disseminadores de preconceitos, pois nestes recintos era proibida a entrada de pessoas negras e pobres. Quando estas pessoas não elitizadas persistiam em adentrar nestes ambientes eram postos para fora, forçadamente.
Devido a estas práticas preconceituosas foram criados espaços como o Clube Artístico Ipuense e a praça “26 de Agosto”, para o divertimento e lazer das classes baixas, sendo que o Clube Artístico Ipuense também recebiam os homens pertencentes a alta sociedade. O Paredão também foi um espaço de lazer para as classes menos abastadas. Este foi edificado com o objetivo inicial de embelezar a cidade, foi considerado um espaço de segregação por ter sido inúmeras vezes utilizado pelos jovens populares para namorar um pouco mais chegados.
Por meio de narrativas buscamos compreender o comportamento feminino considerado ideal para as mulheres da elite e para as mulheres dos segmentos populares. Estas que tiveram sua conduta constantemente vigiada e controlada pela Igreja Católica, tal como pela sociedade. Pudemos conhecer o seu cotidiano, suas experiências, resistências e conflitos assim como as normas de conduta continuamente prescritas pela igreja, esta que a todo momento interviam em suas vidas.
Ao pesquisar as memórias dessas mulheres pude perceber que tanto as mulheres de classe alta, como as de classe popular não se deixaram submeter totalmente aos seus maridos e as pressões impostas pela sociedade, sempre souberam da importância que tiveram, sempre se reinventando em suas práticas cotidianas nas mais variadas formas. Resistindo e combatendo os múltiplos preconceitos as quais sofreram.
Trabalhar com a oralidade me possibilitou a experiência de ultrapassar as fronteiras dos discursos que sempre veiculam a imagem da mulher submissa, inferior e quase sempre excluída. Portanto pude ver com um olhar totalmente novo o que há por trás da história destas mulheres, que há tanto tempo, batalham para terem o reconhecimento da importância de seu papel enquanto sujeito social, tendo seus direitos e equidade entre os sexos garantidos.
Essas narrativas também são responsáveis por proporcionar uma compreensão a respeito dos antigos estigmas, ainda tão presentes na sociedade ipuense, assim como entender a culminância dos processos históricos que levaram a cidade de Ipu a sua atual configuração, bem como, a constituição de novos preconceitos que estão atuando nos dias de hoje. Podemos ter uma idealização das consequências que as heranças e tradições da cidade de Ipu de ontem tem sobre o Ipu de hoje e como os seus moradores encaram essas transformações. Por tudo isso, essa pesquisa visa também contribuir para a historiografia da cidade de Ipu.

FONTES ORAIS
Francisco De Assis Martins (Professor Melo)
Ipuense, Ex-professor, formado em Ciências Físicas e Biológicas pela UFC e Memorialista, Casado, 71 anos.
Em sua narrativa o ex professor e memorialista nos leva a pensar a existência da discriminação e da exclusão de pessoas no seio das sociedades, bem como as mais perversas instituições criadas para alguns homens se acharem superiores aos demais, baseadas em diferenças que na realidade em nada diferem, em torpes hierarquias ou ilusórias qualidades. Fato esse presente em todas as civilizações desde longas datas e, como não poderia ser diferente, se apresenta também no município de Ipu, no interior do Ceará, nos anos de 1900 à 1950.
Entrevista realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, atualmente com 71 anos, na residência do mesmo no bairro Reino de França em Ipu – CE.

Gonçalinha Bezerra Aragão
Ipuense e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e Administração Escolar, casada, 67 anos.
Gonçalinha Aragão pertence a uma família considerada ilustre na cidade de Ipu. Desde cedo se dedicou e formou-se para ter a educação como seu ofício, lembrando-nos sempre que mesmo diante de sua ocupação não deixava de se preocupar com a sua função de esposa, proporcionando ao seu companheiro todos os cuidados que uma mulher casada deveria exercer. Relatou ainda sobre a conduta que as jovens moças deveriam ter e que seus pais possuíam um preconceito em relação às pessoas negras.
Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, de sessenta e sete anos, na residência da mesma no bairro do Centro em Ipu –Ce.

Maria Eunice Martins Melo Aragão
Ipuense e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Administração Escolar, Maria Eunice Martins Melo Aragão, casada, 75 anos.
D. Eunice Martins, assim como todas as jovens ricas da cidade estudou no Patronato Sousa Carvalho, instituição direcionada pelas irmãs de caridade, mas segundo a mesma, devido à frequente mudança de cidade por conta do emprego de seu pai, foi uma interna na escola das freiras, nesta instituição formou-se normalista. Logo mais ao não suportar a distância que a separava de seu noivo casou-se com ele, embora seu pai não fosse a favor no início e tenha demorado cerca de três dias para permitir o casório. Juntos vieram residir definitivamente na cidade de Ipu.
Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Escolar, Eunice Martins, de setenta e cinco anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce.

Maria do Carmo Oliveira
Ipuense e ex-professora, formada em pedagogia pela UECE e especializada em Administração Escolar, Maria do Carmo Oliveira (este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou por ter sua identidade preservada), viúva, 77 anos.
Maria do Carmo diferentemente das demais entrevistadas pertencentes à elite, revela ter tido uma vida bastante difícil, pois ficou órfã muito cedo e ao perder seus pais, ela e suas duas irmãs passaram a morar com suas duas tias que já eram idosas, as mesmas sempre foram muito rígidas na educação de suas sobrinhas. Casou-se aos 28 anos sem a benção de suas tias, pois elas não aceitaram de forma alguma essa união, para poder encontrar-se com seu futuro esposo saía de casa as escondidas.
Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo (este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em Ipu- Ce.

Esmeralda Alves de Oliveira
Ipuense, Dona de Casa, possui o fundamental II incompleto, Casada, mãe de 7 filhos, 65 anos.
A dona de casa nos relata como se davam os relacionamentos afetivos antigamente, sendo o namoro constantemente vigiado pelos pais e, ao mesmo tempo, pelos irmãos. A entrevistada demonstra certa indignação quando o assunto foi o seu matrimônio, dizendo que não havia casado por amor, apenas por conta da vontade dos pais para que arranjasse um marido. A mesma nos conta que batalhou para construir a casa em que vivem até hoje e onde ela criou os seus sete filhos, segundo ela, sem a ajuda alguma do marido.
Entrevista realizada no dia 01 de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira, com 65 anos, em sua residência no bairro Canudos em Ipu – CE.

Antonia Fátima da Costa Vieira (D. Dedê)
Ipuense e dona de casa, analfabeta, Antonia Fátima da Costa Vieira, conhecida popularmente como Dona Dedê, viúva, 65 anos.
Dona Dedê, é uma senhora de origem humilde, revela nunca ter estudado, pois começou a trabalhar desde os oito anos de idade para ajudar no sustento da casa, rememora os momentos difíceis pelos quais enfrentou por conta da ausência de capital com mais um agravante, o alcoolismo de seu pai, que por diversas vezes desestruturou toda sua família. Revela ter quase pego uma depressão, pois a mesma perdeu uma de suas filhas em um acidente com um cheque elétrico. Diferentemente de nossas outras entrevistadas a mesma casou-se grávida.
Entrevista realizada no dia dezenove de maio 2015 com a Antonia Fátima da Costa Vieira, conhecida popularmente como Dona Dedê, de sessenta e cinco anos, na residência da mesma no Bairro do Reino de França em Ipu-Ce.

Raimunda de Sousa Moura (D. Mundica)
Ipuense e dona de casa, alfabetizada, Raimunda de Sousa Moura, conhecida popularmente como Dona Mundica, viúva, 68 anos.
Dona Mundica, dona de casa aposentada teve um cotidiano semelhante ao de nossas outras entrevistadas que como ela, também eram de baixa condição, nos revela que trabalhou muito durante toda sua vida para ajudar a criar os irmãos e mais tarde para sustentar os filhos. Como as demais, confessa ter vivido toda sua infância e juventude sem liberdade alguma, via em um casamento a oportunidade de viver livre, mas continuou com uma vida limitada aos afazeres domésticos e a trabalhar fora para manter sua família. Nos relatou não ter casado mais virgem pois sua família era contra o seu casório e para os seus pais permitirem o jovem casal resolveu ter relações sexuais para que a família da moça os obrigassem a casar, mas ela nos conta que eles casaram antes mesmo de seus pais descobrirem.
Entrevista realizada no dia vinte de maio 2015 com Raimunda de Sousa Moura, conhecida popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos, na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.

FONTES IMPRESSAS
Jornal dos Tabajaras - Ed. 95/96
Jornal dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Dezembro/95 – Janeiro/96.
Jornal dos tabajaras. Ipu, p.7, Edição Outubro/97.
Jornal dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/Março/96.
Jornal dos Tabajaras. Resgatando Memórias. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/98.

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