ELAINE RODRIGUES GALVÃO
(Texto adaptado a partir da Monografia de graduação em História, mesmo titulo, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, ano 2015)
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa aborda as relações de gênero e de classe
na cidade de Ipu durante os anos 1950-1970. Para tanto utilizo como fontes
entrevistas orais, bem como documentos escritos, cedidos pelo professor
Francisco de Assis Martins. Por meio desses documentos e das memórias das
entrevistadas, é permitido analisar diversos temas como: os estigmas sociais,
os espaços de segregação, a situação da mulher que trabalha para garantir à
subsistência de sua família, o lazer, a sociabilidade, as relações amorosas, as
formas de resistência, o “olhar” vigilante da Igreja, a conduta feminina, entre
outros. Nessa pesquisa, portanto, foi imprescindível a metodologia de História
Oral que possibilitou o acesso às experiências de mulheres, considerando o que
fora vivenciado na cidade de Ipu, permitindo assim que se conhecesse memórias e
histórias há muito marginalizadas.
Certamente, as nossas apreensões com o período
transcorrido surgem a partir das nossas inquietações do tempo atual. Algumas
histórias contadas como verídicas, quase nunca foram contestadas por nós
ipuenses. Creio que como pesquisadora devo questionar as verdades
estabelecidas, talvez tenha sido isso que me levou a pesquisar sobre o passado
de minha cidade e sua sociedade.
Nessa pesquisa empenhamo-nos em esclarecer alguns
aspectos sobre um período marcado pelas inúmeras formas de preconceitos sociais
que seriam sócio-étnico-cultural, bem como depreender por meio de algumas
narrativas a respeito de como se dava o comportamento das jovens pertencentes às
classes sociais vigentes, que viveram na cidade de Ipu durante as décadas de
1950 a 1970.
Para tal proposta, será utilizada a História Oral,
metodologia esta que há muito tempo estava destinada a fazer parte do meu
trabalho monográfico, visto que trabalhar com narrativas orais sempre me foi
bastante prazeroso desde a minha participação na produção do documentário
“Estivado as Histórias de fé” apresentado no IV Visualidades em 2012.
A princípio, meu objeto de estudo ainda não se
encontrava bem definido, tendo o mesmo sido substituído diversas vezes no
decorrer do meu percurso acadêmico até ter minhas ideias finalmente
esclarecidas a partir das orientações com a professora Viviane Prado Bezerra. A
sua experiência esclareceu minhas ideias e fez com que definitivamente
escolhesse essa temática como assunto do meu trabalho de conclusão de curso.
Essa pesquisa se propõe a problematizar as memórias e
os discursos em torno das relações de gênero e de classe da sociedade ipuense,
enfocando mulheres de elite e mulheres das classes populares, recuperando
inúmeros aspectos de suas vidas e das suas relações sociais.
A escolha do título “Ipu dos antigos preconceitos”
simboliza os antigos estimas vivenciados pelos moradores e moradoras da cidade
de Ipu. Estes fortes preconceitos poderiam ser étnico, religioso, econômico,
social e de gênero. Apesar de este período parecer longínquo para alguns, para
outros já não aparenta estar tão longe assim.
Mesmo depois de ter passado todos esses anos, estas
práticas ainda se fazem presentes nas memórias daqueles que vivenciaram ou
praticaram alguma espécie de preconceito tão vigorosamente fixada em parte da
sociedade ipuense.
Para tal fim utilizarei a metodologia da História oral
buscando captar as diversas variações por trás dos discursos desses
entrevistados cujas experiências perpassam toda a história vivenciada na cidade
de Ipu, sendo sujeitos transformadores e transformados pela nova dinâmica
empreendida à cidade pela diversificação e modernização de seu espaço social.
Foram então estudados alguns autores que discutem
acerca da história das mulheres, bem como algumas monografias, dissertação de
mestrado e tese de doutorado sobre a cidade de Ipu, que em seus mais diversos
âmbitos me possibilitaram a criação e elaboração deste trabalho monográfico.
A etapa seguinte dessa pesquisa foi a realização de
entrevistas. Durante o mês de maio, no período de recesso da faculdade, apesar
dos inúmeros contratempos, foram realizadas oito entrevistas, sendo que já
haviam sido realizadas duas anteriormente, todas elas foram registradas em
áudio e feitas com algumas mulheres pertencentes à elite ipuense e com mulheres
pertencentes aos seguimentos populares, como também com um memorialista da
cidade. Todos estes entrevistados foram de extrema importância visto que
fizeram e ainda fazem parte da história da cidade de Ipu.
Os meses seguintes foram dedicados à análise detalhada
do conteúdo das entrevistas, aspirando compreender melhor as nuances presentes
nos relatos daqueles cujas memórias perpassam as mais diversas situações,
buscando assim compreender um pouco mais sobre em que condições as mulheres
viviam, o que faziam, se sofriam estigmas, bem como descobrir sobre o passado
de nossa cidade como também os principais lugares irradiadores de preconceitos
que acabaram se dissipando com o decorrer do tempo deixando apenas sinais da
relevância que possuíram.
Com base nas narrativas analisadas ressalto algumas
problemáticas que podem ser abordadas acerca do cotidiano dessas mulheres que,
em certa medida apresentam muitos pontos em comum e algumas desigualdades,
mostrando que as suas realidades se correspondem intensamente.
Dentre as entrevistas realizadas, escolhi sete, por
ter identificado nelas informações e situações de grande relevância para minha
problemática, como qual seria o comportamento feminino ideal para as mulheres
da elite ipuense e das mulheres dos segmentos populares? Se sofriam
preconceitos? Se haviam regras, quais seriam? Além de elencar as questões
relativas aos relacionamentos amorosos, sociabilidade e lazer.
No primeiro capítulo discutiremos a respeito da
história da mulher e sobre a construção da “identidade feminina” investida dos
enunciados médicos, jurídicos e de controle social que carregavam olhares
masculinos, com isso esta historiografia acabou por silenciar estas mulheres.
Os discursos normativos tinham um objetivo de
reafirmar hierarquias socais, de gênero e de raça. A figura feminina foi
caracterizando-se como um ser irracional, frágil e subordinado, contrapondo-se
ao homem que era considerado um ser racional, forte e dominador.
Surgiram os movimentos feministas de “primeira” e
“segunda onda” que se firmaram com um discurso de característica intelectual,
político e filosófico, que além de preocuparem-se em romper com a opressão
sofrida pelas mulheres, buscavam transformar toda a sociedade e lutavam para
conquistar uma melhor qualidade de vida e uma sociedade mais igualitária.
Ainda no primeiro capítulo faremos um esboço a
respeito da cidade de Ipu no início do século XX, esta que sofreu uma série de
transformações no âmbito econômico e demográfico devido à chegada da estrada de
ferro, considerada pela elite local um enorme avanço que classificaria a cidade
e a sociedade como progressista.
Nomes como Euzébio de Sousa, Abílio Martins, José
Osvaldo de Araújo, Chagas Pinto, Thomaz Corrêa, entre outros, foram os
principais responsáveis por adotar práticas para configurar a cidade e a
sociedade como progressista, para isso construíram espaços exclusivos para a
sociabilidade de grupos restritos. Entre eles foram criados o Grêmio Ipuense
(1912), o Gabinete de Leitura Ipuense (1919), o Centro Artístico Ipuense (1918)
entre outros espaços que impulsionavam a civilização, a modernização e o
progresso.
Devido á grande preocupação com a estética da cidade,
foram criados diversos espaços com o objetivo de embelezar o município de Ipu,
para deixá-lo com ares de civilização e progresso para impressionar seus
residentes e visitantes. Como o Jardim de Iracema (1927), local preferido para
o divertimento e lazer da elite ipuense. Lembrando que estes espaços foram
criados apenas para o entretenimento dos mais abastados, sendo proibida a
presença de populares nestes locais.
Cremos que no primeiro capítulo fora demonstrado como
a cidade de Ipu foi transformada com a chegada da linha férrea, havendo assim
diversas modificações nos espaços do município, segregando os lugares e
inibindo a presença dos populares nestes locais destinados somente à elite da
cidade, para que desse modo não houvesse misturas entre as classes sociais que
formavam a sociedade ipuense.
No segundo capítulo, por meio das narrativas orais
vamos demonstrar como viviam as mulheres da elite e as mulheres das classes
populares, estas que revelam ter sofrido inúmeros preconceitos. Discutiremos a
respeito de como tiveram as suas atitudes e comportamento vigiado e controlado
não apenas pela Igreja Católica, como também pela própria sociedade.
As mulheres da elite passaram a desligar-se de sua
clausura e começaram a frequentar inúmeros ambientes de lazer, como bailes e
matinées no Grêmio Ipuense, os piqueniques na Bica e no Gangão, mas sempre
acompanhadas, porque jamais poderiam ter a sua imagem associada à “mulher da
rua”, vulgar e imoral, pois se não seriam condenadas pela sociedade.
Ainda no segundo capítulo discutiremos acerca da
história das mulheres pertencentes às classes populares, estas que para
garantir o sustento e a sobrevivência de sua família tiveram que adentrar o
universo do trabalho e enfrentar os padrões da moralidade, exercendo inúmeras
atividades fora do âmbito do lar e da família.
Através de suas narrativas analisaremos como se deu a
presença da classe baixa feminina e quais foram os seus espaços de atuação.
Estas que inúmeras vezes tiveram a sua imagem associada à imagem de “mulheres
públicas” empenharam-se diariamente para conquistar respeito, dignidade e um
meio de subsistência.
Nossas entrevistadas trouxeram para discussão a sua
rotina diária de trabalho, as suas resistências, experiências e ainda
compartilharam os seus conflitos por meio de suas histórias de vida. Por meio
de seus relatos foi possível dar voz e visibilidade a estas mulheres que
viveram por bastante tempo silenciadas.
CAPÍTULO I - REVISITANDO A
CIDADE DE IPU E SEUS ANTIGOS PRECONCEITOS.
1.1- As Mulheres na
Historiografia: lutas, resistências e conquistas.
Durante muito tempo as mulheres não tiveram sua
história registrada pela historiografia, viveram esquecidas e submissas à
dominação masculina. Para Simone de Beauvoir (DEL PRIORE, Mary. História
das Mulheres: As vozes do silêncio. In FREITAS, Marcos César de (Org.). Historiografia Brasileira em perspectiva. São
Paulo: Contexto, 2000.p.217.) o historiador
manteve-se por bastante tempo atrelado exclusivamente a história de um único
sexo. Por conta disso, a história oficial veio sendo escrita sob a perspectiva
masculina, produzindo um conteúdo limitado, representando apenas a imagem do
homem como um sujeito único e universal.
Ao longo do período colonial brasileiro a figura
feminina foi-se legitimando como um ser frágil e subordinado, características
provenientes da Europa, onde a mulher ocupava lugar inferior nas relações
sociais externas, como na própria estrutura familiar. No período patriarcal,
costumava-se venerar a delicadeza e vulnerabilidade da mulher, os bons modos,
os costumes, tudo deveria tornar as mulheres diferente dos homens, isso
reforçaria a concepção de sexo forte, portando dominador. Conforme nos diz
Freire:
No regime patriarcal, o homem tendia a transformar a
mulher num ser diferente dele, criando jargões do tipo “sexo forte” e “sexo
frágil”. No Brasil colonial, a diferenciação parecia estar em todas as esferas,
desde o modo de se trajarem até nos tipos que se estabeleciam. A sociedade
patriarcal [...] extremava essa diferenciação, criando um padrão duplo de
moralidade, no qual o homem era livre e a mulher, um instrumento de satisfação
sexual. Esse padrão duplo de moralidade permitia também ao homem desfrutar do
convívio social, dava-lhe oportunidades de iniciativa, enquanto a mulher
cuidava da casa, dedicava-se aos filhos e dava ordens às escravas. (FREYRE,
Gilberto. Sobrados e mucambos:decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
do urbano. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio-INL, 1977, p.93. apud MOURA, Erick
Marcelo de. A mulher e a luta pela
terra no Brasil: Uma Abordagem Sócio cultural da Constituição Simbólica
no MST no que concerne ao estudo de Gênero. UFAL, sem ano. p.8.)
Desde a antiguidade que as mulheres são enfatizadas
nas pesquisas sempre com preconceito e hierarquia de valores. Havia-se uma
binaridade que tratava-se da diferenciação entre os dois sexos, e mais tarde
com o humanismo essa distinção continuou não mais pela binaridade mas pela
desqualificação da razão feminina. Diferentemente dos homens que eram considerados
racionais e superiores, as mulheres estavam relacionadas ao conceito de
natureza por estarem fortemente propensas à emoções, maternidade e paixões
desmedidas que faziam com que dependessem da razão masculina para controlá-las.
Segundo Humer e Rousseau (DEL PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de.
Op.Cit.) era preciso que se fizessem com as
mulheres tal e qual é feito com a natureza, seria necessário adestrá-las e
dominá-las.
O movimento feminista se firmou como um discurso de
caráter intelectual, filosófico e político que procura romper os padrões
tradicionais, suprimindo a opressão suportada ao longo da história da
humanidade pelas mulheres. Este movimento adquiriu bastante força, sendo
endossado por todos que defendiam a equidade entre os sexos.
Segundo Joana Pedro (PEDRO, Joana Maria.
Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v.24, N.1, P.79,
2005), o movimento feminista inicial
caracterizado como de “primeira onda” se desenvolveu no final do século XIX e
centralizou-se no requerimento dos direitos políticos, econômicos e sociais
como: poder votar e concorrer a cargos eletivos, ter direito a trabalho
remunerado, a educação, a propriedade e a herança.
Mas só a partir de 1970, com o movimento chamado de
“segunda onda”, que o tema emergiu por conta da manifestação do feminismo e
suas lutas, marcadas pelo uma ampla variedade de reivindicações, associadas à
antropologia, a história das mentalidades como também a história social.
Segundo Del Priore (DEL PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de.
Op.Cit.) este foi um período que as feministas
fizeram a história da mulher, antes mesmo dos historiadores. Diante disso, as
universidades passaram dar certa importância à temática e criaram grupos de
pesquisa e laboratórios para se debater sobre o assunto e impulsionaram a
elaboração de trabalhos e monografias.
Percebe-se que o movimento feminista preocupava-se não
somente em transformar a situação das mulheres, mas a sociedade como um todo, e
também lutavam para conseguir melhor qualidade de vida, realização pessoal e
uma sociedade mais humana. A década de 1970 foi um período em que as mulheres
puderam assumir o controle de sua vida reprodutiva, por conta da propagação da
pílula anticoncepcional, e ampliaram sua participação na educação, no mercado
de trabalho e na política. Mas houveram obstáculos religiosos contra o método
contraceptivo. E por muitas vezes a mulher foi marginalizada por assumir o
papel de chefe de família, a educação dos filhos e sua subsistência
dificultando assim a sua realização pessoal.
Havia-se uma grande dificuldade em fazer uma história
das mulheres. Já nos anos 1980 após uma grande produção de estudos sobre a
mulher, os historiadores se indagaram sobre se teriam ou não modificado a
história tradicional ou renovado seus métodos. Segundo Del Priore (DEL
PRIORE, Mary. In FREITAS, Marcos César de. Op.Cit)
havia-se uma necessidade de se fazer uma história diferente que levasse em
conta a experiência pessoal e subjetiva, assim como as atividades públicas e
políticas. Historiadoras americanas sugeriram criar uma nova história “tout
court”. Mas constatava-se que mesmo tendo revelado histórias nunca vista sobre
as mulheres como: as lutas femininas ou o papel da mulher trabalhadora, mãe e esposa,
estava-se condenado a fazer uma história paralela.
Enquanto não era feita a história das mulheres, o
movimento operário já tinha o seu espaço e tornava-se um movimento de
excepcional importância para a história econômica e social, e enquanto isso as
mulheres não tinham papel social definido na historiografia. A não ser o de
mantenedora do lar, educadora dos filhos e de esposa dedicada ao marido.
O que também dificultava ao se fazer a história das
mulheres, era a ausência de fontes sobre elas, posto que não nos deixavam
nenhum escrito ou oficial sobre suas vivências no passado. As mulheres não
participavam dos fatos históricos, enquanto os homens transmitiam sua herança e
faziam-na perpetuar. E isso nos faz admitir que a sua história só começava quando
quebravam barreiras e se manifestavam levando os historiadores a buscar uma
explicação para a sua aflição e inquietação. As historiadoras feministas
afirmavam que a história surgia dos padrões masculinos e que só discorriam
sobre a história dos homens e de suas leis.
A história das humilhações e submissões pelas quais as
mulheres estiveram sujeitas ao longo desses anos passaram a interessara maioria
dos historiadores. Estes passaram a enxergar a figura feminina e tiraram-lhes
do silêncio e do esquecimento a qual estavam submetidas, desvendaram os
contínuos casos de lutas e as suas constantes resistências. Com isso a história
da mulher passou a obter relevância e começou a se fazer presente nas
bibliotecas e livrarias, mas ainda assim tinham seu espaço controlado, sempre
associado a questões sociais, sexuais e religiosas.
Enquanto os historiadores da Europa e dos Estados
Unidos levantavam questionamentos e se interessavam em saber mais sobre os
mecanismos familiares, sociais e políticos que impulsionaram os homens a
subordinarem, a reprimirem e forjarem uma visão secundária das mulheres.
No Brasil, os estudos sobre a figura feminina tiveram
bastantes dificuldades em encontrar um espaço em nossas universidades. As
pesquisas sobre este assunto eram escassas, com pouca circulação e eram
fornecidas a um número reduzido de pessoas. Os trabalhos que abordavam esta
temática discorriam mais a respeito da história da família, do casamento e da
sexualidade do que acerca da mulher. Segundo Del Priore (Idem), a partir 1978 a Fundação Carlos Chagas foi uma das
poucas que proporcionou aos seus pesquisadores apoio a muitas pesquisas
envolvendo as mulheres.
O que podemos considerar de grande relevância para o
avanço da história das mulheres no Brasil, é o fato dela ter vivenciado uma
revolução documental, pela redescoberta da pesquisa em arquivos por temáticas
que questionavam-se as mulheres, a família ou a demografia. A Nova História na
Europa também colocou em questão a incumbência de se refletir sobre a
sexualidade, a criminalidade e os desvios.
Os historiadores brasileiros passaram a buscar nos
arquivos práticas contrarias a normalidade, passaram a extrair deles a história
dos subalternos. Surgiu-se então inúmeras teses, artigos e livros que tratavam
a história das mulheres pobres, das prostitutas, das concubinas, das mal
faladas, das defloradas, das escravas, das forras, das loucas, entre outras.
Nos arquivos policiais e eclesiásticos percebe-se toda a humilhação e violência
pelas quais sofreram através dos interrogatórios impostos pelas autoridades. E
com isso procurava-se compreender a perseguição praticada por estas
instituições, conforme observado por Maria Odila Dias, em sua obra Quotidiano e
poder:
Em Lisboa, a Câmara pagava uma mulher para castigar
com açoites públicos as regateiras e vendedoras que usassem de bradar e gritar
impropérios nas ruas e mercados de Lisboa. Nos processos policiais da cidade de
São Paulo, no século passado, não faltam indícios de mulheres bravas,
revoltadas, que gritavam em linguagem de baixo calão. (DIAS, Maria Odila
da Silva. Quotidiano e poder em S.
Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. P.21.)
Além dos documentos oficiais, de cunho judiciais ou
notariais, a história das mulheres beneficiou-se das fontes literárias que seriam
os romances, biografias, jornais e revistas que foram responsáveis por propagar
um amplo campo de pesquisas que concedia esmiuçar inúmeros pontos de vista a
respeito da vida social.
Através das revistas feministas foi possível fazer uma
releitura a respeito da imagem da mulher controlada que seguiam os padrões
conservadores impostos pela Igreja e pelo Estado. Em suas páginas retratavam a
mulher e mãe ideal a rainha do lar.
Outro método utilizado pelos historiadores para se
ouvir as vozes dos subalternos seria através da História Oral. Por meio dessa
metodologia foi possível ouvir suas vozes que por muito tempo foram
silenciadas. Esta seria a possibilidade de se construir uma identidade
feminina, libertando-a da opressão.
No início dos anos 90 um novo conceito chamado
“gênero” chega ao Brasil. Desde os anos 70 que historiadoras americanas viram a
necessidade de se estudar e compreender os grupos de gênero, seus sentidos e
significados.
As compreensões dos conceitos relativos ao gênero são
inexistentes em boa parte das teorias sociais desenvolvidas a partir do século
XVIII até o começo do século XX. De acordo com Scott algumas dessas teorias
sistematizaram a sua fundamentação em conformidade “com a oposição
masculino/feminino, outras reconheceram uma “questão feminina”, outras ainda
preocuparam-se com a formação da identidade sexual subjetiva, mas o gênero,
como o meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos, não
tinha aparecido” (SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.Traduzido por
Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila a partir do original inglês
(SCOTT, J. W.. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the
politics of history. New York, Columbia University Press. 1989).
E esta ausência explicaria em parte o impasse que as
feministas contemporâneas tiveram para incorporar o termo gênero em grupos
teóricos já existentes e em sugestionar adeptos de outras escolas teóricas que
o gênero faz parte da sua linguagem. O conceito de gênero figura os intentos
portados pelas feministas contemporâneas para pleitear um campo de definição,
para reiterar a cerca do caráter inapropriado das teorias existentes em
elucidar disparidades insistentes entre homens e mulheres.
Outro aspecto salientado por Scott é que a categoria
gênero indica explicações a partir da diferença sexual e ainda insere o
conceito de que a desigualdade entre homens e mulheres é construída por meio da
atribuição, entre os dois sexos, de papéis distintos e hierarquizados. A sua
elucidação a respeito de gênero constitui-se de alguns fundamentos que conforme
a autora estão ligados entre si, mas deveriam ser distintas na análise:
O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão
integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é
uma forma primeira de significar as relações de poder. (Idem.)
Segundo Joan Scott, “reivindicar a importância das
mulheres na história significa necessariamente ir contra definições de história
e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou pelo menos, como
reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância no passado)” (SCOTT,
Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História –
Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 75. Apud KARAWEJCZYK, Mônica. Mulheres, Modernidade e Sufrágio: Uma
aproximação possível. PUCRS, 2007, p.2.)
Desse modo,
temos como objetivo dar visibilidade a história contada pelas mulheres
ipuenses, passando a conhecê-las melhor e resgatar a participação das mesmas
nos diversos espaços da cidade de Ipu, pensar qual seria o comportamento ideal
se sofriam preconceitos, se haviam regras, quais seriam.
Nessa pesquisa buscamos elucidar alguns aspectos de um
passado marcado pelas diversas formas de preconceitos sociais em relação ao
comportamento das mulheres que viveram sua juventude na cidade de Ipu durante
as décadas de 1950 a 1970. Passado esse que, embora esteja distante dos livros
de história e dos documentos oficiais, ainda encontra-se muito vivo na memória
das pessoas que, por esses tempos, em Ipu se encontravam, sendo essas
praticantes de alguma modalidade de preconceito ou alvos dessa prática
intransigente e tão fortemente engessada no seio da sociedade.
Assim sendo a Metodologia da História Oral torna-se
meio indispensável para se aproximar das memórias das pessoas e conhecer seu
contexto histórico, uma vez que, como coloca Thompson, “a história oral é uma
história construída em torno de pessoas [...]”, dando a esses saberes a
importância histórica intrínseca a eles e lhes dando novas perspectivas,
lembrando que “ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga
seu campo de ação” (THOMPSON, Paul. (1992). A voz do passado: História Oral. Tradução de: Lolio Lourenço de
Oliveira. Rio de janeiro: Paz e Terra, p. 44, 1992.)
A História Oral desponta então como sendo a principal
estrada a ser trilhada no decurso dessa pesquisa, fornecendo não só possíveis
soluções às problemáticas levantadas a priori, como também contribuindo
com novos olhares que poderão vir a serem lançados à medida que essas
narrativas orais impregnadas de experiências forem sendo trazidas à tona.
Esses relatos ajudarão, inclusive, a desvendar novos lugares
de memória que foram irradiadores de preconceito na cidade de Ipu, bem como a
fornecer o aporte necessário para tratar da importância ensejada pelos já
englobados dentro dos arranjos e objetivos dessa pesquisa.
O município de Ipu vivenciou nas décadas de 1950 a
1970 fortes preconceitos de origens múltiplas, podendo ser étnicas, quando
pensamos na segregação sofrida por pessoas negras; social, pela existência de
uma elite aristocrática que discriminava o restante da sociedade; religioso,
esse que se constituía nos mandos e desmandos do sacerdote local e, por fim, o
qual irei me aprofundar, o preconceito de gênero, herança muito forte de uma
época onde o homem era o chefe da casa e a mulher deveria sempre obedecer,
resquício esse de uma sociedade patriarcal mantida pelos coronéis que
representavam a moral e a ordem na cidade de Ipu.
Assim sendo, compreenderemos o contexto do surgimento
destes lugares de memória, bem como o motivo que os levou a receber uma
conotação diferente daquela para eles proposta, recebendo ares preconceituosos.
Ademais discutiremos a dualidade existente entre o
Grêmio Recreativo Ipuense e o Clube Artista, bem como a dicotomia presenciada
entre a elite aristocrática e os artistas, artesãos e trabalhadores em geral,
principal público de cada um desses espaços, respectivamente. Mas antes façamos
uma pausa e falemos um pouco sobre a cidade de Ipu no início do século XX.
1.2- “Ipu em Foco”: o Progresso e a Segregação dos
Espaços de Lazer.
Com a Chegada da estrada de ferro que ligou Ipu as
cidades de Sobral, Camocim e Crateús em 1894, segundo Iramar Miranda Barros, a
cidade passou por uma série de transformações no âmbito econômico pelo
significativo crescimento do comércio local e demográfico com o crescimento
populacional, a formação de novos bairros em torno dos trilhos e a “segregação
de alguns espaços” (BARROS,
Antonio Iramar M. Ipu nos trilhos do meretrício: Intelectualidade e Controle
numa Sociedade em Formação. (1894 – 1930). 2009. 127 f. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Estadual do Ceará – UECE, Fortaleza. 2009.(Em 15
anos (1900 a 1915), mostra o historiador Antonio Vitorino F. Filho que o
crescimento populacional da cidade girou em torno de 50%. Ele atribui isso a
partir da chegada da ferrovia, uma vez que antes dela o crescimento
populacional não era significativo. Ver: FARIAS FILHO, Antonio Vitorino. O discurso do progresso e o desejo por uma
outra cidade: imposição e conflito em Ipu-CE, (1894-1930). Dissertação
de Mestrado, Fortaleza-CE: UECE, 2009. São os casos do Bairro Pereiros e Corte.
Este último leva este nome porque as obras de construção da ferrovia fizeram um
corte em um morro para o assentamento dos trilhos. As casas do bairro passam
ser construído nos dois lados cortados, margeando, portanto, os trilhos.)
Com o crescimento da cidade, uma parte da população
enriquecida por meio deste avanço, agora considerada elitista passa a enunciar
que a cidade de Ipu estava alcançando o tão almejado progresso. Estas figuras
passaram a adotar práticas para configurar a cidade e a sociedade como
progressista, para isso foram construídos espaços exclusivos para a
sociabilidade de grupos restritos.
De acordo com análise realizada pelo historiador local
Antonio Vitorino Farias Filho, a cidade de Ipu vai aos poucos se modernizando.
Foram fundados diversos espaços destinados a socialização dos aristocratas
locais como: o Grêmio Ipuense (1912) mais tarde Grêmio Ipuense Sociedade
Recreativa Dançante (1924), o Gabinete de Leitura Ipuense (1919), o Centro
Artístico Ipuense (1918) a Euterpe Ipuense entre outros espaços que fomentavam
a civilização, a modernização e o progresso.
Os principais responsáveis por fundá-los foram homens
considerados ilustres e detentores do saber como: Euzébio de Sousa, Abílio
Martins, Augusto Passos, Leonardo Mota, José Osvaldo de Araújo, Chagas Pinto,
Thomaz Corrêa, Francisco Araújo, José Aragão e Manuel Dias estes homens eram
fascinados pelo progresso.
É de grande relevância falarmos que estas associações
estavam abertas apenas para o ingresso dos aristocratas escolhidos, os mesmos
se diferenciavam pelo comportamento, pelos paramentos e pelos argumentos,
realizavam festas suntuosas, saraus e soirées que seguiam um protocolo de
etiquetas e de boa convivência e sempre proporcionavam aos seus associados ares
de modernização.
Estes homens atribuíam para si a missão de remodelar a
cidade em um local novo e habitável que fosse dotado de novos espaços que o
impulsionavam para o desenvolvimento. Os mesmos interferiam na vida da
sociedade ipuense, consideravam-se guardiões em defesa da moral e dos bons
costumes, práticas consideradas imorais seriam um retrocesso para a referida
sociedade.
Havia-se uma preocupação com a estética e a
higienização da cidade, seria necessário modernizar prédios e casas e os seus
diversos espaços, como construir amplas avenidas, ruas limpas e praças
arborizadas. Estes locais foram criados para embelezar e aformosear o
município, para deixá-lo com ares de civilização e modernização para assim
impressionar seus moradores e principalmente seus visitantes, como também foram
criados por conta da necessidade de se fundar lugares de socialização restritos
aos grupos abastados da cidade de Ipu. Desde o planejamento da criação destes
espaços, notamos que já foram grandes ícones de irradiação de preconceitos.
Segundo Sebastião Rogério Ponte, a nossa capital
Fortaleza desde 1860 passou por “um processo de remodelação sócio-urbana” (PONTE, Sebastião Rogério. “A
Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle”. In: Simone de Sousa
(org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000.) E esse processo significou a inserção da capital
cearense no contexto da belle époque que seria um processo
civilizatório, de caráter europeizador, favorecido por suas elites políticas, econômicas
e intelectuais.
Essa remodelação foi impulsionada pelo crescimento da
exportação algodoeira, que deu-se por conta da descontinuação provisória da
demanda do algodão norte-americano para a Europa, causada pela eclosão da
Guerra de Secessão nos Estados Unidos, naquele período.
O que podemos verificar diante disso é que a cidade de
Ipu passou a ter um crescimento econômico significativo a partir do momento em
que a ferrovia, em 1894, passou a dinamizar ainda mais a produção de algodão
que já se fazia presente na pequena cidade desde meados do século XIX. Com a
chegada da ferrovia, a cidade de Ipu passou a ser uma das maiores e ter os
principais exportadores de algodão da região. Vejamos o que Antonio Vitorino
nos diz a respeito disso em sua tese:
Em 1921, segundo dados dos “assentamentos da Estrada
de Ferro”, apresentados pelo Jornal Correio do Norte, em 1921, Ipu e Serra da
Mata eram os dois maiores exportadores de algodão no norte do Ceará. A primeira
cidade teria exportado 298 toneladas de algodão beneficiado “não se falando na
grande porção de algodão em rama, que a casa J. Lourenço, desta cidade enviou
para Ipueiras onde possui uma fábrica de descaroçar e que dáli foi remettida
para Camocim”. (FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade Ipu-Ce: Verso e Reverso de uma Cidade nas
Primeiras Décadas do Século XX. 2013. Tese de Doutorado em História _
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, p.53.)
Sebastião Ponte (PONTE, Sebastião Rogério. Op
Cit.) discorre que novos princípios e padrões
passaram a serem difundidos em Fortaleza, normas, medidas e reformas procuravam
ordená-las ao modelo europeu de modernização urbana. Ainda no final do século
XIX, estas ambições por modernização passaram a se materializar, por meio da
construção da Santa Casa de Misericórdia que zelariam pela saúde pública, a
edificação de um novo cemitério, o São João Batista, em local mais afastado, a
reforma no plano urbanístico da cidade que seria o aumento da extensão das ruas
até os subúrbios, a correção de becos e vias sinuosas entre outras.
No início do século XX, após a chegada da estrada de
ferro, foi à cidade de Ipu, que impulsionada pelas elites e intelectuais passou
por um conjunto significativo de reformas urbanas capaz de ordenar a cidade aos
códigos de civilização e modernização.
Segundo vimos na tese de Antonio Vitorino seria
necessário remodelar o mercado público, “deveria levar em conta, ainda, o fato
de torná-lo mais higiênico, com o objetivo de prevenir “miasmas” causadores de
doenças” (Idem, p.71.), bem como
dever-se-ia construir uma nova cadeia pública e um novo cemitério mais
afastados do centro da cidade, como também edificar uma nova Igreja Matriz pois
a que localizava-se no quadro da Igrejinha ou na praça São Sebastião que ainda
hoje continua de pé e que foi construída na década de 1880 era apresentada como
inferior ao progresso local.
Em 1927 foi inaugurado o Jardim de Iracema que foi
projetado pelo arquiteto Francisco Quixadá e idealizado pelo Sr. Thomaz de
Aquino Correia, para ele “deveria ser construída no Ipu, uma Avenida para
embelezamento da cidade e que deveria ser ponto preferido pelas famílias da
terra, para seus entretenimentos domingueiros e dias de gala”. (Jornal
dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Dezembro/95 – Janeiro/96.).
O Jardim de Iracema só poderia ser frequentado pela
“fina flor” da sociedade, havia em volta ao Jardim “um gradil para não dar
acesso àquele recinto a certos elementos que poderiam estragar a relva e
retirar as flores” (Idem.) Desta forma os
mesmos esclareciam que os populares não eram bem vindos.
Segundo o depoimento da Srª. Maria Cajão ao professor
e historiador Petrônio Lima, o Jardim de Iracema não poderia ser frequentado
por pessoas que não faziam parte da sociedade, estas quando contrariavam a
ordem do Sr. Thomaz Correia eram expulsas do recinto forçadamente:
Thomaz Corrêa [...].[...] ficava dentro, vigiando,
porque era muito intransigente, tá entendendo?! Aquelas mocinhas que não
freqüentava a sociedade... Pegava no Bracim e botava pra fora e fechava duma
veiz (pausa). Tinha quermesse dentro né! Tudo isso. A música tocava a gente
também dançava... O que é que tinha? Não tinha nada de mais, era uma beleza!
Tudo era bonito! Tá entendendo? E o rei butava as pobrezinha das pirão; chamava
as “pirão (pausa) “as pirão fria” (...) pois seu Thomaz Corrêa ia atrais e bota
pra fora...(LIMA, Francisco Petrônio Peres. “Iracema”: Trilhas e Memórias de um mito. Da literatura ao Espaço
Urbano de Ipu. 2005. 46 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade
Estadual Vale do Acaraú. Sobral, p. 34. )
O belíssimo Jardim de Iracema foi edificado em 1927, e
segundo alguns dos nossos entrevistados, este ambiente foi palco de inúmeras
práticas preconceituosas para com a população menos favorecida, práticas estas
que se perpetuaram além dos “anos dourados de Ipu”. Anos estes que para aqueles
que fizeram parte da elite ipuense, foi marcado por diversos entretenimentos no
referido espaço, cenário destas condutas intolerantes.
Em um artigo do Jornal dos Tabajaras - Ed. 95/96, um
ipuense rememora o período em que o Jardim de Iracema além de ter sido um belo
espaço de lazer e divertimento para “sociedade” ipuense, ainda marcou os “anos
dourados de Ipu” com as suas retretas aos domingos com a banda de música do
Maestro Raimundo Vale, ao som de valsas, Fox, boleros, tango entre outras,
estas informações também se encontram na memória dos nossos entrevistados.
Era a época dos romances platônicos, onde “a juventude
ipuense se deleitava e os casais de namorados num banco de jardim, trocavam
juras de amor eterno” (Jornal dos tabajaras. Ipu, p.3, Edição
Dezembro/95- Janeiro/96). Havia ainda no Coreto
serestas, ao som do violão, cavaquinho, flauta, clarinete e “na voz bonita e
saudosa do músico e compositor Abílio Coelho”. (Idem)
Mas como já foram ressaltados anteriormente estes eram
locais reservados apenas para a alta sociedade. De acordo com o depoimento da
Srª. Maria Cajão, percebemos que haviam fortes preconceitos enraizados na
sociedade ipuense desde a criação destes espaços no início do século XX. Estes
locais foram criados apenas para o divertimento da elite para aqueles que
ambicionavam o tão sonhado progresso, deixando de fora destes ambientes os
pobres, considerados desqualificados.
As empregadas domésticas, as lavadeiras, as cozinheiras,
as passadeiras, ou seja, as mulheres de baixa condição social que residiam na
cidade de Ipu, só poderiam frequentar outros espaços um pouco afastados para
que não tivessem contato com as senhoras e senhoritas da sociedade ipuense. A
Praça 26 de agosto inaugurada no dia do centenário de Ipu em 26 de agosto de
1940 foi um dos locais frequentados por estas mulheres que eram vulgarmente
chamadas de “pirão frio”. Segundo Francisco de Assis Martins:
Quem passear no jardim de Iracema não pode passear no
26 de Agosto, quem era que ia passear na 26 de agosto eram as nossas
funcionárias, as nossas domésticas de casa que hoje nos ajudam, as nossas
secretárias que na época eram chamadas de “pirão frio”, então resultado disso
até uma prostituta morreu ali naquela praça, será por obra do destino? Que eu
acredito q tenha sido ou por coincidência, uma prostituta chamada de Braulina
morreu na época ali admite-se ninguém sabia porque na época não era conhecido,
morreu ali com a rede armada do lado e do outro lado amanheceu morta no
chão...admite-se que tenha sido de AIDS porque ela definhou muito.” (Entrevista
realizada no dia dez de outubro de 2012 com o ipuense e ex-professor, formado
em Ciências Físicas e Biológicas pela UFC e Memorialista Francisco de Assis Martins,
de setenta e um anos, na residência do mesmo no bairro Reino de França em Ipu –
CE.)
Até meados da década de 1960 as “pirão frio” ainda
sofriam preconceitos, tendo como ponto de encontro a Praça 26 de Agosto. Pela
fala de nosso entrevistado observa-se que esta, mesmo com a quebra de algumas
barreiras continua sendo alvo de alguns estigmas ao longo dos anos,
principalmente por ter se tornado abrigo a prostituta Braulina que admite-se
ter falecido de AIDS naquele espaço no início dos anos de 1980.
A referida doença veio a ter casos diagnosticados no
Brasil justamente a partir da década de 1980. Pondo-nos em dúvida se Braulina
faleceu de AIDS, ou talvez de outra doença não diagnosticada pelos médicos da
época, devido a falta de recursos apropriados para a análise de sua
enfermidade.
É certo que na época haviam doenças sexualmente
transmissíveis que segundo Célio Marrocos Aragão “eram a blenarrogia, o cancro
duro ou mole, a temível “mula”, que na classificação do médico italiano Vucetti
era o linfoglanuloma venéreo, todas curáveis”, (Jornal dos tabajaras.
Ipu, p.7, Edição Outubro/97.) e inofensivas em
relação a temível AIDS.
Houve-se uma necessidade de se construir uma sede onde
funcionassem os bailes, as matineés, os saraus, os encontros exclusivamente
restritos para as famílias abastadas. Conforme é ressaltado por Antonio
Vitorino, no início do século XX por conta da inexistência destes Clubes dado o
fato de que o Grêmio Ipuense ainda não possuía sede própria, os diretores de
mês faziam suntuosas festas particulares nos salões de suas residências de dois
em dois meses, mas a sociedade deveria progredir e para isso seriam necessárias
a criação de novos espaços modernos destinados para o divertimento do “escol
social”.
O Grêmio Recreativo Ipuense foi definitivamente
instalado com sede própria, em 12 de outubro de 1924 e organizado como uma
sociedade composta pelos homens e mulheres abastados de Ipu. Tinha como
objetivo: “congregar as famílias dos seus sócios num meio civilizado. Promover
bailes, festas literárias, comemorações cívicas, reuniões e outros
divertimentos congêneres”. (Jornal dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição
Fevereiro/Março/96.)
Os suntuosos bailes realizados nos salões do Grêmio
Ipuense, fazem parte da memória daqueles que vivenciaram, presenciaram, ouviram
falar e dos que foram sócios da instituição. As memórias dos depoentes
reafirmam ainda mais que os sócios eram escolhidos pela diretoria do Grêmio,
deveriam além de pertencer à elite ipuense, serem pessoas de estima,
civilizadas, e de boa conduta.
Antonio Vitorino Farias Filho reafirma em sua tese que
“para fazer parte da diretoria daquela agremiação e ser aceito como sócio era
necessário pertencer a “alta sociedade” da época, “ter bons modos”, uma “moral
civilizada” e comungar com os ideais modernos e progressistas de seus
fundadores, ser indicado por um ou mais sócios efetivos e aceito em votação
pela maioria da diretoria em uma de suas sessões ordinárias”. (Jornal
dos tabajaras. Ipu, p.7, Edição Outubro/97.)
Os saraus, os bailes entre outros divertimentos do
Grêmio realizados restritamente para alta sociedade ipuense, era um local que
cooperava para os enlaces matrimoniais dentro de uma mesma classe. Como foram
os casos de Francisco Quixadá e de Sephira Natalia de Carvalho, de Omar Coelho
e Marietta Alverne, e de Cursino de Mello e Francisca de Mello. Todas estas
uniões datam de 1913 (quando o Grêmio Ipuense ainda não possuía sede própria),
mas houveram muitos outros ao passar dos anos que conheceram seus parceiros nos
salões do Grêmio.
Havia baile sempre uma vez por mês, e além dele o
Grêmio realizava ainda os “saraus extraordinários”, que seriam os bailes
realizados “em comemoração as datas festivas e cívicas, como o 7 de setembro, o
20 de janeiro, dia de São Sebastião e padroeiro da cidade, o 11 de julho,
aniversário da batalha de Riachuelo”. (Idem, p.110.)
Os bailes realizados no Grêmio Ipuense eram sempre
feitos com muito luxo e pompa, seus eventos eram geralmente decorados pelas
esposas e filhas dos sócios e havia tudo de mais moderno naquele período, seus
frequentadores vestiam a última moda, as moças preocupavam-se sempre em fazer
uma roupa nova, caso a festa ocorresse em dois dias consecutivos, seriam dois
trajes exclusivos. Era um local apropriado “a uma sociabilidade restrita,
próprio para a exteriorização de riquezas”. (Ibidem, p. 112.)
Os bailes do Grêmio eram bastante aguardados pelos
jovens da cidade filhos dos associados, que viam naquele momento uma
oportunidade para paquerar e dançar com seus futuros pretendentes. Em uma fotografia
da época (Imagens na monografia na integra) observasse como os frequentadores
do Grêmio buscavam vestir-se bem, para assim expor sua elegância, bons modos e
riqueza, típicos da elite da época.
Ao discorrer sobre estruturas sociais hierarquizadas,
as fotografias nos fornecem importantes evidencias sobre a constituição da
sociedade ipuense. Os aspectos presentes nos fazem levar em consideração que
tudo que ali se encerra é proposital e traz um significado que não pode ser
negligenciado, como coloca Maurício Lissovsky: “[...] a distribuição dos
objetos no espaço não é gratuita, tudo se posiciona no espaço, devendo serem
levadas em consideração as relações entre os objetos. A orientação dos corpos
também não é gratuita, eles traduzem orientações: linhas de autoridade, de
subordinação, de hierarquia, de disciplina.” (LISSOVSKY, Maurício.
"A fotografia como documento histórico", in Fotografia: Ciclo de Palestras sobre fotografias. Rio de Janeiro,
FUNARTE, 1983. p. 117-126.)
Como já foi dito anteriormente o Grêmio Recreativo
Ipuense, o Jardim de Iracema, o Gabinete de Leitura Ipuense, entre outros
espaços, foram criados por homens distintos que tinham a mente progressista.
Esses locais trariam a civilização e estavam abertos apenas ao ingresso dos mais
abastados.
São inúmeras as memórias dos que presenciaram e
sofreram algum tipo de preconceito nesses espaços. Era inadmissível a entrada
de pessoas negras e pobres nestes estabelecimentos, e quando alguém insistia em
adentrar nestes locais eram postos para fora forçadamente. Francisco de Assis
Martins relatou um caso ocorrido no Grêmio Ipuense entre as décadas de 1950 e
1960:
Zezé Carlos, Antonio Olimpio e Raimundo Salú, aquelas
três pessoas por serem de uma pele escura queriam ir a festa do dia 20 de
janeiro que era a maior festa dançante que tinha lá e não poderiam entrar
porque eram caminhoneiros trabalhavam em caminhão carregando pessoas pra São
Paulo, pra Brasília, pro Rio de Janeiro naquela época, nos chamados pau de
arara não podiam dançar lá no grêmio, e num certo momento lá , falaram com o
Vicente Belém Rocha que era uma pessoa muito acessível de uma mente muito
aberta, muito livre... ele disse, quando for entre assim 9:30 pras 10 horas
você vai ...quando for 10hs vocês vão lá. E foram lá entraram e começaram a
dançar, quando a diretoria deu que eles estavam lá dentro começou uma parte
aceitando a permanência deles e outras não, (eu aceito você não aceita, bota
pra fora tira pra fora) ... e começaram a derrubar mesa, derrubar cadeira,
quebrar garrafa, quebrar copo e aquela confusão danada colocaram pra fora, o
Zezé mais sensato saiu logo e o Antonio Olimpio vamo embora Zezé vamo pro
Artista e o Raimundo Salú não saiu... e o Raimundo Salú ficou. (Entrevista
realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op.
Cit.)
Vejamos no depoimento de Francisco de Assis Martins
que havia um forte preconceito com as pessoas de cor e de procedência humilde
como os caminhoneiros, carpinteiros, pedreiros, entre outros. Os mesmos eram
proibidos de frequentar o Grêmio Ipuense e mesmo quando tinham o apoio de um
dos Diretores do referido Clube eram postos para fora, pois boa parte da elite
não queria se misturar com aquela gente pobre.
Sentindo-se atingidos por um enorme preconceito, um
grupo de operários que não tinham acesso ao Grêmio Ipuense resolveram criar um
clube que fornecesse divertimento e lazer para suas famílias. No “dia 29 de
junho de 1918, durante uma reunião na residência do Senhor Francisco das Chagas
Paz foi criado o Clube Artístico Ipuense, funcionando temporariamente numa casa
alugada situada a rua Pe. Mororó de 1935 a 1942.” (MARTINS, Francisco de
Assis. Centro Artístico Ipuense.
Disponível em:
http://professorfranciscomello.blogspot.com.br/2010/05/centro-artistico-ipuense.html.
Acesso em 29/05/2015.)
Em entrevista o ex-professor e memorialista Francisco
de Assis Martins relatou que as mulheres e homens da elite frequentavam o
Grêmio Recreativo Ipuense e as mulheres e homens que pertenciam as camadas
populares frequentavam o Clube Artista Ipuense, este último criado para receber
aqueles a quem se negava entrada no primeiro.
Os homens que frequentavam o Grêmio Ipuense poderiam
adentrar no Clube Artista, mas as moças da alta sociedade não poderiam
comparecer naquele ambiente de segunda classe se não eram “mal vistas”.
Presenciamos então um preconceito com os indivíduos de classes sociais menos
favorecidas havendo assim uma espécie de segregação sócio-étnico-cultural e
certo machismo em relação às mulheres pertencentes ao “escol social”. Vejamos o
relato de Francisco de Assis Martins:
No Grêmio Ipuense, por exemplo, você dançava no Grêmio
Ipuense, eu dançava no Grêmio Ipuense, eu homem podia ir lá no clube artista e
dançar, mas as moças não podiam ir lá no clube artista, por que era uma
sociedade de segunda classe, que miseravelmente chamavam de segunda classe, os
artistas, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, os barbeiros, aqueles
bodegueiros da época e outros tantos similares e criou-se então aquele problema
social dentro do Ipu quem dança no Artista não dança no Grêmio e vice-versa. (Entrevista
realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op.
Cit.)
Esses dois clubes são apenas uma pequena faísca dentre
as chamas do preconceito social na cidade de Ipu, ainda buscamos aprofundar
sobre outro marcante espaço de segregação que foi o Paredão edificado em 1942
pelo então interventor Dr. Humberto Aragão que, embora tenha sido construído
com o intuito primeiro de ornamentar a cidade acabou sendo alvo de preconceito
por ter sido, por vezes, utilizado pelos integrantes das classes menos
abastadas para seus encontros amorosos. Vejamos o que Zezé do Vale um dos mais
importantes e conhecidos músicos e compositores ipuenses, nos fala em sua
canção a respeito do Paredão:
Se quer falar comigo
Procure outro ambiente
Mas ali no paredão
O padre briga com a gente.
É muito feio uma moça enxovalhada,
Você não casa comigo
E eu faço moça falada...
(MARTINS, Francisco de Assis. Centro Artístico Ipuense. Disponível
em:
http://professorfranciscomello.blogspot.com.br/2010/05/centro-artistico-ipuense.html.
Acesso em 29/05/2015.)
Zezé do Vale, música
Paredão.
Os versos acima citados formam a estrofe inicial da
música “Paredão”, de autoria do músico e poeta ipuense José Cecílio do Vale,
popularmente conhecido como Zezé do Vale, o mesmo retrata em sua música os
antigos costumes, comportamentos, e preconceitos que marcaram a sociedade
ipuense desde a edificação do Paredão.
O Paredão era um muro extenso e elegante de aparência
rústica, “constituído de escadarias, caramanchões, vasos com diferentes plantas
ornamentais e uns postes com globos luminosos ostentando cada vez mais o
ambiente”. (MARTINS, Francisco de Assis. Ipu dos Antigos Preconceitos. Ipu, 21 de março de 2015.p.1.) Localizado no centro da cidade, próximo do Jardim
Iracema, do Grêmio Ipuense, dos famosos Bar Cruzeiro e do Iraciara Bar. Era o
ponto favorito da juventude ipuense que nas noites, principalmente dos finais
de semana, concentravam-se no Jardim de Iracema dando voltas ao seu redor e
ficavam subindo e descendo incessantemente os batentes entre a praça e os
bares.
O Paredão era um ambiente pouco iluminado, e isso
atraia os jovens casais de namorados que procuravam um local mais reservado
para namorarem um pouco mais colados e se acariciarem, já que não eram
permitidos naquele tempo se beijarem publicamente. “Difícil era se convencer a
namorada ficar no paredão” (Jornal dos Tabajaras. Resgatando Memórias.
Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/98.) Naquela época
os preconceitos eram ainda mais rígidos e qualquer desvio poderia acabar com
reputação e a honra de uma moça. “Por isso moça que se prezava não corria
tamanho risco e quando assim procedia se expunha ao ridículo de ser considerada
moça falada e geralmente era censurada pelo padre no sermão das missas
domingueiras”. (Idem.)
Que o Paredão foi um espaço marcado por inúmeros
preconceitos já sabemos. Mas ainda levanta-se uma questão seria ele um divisor
religioso ou um divisor social? Pelo que nos foi narrado e pelos estudos
realizados concluímos que o referido ambiente resultou-se como um divisor
social e religioso juntamente. Pois quando os padres durante sua homília pediam
aos pais para que não deixassem seus filhos namorarem nas proximidades do
Paredão cria-se um divisor religioso, o sacerdote local passa a interferir na
moral e educação dos filhos da sociedade ipuense.
[...] os padres na época das festas de São Sebastião e
São Francisco eram muito grandes aqui na cidade eles ficavam falando na igreja
que as moças e os rapazes não deviam namorar no paredão...Então os padres
batiam para que as moças não fossem namorar lá... (Entrevista realizada
no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins, op. Cit.)
O Paredão era um ambiente destinado apenas para as
pessoas de segunda classe, quem namorasse ou frequentasse o paredão não poderia
de forma alguma adentrar no belíssimo Jardim de Iracema, pois fazendo isso
quebrariam as regras e abalariam a moral tão resguardada e preservada pelos
aristocratas. Este fator contribuía para que o paredão se tornasse também um
divisor social e, seus frequentadores, vítimas desse estigma. Vejamos o que
Francisco de Assis Martins nos diz a respeito:
[...] quem namorava no paredão não podia namorar no
Jardim de Iracema... a conclusão que eu tiro daí é que existia um preconceito
tremendo partindo do paredão, ora o paredão de um lado ficava o jardim de
Iracema e do outro lado ficava o Grêmio Ipuense, paredão no meio formando um
divisório social por que quem ia namorar no paredão não podia ir namorar no
jardim de Iracema e eu procurei uma certa vez quebrar esse tabu,eu mesmo
quebrei esse tabu, fui ao paredão com uma namorada minha e cheguei lá para ver
o que ia acontecer comigo nessa época eu estava fazendo um curso de preparação
para ser oficial do exercito...e saí e fui para o paredão e a menina disse não
eu não vou Francisco aí eu disse vai, vai para o paredão comigo que eu quero
ver o que é que vai acontecer e fiquei lá, andei e terminado uma hora mais ou
menos fui para a Avenida que era o Jardim de Iracema que era proibido andar e
fui lá e fiz voltas e mais voltas por lá e voltei. Quando foi no outro dia meu
pai chegou e disse assim olha eu fui abordado pelo seu Xavier Timbó (que era um
aristocrata do Ipu na época) aí disse assim ora o seu filho quebrou a moral da
gente, foi pro paredão depois foi pro jardim de Iracema aí o papai também
querendo seguir aquele conservadorismo aí disse assim: não vá mais fazer isso;
aí eu não num vou mais não, no outro dia fiz a mesma coisa, fui e fiz a mesma
coisa.(Idem.)
Ao analisarmos os relatos de Francisco de Assis
Martins, percebemos que durante “os anos dourados de Ipu”, estava havendo uma
ruptura destes comportamentos pré estabelecidos pelos aristocratas locais, o
próprio entrevistado foi um instrumento para se quebrar esses paradigmas a
tanto tempo enraizados na sociedade ipuense.
No desenrolar dessa pesquisa tivemos a possibilidade
de entrevistar algumas mulheres que fizeram e que ainda fazem parte da história
da cidade de Ipu. Por meio dessas narrativas obtivemos a oportunidade de poder
conhecer melhor o passado de nossa cidade como também esses lugares que
acabaram se perdendo na voragem do tempo deixando apenas vestígios da
importância que tiveram.
São surpreendentes as descrições colhidas e a riqueza
de informações que elas contêm. Por intermédio delas conseguimos assimilar de
uma excelente forma os processos que permearam o passado dessas mulheres na
cidade de Ipu. Os relatos também nos proporcionam diferentes amostras acerca do
cotidiano dessas mulheres, se sofriam preconceitos, se haviam regras, quais
seriam.
Por meio dessas narrativas também é possível se
compreender qual seria o comportamento feminino ideal para as mulheres da
pequena elite local ipuense e das mulheres dos segmentos populares. Sem dúvida,
deveriam estes paradigmas abranger aspectos diferenciados. Teriam seu
comportamento regrado e controlado não somente pela Igreja Católica, mas também
pela própria sociedade haja visto que havia uma preocupação social que essas
jovens viessem a ter atitudes de “mulheres públicas”.
Todos os relatos referem-se, de maneira singular,
inúmeros pontos dessa pesquisa, sendo habitual encontrarmos neles diversos
pontos de vista que se integralizam, bem como vários elementos que se contradizem.
O que está posto inalteravelmente em um, em outro se altera e um novo enunciado
é então incorporado.
Por meio de análises elencarei, incorporado ao
material de que disponho, algumas narrativas que na minha óptica fornecem o
discernimento para tentar explanar alguns dos pontos essenciais que são
discutidos nessa reflexão, tais como o processo de segregação
sócio-étnico-cultural, compreender como se dava o comportamento feminino das
classes sociais existentes, bem como as relações de gênero.
Devido à escassez de documentos históricos e oficiais,
nos empenhamos através dos relatos orais em desvendar o universo feminino até
então desconhecido das mulheres da elite ipuense nas décadas de 1950 a 1970.
Estimaria conhecer o seu cotidiano, seu comportamento na vida familiar e na
vida pública, quais as normas de conduta e os comportamentos ditados pela
igreja, que a todo o momento interferiam em suas vidas.
A partir do século XIX a figura feminina passa a ser
estereotipada por um pensamento marcado pelo patriarcalismo em que acreditavam
que a mulher era um ser inferior por sua condição biológica. Os médicos,
juristas e, principalmente, os eclesiásticos foram os responsáveis pela criação
dessas ideias e com isso passaram a construir aquele que seria o comportamento
ideal para as mulheres, que deveriam sempre assumir o papel de mãe educadora
dos filhos, de esposa dedicada ao marido e excelente dona de casa.
O comportamento das mulheres pertencentes à elite
ipuense não difere muito do comportamento ideal feminino impostos pela Igreja
Católica e pela ciência desde o século XIX. Estas moças tinham uma vida
tranquila, sempre reservadas aos afazeres domésticos, aos trabalhos manuais,
como crochê, bordar, coser, viviam sempre sob a vigilância dos pais e da
própria sociedade.
Indagando as nossas entrevistadas a respeito de como
seriam a vida das mulheres pertencentes à alta sociedade ipuense nas décadas de
1950 à 1970, foram-nos revelados alguns aspectos interessantes como em que
condições viviam, o que faziam e quais os lazeres recomendáveis.
Segundo os relatos de Gonçalinha Bezerra Aragão,
professora aposentada, as moças e mulheres da elite ipuense eram mais
recatadas, caseiras e prendadas, dedicavam-se apenas aos afazeres domésticos,
trabalhos manuais e aos estudos:
As mulheres eram mais recatadas, mais caseiras, mais
dentro de casa nos afazeres familiares por que a gente não tinha muito lazer...
prendadas, estudar, era os trabalhos manuais de casa bordando, por que o lazer
aqui na cidade era pequeno não tinha pra onde a gente ir... então a vida da
gente era mais dentro de casa com os pais, com os amigos, à tarde nas calçadas
conversando nas noites de lua em que agente ficava apreciando a lua, era
contando histórias era uma vida muito recatada. (Entrevista realizada no
dia dezessete de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora,formada em
Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e Administração Escolar, Gonçalinha
Bezerra Aragão, de sessenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em
Ipu –Ce.)
Maria do Carmo, professora aposentada, reforça em seu
depoimento o cotidiano das mulheres ipuenses, como uma vida simples, pacata e
muito inocente, dedicavam-se aos estudos e tinham os trabalhos manuais e do lar
como atividades principais:
A gente tinha as diversões, mas era de maneira muito
inocente, existiam os bazares que eram as festinhas dançantes de sete às nove
horas da noite, às nove horas da noite todo mundo já ia pra casa, não ficava
ninguém em rua, moça não frequentava a rua além dessa hora. A gente estudava,
outras pessoas trabalhavam era tudo trabalho humilde, trabalho simples, nesse
tempo não existiam empregos públicos eram poucos, existiam escolas e
professores, mas eram pessoas também de mais idade e os serviços públicos eram
poucos geralmente era trabalho do lar e bordado, crochê, bico de renda, tricô,
fazer flores, era essas as atividades principais, era a arte. (Entrevista
realizada no dia quinze de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada
em pedagogia pela UECE e especializada em Administração Escolar, Maria do Carmo
(este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada
que optou por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na
residência da mesma no Centro em Ipu- Ce.)
A cidade de Ipu durante as décadas de 1950 a 1970
passou por diversas mudanças, período em que os estigmas tão arraigados nas
décadas anteriores passaram a ser fragmentados moderadamente. Na memória
daqueles que viveram nestas décadas ficaram as inesquecíveis lembranças dos
bailes suntuosos realizados no Grêmio Ipuense para o divertimento da “fina
flor” da sociedade, das belíssimas serenatas realizadas pelos apaixonados nas
casas de suas namoradas, do Cenáculo, local onde se reunia a juventude da época
para conversar e trocar ideias, do Clube Artista Ipuense e das suas matinées,
dos passeios e piqueniques na Bica e no Gangão, entre outros.
No próximo capítulo as nossas entrevistadas discutirão
sobre o modo de vida e os costumes na cidade de Ipu nas décadas de 1950 a 1970,
bem como nos revelarão os principais ambientes de lazer, muitos deles
irradiadores de preconceito, lembrando que, em grande parte, esses lugares
simplesmente desapareceram ou sofreram transformações irremediáveis, restando
apenas a memória dos que vivenciaram estes anos em Ipu.
CAPÍTULO II - A HISTÓRIA DAS
MULHERES IPUENSES: CONFLITOS DE GÊNERO E DE CLASSE.
Os historiadores orais podem escolher a quem
entrevistar e a respeito do que perguntar. A entrevista propiciará, também, um
meio de descobrir documentos escritos e fotografias, de outro modo, não teriam
sido localizados. (THOMPSON, Paul. 1992. p. 25.Op.cit.)
Para se obter informações sobre fatos não
documentados, apenas vivenciados e, portanto, existentes apenas no campo da
memória é imprescindível que se utilize da metodologia da História Oral. Ela é
uma das únicas ferramentas com as quais podemos alcançar essas informações,
principalmente, em sociedades onde poucos dominam a escrita.
Dessa forma a História Oral ainda realiza um trabalho
de “resgate” dessas experiências das classes marginalizadas, lembrando que
essas têm grande valor histórico e narram os acontecimentos através de lentes
diferentes daquelas com que se escrevem os livros de história, deixando de lado
os vencedores para se conhecer os vencidos. Dessa forma, ela “[...] admite
heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do
povo.” (Idem. p. 44) Nos fornecendo uma
perspectiva totalmente diferente e inovadora daquela que sempre se vinha
rebuscando na prática historiográfica.
Pensando esse processo de marginalização de discursos
dos indivíduos de classes sociais menos favorecidas podemos inferir também que
houve uma espécie de segregação histórica, uma vez que essas pessoas perderam
seus lugares de direito enquanto sujeitos sociais. Desse modo, os grupos
populares não se encaixam dentro dos determinados padrões estipulados no âmago
da sociedade e coletivamente aceitos como padrões morais, sociais e econômicos
preestabelecidos.
Esse processo de segregação se confunde com o presenciado
na cidade de Ipu durante meio século onde muitas pessoas foram alvo de algum
tipo de segregação levada a cabo pela elite local, que estipulava os parâmetros
em que as pessoas deveriam se enquadrar para integrarem efetivamente a
sociedade.
“A consideração pela humanidade do outro não é
abstrata, mas passa pela diferença que o individualiza. É, pois, o oposto da
indiferença. Mas também não é mera diferença, distinção solta, desencadeada:
sua referencia é universal [...]” (COHN,
G. Indiferença, nova forma de barbárie. In: NOVAES, A. (Org.). Civilização e barbárie. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 81-89), com
isso Cohn reforça ainda que aquilo que torna uma pessoa diferente da outra e,
portanto, passível de segregação, não é apenas apontada como tal, mas
intimamente reconhecida por todos, inclusive pelos discriminados.
2.1 – “Fina Flor da
Sociedade”: Lazer, cultura e comportamento feminino.
Neste capítulo, utilizamos a História oral como
metodologia de pesquisa, pois trabalhamos com histórias de vida, procurando
preservar a trajetória, a experiência dessas mulheres. Discutiremos através da
fala de nossas entrevistadas qual seria o comportamento feminino ideal para as
mulheres da pequena elite local ipuense e das mulheres dos segmentos populares.
Os grupos dominantes locais (as famílias tradicionais,
conservadoras e abastadas) ao lado da Igreja católica eram considerados os
“guardiões da moral e dos bons costumes” estes eram os responsáveis por
controlar e vigiar as famílias ipuenses. Havia-se uma preocupação social que as
jovens viessem a se tornar “mulheres públicas”. E esta preocupação se faz
presente desde os tempos coloniais. Segundo Emanuel Araújo:
Das leis do Estado e da Igreja, com frequência
bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à
coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o
mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras,
ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem
das instituições eclesiásticas. (ARAÚJO, Emanuel. A Arte da Sedução:
Sexualidade Feminina na Colônia. In: DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora, 1997. p. 45.)
As “mulheres honestas” que faziam parte da sociedade
ipuense deixaram o seu habitual isolamento e passaram a frequentar bailes,
matinées, entre outros tipos de lazeres recomendáveis. Bem como passaram a
adquirir mais autonomia a partir do momento que começaram a se dedicar ao
trabalho docente, trabalho este considerado digno para mulheres honestas e
certa distinção social.
Diversos estudos já constataram que as mulheres das
classes populares, há muito, possuíam um cotidiano que lhes possibilitavam um
convívio social fora do âmbito da casa em virtude das atividades que exerciam
para garantir a sobrevivência familiar. E assim constatamos em Ipu.
As moças mais humildes trabalhavam em casas de
famílias ricas da cidade para garantir e ajudar no seu próprio sustento. Muitas
relataram, em entrevista, que após sua jornada diária de trabalho, arrumavam-se
nas casas onde trabalhavam e de lá iam para as festas que aconteciam no Clube
Artista Ipuense.
Vale salientar que nesses ambientes de lazer, ainda
que o sexo feminino fosse colocado como base do poder de atração, essas
diversões respondiam a um padrão moral, que punha a sexualidade feminina
inscrita nos parâmetros da respeitabilidade. Permitindo que algumas dessas
mulheres participassem apenas sob a vigilância familiar.
Essas manifestações de preservação da moral ainda se
encontram vivas na memória das moradoras de Ipu e, assim sendo, fornecem, como
nenhum outro documento, informações preciosas sobre esses acontecimentos.
Portanto, visando conhecer essas narrativas, a metodologia da História Oral se
apresenta como sendo indispensável para essa pesquisa uma vez que ela é uma das
únicas fontes capazes de trazer à luz as experiências vividas por estas
mulheres que foram alvo dos preconceitos religiosos e sociais, levando em
consideração a ausência de documentos escritos.
A professora aposentada Gonçalinha Aragão, pertence a
uma família considerada ilustre na cidade de Ipu. Igualmente as nossas
entrevistadas que também fizeram parte da alta sociedade ipuense, desde cedo se
dedicou e formou-se para ter a educação como seu ofício, lembrando-nos sempre
que mesmo diante de sua ocupação não deixava de se preocupar com a sua função
de esposa, proporcionando ao seu companheiro todos os cuidados que uma mulher
casada deveria exercer.
Indagada a respeito de como as mulheres deveriam se
comportar Gonçalinha Aragão nos relata que todas elas deveriam ter princípios
morais e um comportamento exemplar, tanto no vestir, como no falar e as mesmas
deveriam manter uma boa conduta em todos os ambientes que frequentavam.
Vejamos:
Deviam ter sua ética, a moral, a mulher tinha que ter
um comportamento no sentar, no vestir, no falar, então a mulher era ética, você
não via mulher fumando, você não via mulher bebendo, você não via uma mulher
trançar uma perna (pausa) com vestido muito curto, o trajar que era decente,
então era uma mulher de um bom comportamento em qualquer lugar no clube, na
rua, na Igreja (pausa). Assim, na minha época agente tinha que ter um cuidado
em falar com as pessoas, um idoso, se você passasse numa calçada você sempre
dizia um bom dia, boa tarde, boa noite, você ser uma pessoa amável, você sabia
lhe dar com as pessoas, com seus semelhantes. (Entrevista realizada no
dia dezessete de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em
Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e Administração Escolar, Gonçalinha
Bezerra Aragão, de sessenta e sete anos, na residência da mesma no Centro em
Ipu –Ce.)
De acordo com Michelle Perrot (PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998), os gestos
obedeciam a códigos de urbanidade que ditavam o que uma mulher “decente”
deveria evitar fazer. A repressão era geralmente mais intensa sobre as mulheres
“da sociedade”, do que sobre as mulheres pobres que eram sempre mais livres em
seus movimentos. As mulheres deveriam vestir-se bem e não deveriam fumar,
principalmente em locais públicos.
D. Eunice Martins, assim como todas as jovens ricas da
cidade estudou no Patronato Sousa Carvalho, instituição direcionada pelas irmãs
de caridade, mas segundo a mesma, devido à frequente mudança de cidade por
conta do emprego de seu pai, foi uma interna na escola das freiras, nesta
instituição formou-se normalista. Logo mais ao não suportar a distância que a
separava de seu noivo casou-se com ele, embora seu pai não fosse a favor no
início e tenha demorado cerca de três dias para permitir o casório. Juntos
vieram residir definitivamente na cidade de Ipu.
Sobre como se davam os namoros D. Eunice Martins é
enfática ao dizer que “a sociedade era muito exigente não queria que ninguém
namorasse com gente moreno, que chamavam caboclo” (Entrevista realizada
no dia dezoito de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada em
Pedagogia e pós-graduada em Administração Escolar, Eunice Martins, de setenta e
cinco anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce).
A mesma nos relata que as moças daquela época obedeciam e as que não obedeceram
fugiram ou acabaram casando contra a vontade dos pais.
Quando foi questionada a respeito de algum acontecimento
em que a família foi contra o casório pelo fato do pretendente ser uma pessoa
de pele negra, ela relata que muitos foram os casos, mas não iria citá-los por
ser uma ofensa a família em questão.
No decorrer desta pesquisa fatos como esse, terão um
novo olhar ao passo que as entrevistas ajudarão a desvelar o acontecido. Alguns
dos entrevistados preferiram não se enveredar por esse caminho por ter sido o
fato ocorrido em uma família pertencente a elite ipuense e bastante conhecida
na época, entretanto diante de tanta persistência, consegui extrair aos poucos
o que sacudiu a sociedade ipuense naquela época e que tanto impressionou,
ficando assim a lembrança guardada nas memórias.
O acontecimento que tanto chamou a atenção da
sociedade ipuense foi o fato do baiano Stélio da Conceição Araújo, um homem de
cor negra que veio para a cidade de Ipu gerenciar o Banco do Brasil, casar-se
com uma moça chamada Maria Alda, considerada uma das mais belas da cidade, de
pele branca e de família rica.
Conforme a concepção da historiadora Martha de Abreu
Esteves (ESTEVES, Martha Abreu. Meninas
perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989) em
seu livro “Meninas Perdidas”, os namoros ocorridos na cidade do Rio de Janeiro,
eram rodeados pelos olhares vigilantes de pais e vizinhos. Além disso, haviam
os novos códigos de conduta determinados pelos juristas e médicos higienistas
que estabeleciam, os comportamentos, os espaços e os horários próprios e impróprios
para os relacionamentos amorosos.
Estas práticas também se faziam presentes na cidade de
Ipu, onde os jovens casais eram continuamente vigiados pela família da moça,
que não possibilitava que o casal permanecesse sozinho, e os proibiam até mesmo
de irem desacompanhados aos bailes e à pracinha.
Segundo Maria do Carmo os namoros “eram inocentes, o
mais que se podia era pegar na mão um do outro, havia o maior respeito, não
existia esses “agarra agarra” de hoje, e a gente era muito respeitada.” (Entrevista
realizada no dia quinze de maio de 2015 com a ipuense e ex-professora, formada
em pedagogia pela UECE e especializada em Administração Escolar, Maria do Carmo
(este é um pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada
que optou por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na
residência da mesma no Centro em Ipu- Ce.)
As mulheres eram bastante vigiadas, principalmente em
seus namoros, mas toda essa vigilância não as impediam de trocarem beijos com
os seus parceiros. Algumas delas procuravam burlar estas normas do
relacionamento, e de maneira discreta procuravam espaços para se encontrarem
frequentemente longe das vistas de seus familiares. Estas aventuras deixaram
marcas na memória de D. Eunice Martins.
Ah desde os quatorze anos que eu namoro com o meu
marido, (risos) é, só posso dizer que conheci ele mesmo, então era muito
saudável né, nos namoros a gente era muito vigiado, oura mais se a gente se
escondia e beijava sempre (risos). (Entrevista realizada no dia dezoito
de maio de 2015 com, Eunice Martins, Op. Cit.)
De acordo com a narrativa de Gonçalinha Aragão os
namoros se davam para um conhecimento pessoal e se iniciavam com os flertes que
eram uma troca de olhares entre os casais, e quando o flerte se prolongava e
passava a se ter uma comunicação, já era considerado um namoro.
E o namoro era a mãozinha pegava na mão, saia pra
passear, sentava nas pracinhas, e as conversas se dirigiam pra coisas (pausa)
nada de sexo, eram coisa bonitas, eram histórias, ele apreciava a beleza dela e
ela apreciava a beleza dele nera, era esse tipo de coisa, o namoro bonito né,
(pausa) que via que os dois se compartilhavam né, existia essa química bonita,
de uma alma para outra alma, de um coração para outro coração, era diferente
era uma coisa muito bonita.(Entrevista realizada no dia dezessete de
maio de 2015 com, Gonçalinha Bezerra Aragão, Op.cit.)
Segundo Carla Bassanezi Pinsky (PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos
Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História
das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) o flerte ou os namoricos poderiam conduzirem-se a um
compromisso mais sério ou não. E isso era um perigo, pois um flerte
inconsequente poderia prejudicar e manchar a reputação de uma moça.)
As jovens viviam em pânico dos aproveitadores,
sedutores e mulherengos que poderiam abusar de sua ingenuidade e partiriam sem
se preocupar com os prejuízos causados em suas vidas. Portanto tipos como estes
deveriam ser evitados de todo modo.
Com isso, nossa entrevistada prossegue expondo como
era o comportamento dos homens durante o namoro com as mulheres. A mesma
relatou que sempre haviam aqueles desavergonhados que passavam dos limites, mas
as moças da época eram bem instruídas, tinham um certo equilíbrio e uma formação
moral, portanto sabiam se sobressair em meio a esta situação.
Tinha os livros que a gente lia de formação do caráter
que era um livro muito bonito que formava o caráter e a personalidade dos
jovens, então a gente tinha as defesas da gente, mas sempre acontecia um ou
outro né, que vinha, sempre tinha sim, mas a gente sabia se comportar. (Idem.)
As mulheres eram vigiadas inclusive no espaço sagrado,
tinham a incumbência de apresentar uma conduta que estivesse continuamente em
consonância com os preceitos morais cristãos. Os Sermões dos padres no decorrer
das missas, eram enfáticos, pregavam sempre os bons modos e o bom comportamento
que toda mulher honrada deveria ter.
Segundo D. Eunice Martins, os padres eram bastante
rígidos em relação à vestimenta das moças. Estas só poderiam adentrar na igreja
com roupas de mangas compridas, com vestidos longos ou abaixo dos joelhos, e a
maioria das vezes de meias, “vestido decotado nem pensar, aí a gente tinha os
vestidos de sair e tinhas os casacos, então a gente colocava aqueles casacos
por cima dos vestidos e a gente ia pra igreja.” (Entrevista realizada no
dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, Op.cit.)
Estas exigências se fizeram presentes não somente na
cidade de Ipu. Em Sobral o traje feminino também foi objeto de crítica no
Jornal O Correio da Semana, onde o Bispo da cidade desautorizava a entrada de
mulheres com os braços descobertos. Conforme salienta Chrislene Cavalcante, com
o apoio do vaticano foram publicados artigos referindo-se sobre a necessidade
de tomar todas as medidas para se combater a indecência dos trajes, antes que
eles atingissem os limites da casa do Senhor. Vejamos o aviso que o Cardeal
Pompili ordenou que fixassem nas portas de todas as igrejas de Roma:
A mulher não deve entrar na casa de Deus senão com um
vestido afogado, modesto e decente, para que não ofenda a santidade dos templos
sagrados. Diante do vestuário decotado das mulheres, os padres deverão avisar
os fiéis que tais senhoras que ousam entrar no templo sagrado com decotes,
mangas curtas, etc. poderão ser convidadas a sair da igreja. (A Santa Sé
e a Moral. Correio da Semana, Sobral, 29 de julho de 1924. Apud, CAVALCANTE,
Chrislene Carvalho dos S. P. O
Espetáculo da Cidade: Corpo feminino, Publicidade e vida urbana em Sobral
(1920-1925). 2013, p.164 à 165.)
Nesse sentido, Dona Maria do Carmo recorda-se de
quando foi expulsa da igreja em meio a sua confissão pelo pároco, por conta de
não estar vestida adequadamente:
Eu me lembro que um dia, a fazenda não deu pra fazer
com a manga até lá mais embaixo, então ficou bem aqui abaixo do cutuvelo e por
isso, e eu fui me confessar e o padre: _ Levante-se que você está escandalosa.
Me levantei e mandou que me retirasse da igreja por causa da manga bem aqui.(Entrevista
realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo, op.cit.)
Conforme nos conta D. Eunice Martins “As filhas de
Maria” (As “Filhas de Maria”, foi
uma Irmandade religiosa formada exclusivamente por mulheres católicas
solteiras, sob a orientação espiritual do pároco local, se constituía em lugar
de práticas sociais de jovens pacatas, virtuosas, de comportamento e reputação
ilibados, reunidas em torno da devoção à Virgem Maria.Existiu em diversas
Dioceses do Brasil. Para maiores informações, ler: ANDRADE, Maria Lucélia. “Filhas de Eva como Anjos sobre a Terra”:A
Pia União das Filhas de Maria em Limoeiro-CE (1915-1945). 2008. Dissertação de
Mestrado em História_ Universidade Federal do Ceará. Fortaleza.) só utilizavam roupas de mangas compridas, não
poderiam frequentar e nem mesmo olhar, as festas que aconteciam na cidade, “ no
carnaval elas se escondiam [...] e eu nem me importava porque eu num era filha
de Maria (risos).” (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015
com Eunice Martins, op.cit.)
Na cidade de Ipu a Igreja juntamente com as irmãs de
caridade exerceram uma função preponderante por meio de atividades
assistencialistas desenvolvidas por mulheres representantes dos segmentos
superiores da sociedade. D. Maria do Carmo cita “As Luizas de Marillac” (As
“Luizas de Marillac” foi um grupo formado por jovens moças que juntamente com
as filhas de Caridade de São Vicente de Paulo e Luisa de Marilacc ansiavam
dedicar a sua vida à serviço dos pobres.) que
foi um desses grupos a qual ela e muitas outras jovens fizeram parte:
As Luizas de Marillac que formavam os grupos [...] e a
gente visitava os pobres, era muito bom. No dia, por exemplo, eu tinha uma
velha morava lá no Alto, cada um cuidava duma velha né, duma velhinha ou dum
velhinho, então no dia do meu aniversário, (a velha não sabia o dia do
aniversário dela), então no dia do meu aniversário, a gente se reunia tudim e
ia comemorar o meu aniversário na casa da velhinha, levava presente era pra
velhinha, aí a aniversariante levava um bolo, pra comer lá na casa da velhinha
e deixava pra ela.
(Entrevista realizada no dia quinze de maio de
2015 com Maria do Carmo, op.cit.)
Notamos que na passagem do século XIX para o século
XX, a figura feminina passou a se fazer presente, o próprio trabalho de
assistencialismo social contribuiu para que estas mulheres realizassem
atividades fora do ambiente domiciliar, proporcionando-lhes mais independência.
Devido às diversas transformações dos costumes e
modernização pelas quais a cidade de Ipu estava passando ao longo dos anos as
mulheres pertencentes aos setores sociais elevados passaram a não estar mais
reclusas em seus lares, preocupando-se única e exclusivamente com os trabalhos
domésticos, ou mesmo desinteressadas por qualquer instrução ou ocupação e
limitadas em suas diversões, estes comportamentos passam a não fazer mais parte
das vivências femininas, principalmente nas décadas de 50 à 70 na cidade de
Ipu.
É certo que o método familiar paternalista,
transmitido desde o período colonial, ainda influenciava as relações
familiares, determinando restrições para o comportamento das mulheres, que
vinha se desenvolvendo vagarosamente. O padrão burguês de esposa e mãe de
família que eram vistas como a “rainha do lar”, não representou a exclusão ou
enclausuramento da classe feminina, pelo contrário, requisitou-se dela uma
absoluta participação no corpo social, primeiramente negada, e ainda
menosprezada e estereotipada pelos historiadores.
Na cidade de Ipu, houveram diversos ambientes em que
as mulheres passaram a frequentar. Conforme fosse a sua posição social, elas
eram convidadas a desempenhar ações distintas, deixando assim, de serem meras
observadoras e coadjuvantes da história, e passando então a criar
sociabilidades próprias. Desta maneira os diversos espaços públicos formaram um
cenário importantíssimo para ser assistido as inúmeras transformações das
atitudes e condutas femininas, bem como avaliar o cotidiano destas mulheres
nestes espaços, por meio das formas de lazer e entretenimento desenvolvidas.
Muitos foram os espaços dedicados ao lazer e o
entretenimento das mulheres da elite ipuense. D. Gonçalinha Aragão nos relata
que participava de muitos lazeres, mas sempre acompanhadas pelos pais ou por
alguém responsável. Os principais ambientes que frequentavam eram:
O Cenáculo, era que se juntavam as mocinhas,
adolescentes e jovens, pra trocar ideias, pra ouvir música, pra ler, jogar,
tinha também a quadra de esportes, que tinha os dois times de voleibol que era
um sucesso e time de futebol de salão, tinha o time tabajara e o cisne branco
que era o do colégio, tinha os passeios na Bica e no Gangão, eram os tipos de
lazer né, as tertúlias nas residências e tinha né, as tradicionais festas do
dia 20 e dia 21(janeiro) e tinha a festa de outubro nera, tinha o chitão, tinha
as festas, mas sempre sempre a gente não ia só, sempre acompanhada ou pelos
pais ou pelo pai, ou então pelo uma tia. (Entrevista realizada no dia
dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
Percebemos que a classe feminina ipuense, já nas
décadas de 1950 à 1970 já não viviam mais em um habitual isolamento a qual
viveram durante anos. Já possuíam mais liberdade para fazer piqueniques no
Gangão e na Bica, a participarem de times esportivos, como também se fazerem
presentes nas principais festas do ano que eram as festas em celebração aos
santos padroeiros da cidade, São Sebastião em 20 de Janeiro e São Francisco em
4 de Outubro.
D. Eunice Martins relembra com bastante saudosismo o
período em que se divertiam no Jardim de Iracema nas noites de sábado e domingo
em que haviam as retretas com a banda de música no coreto, e que enquanto a
banda tocava as jovens ficavam volteando a praça e flertando com os rapazes, “e
sempre eles iam contrário pra gente se encontrar duas vezes (risos).”(Entrevista
realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.) A entrevistada prossegue:
Ah e tinha matinê, matinê era uma espécie de
divertimento aos domingos, a gente ia lá e botavam uma vitrola né, com aquele
disco né, e a gente dançava lá era muito animado, era uma vida muito feliz, e
tinha muito piquenique na bica também dia de domingo, quando não existia outra
diversão já programada a gente fazia a viagem a pé, porque não tinha estrada na
bica, mas já era um programa muito bom, agente levava comida levava tudo pra
lá, e passava o dia lá era uma maravilha, existia Gangão também né, aqui a
cachoeira do Gangão aqui mais perto, e a gente tinha muita vida, não tínhamos
muita liberdade, mas tinha em parte a ponto de satisfazer a gente. (Idem)
É relevante ressaltarmos que as entrevistadas não
sentiam-se presas ou acuadas, pelo contrário revelam ter tido uma vida,
bastante movimentada, repleta de diversões, claro sempre vigiadas, mas tinham o
necessário para satisfazê-las.
Um dos espaços de lazer dedicados a elite de Ipu, era
o Grêmio Recreativo Ipuense. Gonçalinha Aragão nos relata que as festas eram
muito bem organizadas pela diretoria, e tinham a entrada permitida somente aos
sócios deste estabelecimento, os mesmos eram escolhidos rigorosamente:
[...] quem podia fazer parte da sociedade e ser sócio
era aquelas pessoas (pausa) que tinham um bom comportamento sabe, de caráter,
de moral, também tinham aquelas pessoas de poder aquisitivo alto, mas também
tinham outras pessoas né, que tinha uma moral, um comportamento, um cara
decente, um comerciante, uma pessoa bem estruturada na vida. (Entrevista
realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão,
op.cit.)
Todos deveriam seguir os padrões estabelecidos pelos
diretores do Grêmio. “Eles queriam uma sociedade limpa, uma sociedade bacana,
uma sociedade muito fina flor [...]” (Idem).
No supracitado dia 20 de Janeiro comemora-se a festa do Santo padroeiro da
cidade e D. Gonçalinha Aragão discorre a respeito de como se davam esses
eventos no Grêmio Recreativo Ipuense:
Então era assim, quando eu ainda conheci o grêmio foi
um grêmio muito de elite,[...] dia 20 de janeiro que era a festa tradicional
podia entrar muita gente, os convidados que vinham de Fortaleza, Rio de
Janeiro, de várias partes, de vários Estados do Brasil e cidades aqui
circunvizinhas e cidades mais distante um pouco, que ficava lotado né aqui no
Ipu, mas a festa do dia 21 era para os sócios, privada para os sócios, ninguém
entrava, e era a rigor, terno, gravata, a mulher de longo de vestido de bolsa
acho que até de luvas elas iam, então era uma festa para a sociedade, onde eles
contratavam orquestras que vinham da Parnaíba, tinha também os Cometas nera,
que também tocava, que era um conjunto muito bacana, então naquele dia a festa
elitizada era só para os sócios [...](Ibidem)
Gonçalinha Aragão descreve que haviam diversas pessoas
que atualmente possuem um alto poder aquisitivo que foram vítimas de
preconceitos dentro e nos arredores do Grêmio Recreativo Ipuense. Aqueles que
observavam a festa do Grêmio pelo lado de fora eram os que ficavam no “sereno
da festa” e os que adentravam neste espaço eram convidados a se retirarem como
nos relata a entrevistada:
Eu não vou citar o nome, mas vi várias pessoas que
hoje eles são pessoas de alto poder aquisitivo, vários vários, e no entanto eu
estava lá dentro né, do clube e olhava pela janela e via as pessoas que não
podiam entrar, chamava sabe como, ficavam no sereno da festa era isso aí que
chamavam as pessoas que não podiam entrar, aí podiam ter o dinheiro que tivesse
mas ele não tinha a cultura e a família né [...]. Mas tinha gente, acho que
ainda hoje rodam por aí, gente que eu vi né, que assistir também quando tinha
alguém dançando lá, e o diretor do clube chegava e dizia opa meu amigo, você
não pode, você não é sócio do clube, lhe convido a se retirar, vi isso, então
eu acho que era uma coisa muito fechada, acho que isso aí pode-se dizer
discriminação, que eu nunca aprovei. (Ibidem.)
Com isso observamos a importância que se tinha em
fazer parte de uma família influente na cidade de Ipu. Não bastava ter boas
condições financeiras para adentrar no Grêmio Ipuense ou ser sócio desta
associação, tinha que fazer parte de uma família de renome que se destacava não
só pelas inúmeras posses, mas também pelo conhecimento, poder e estima que
possuíam.
O memorialista Francisco de Assis Martins também narra
a respeito desse caso mencionado por Gonçalinha Aragão. Este homem de poder
aquisitivo já foi inclusive em anos anteriores prefeito da cidade de Ipu e sua
esposa também, e esta foi intitulada como a “mãe dos pobres”. Este homem em sua
juventude foi caminhoneiro, por conta de seu trabalho conseguiu possuir
inúmeros bens e na época o mesmo embora não fosse rico mas tivesse um bom
dinheiro não poderia entrar no clube, pois como bem disse D. Gonçalinha Aragão
os sócios deveriam ser de uma família nobre e possuírem cultura.
D. Eunice Martins relembra que não perdia um só baile
do Grêmio Ipuense, e que todos deveriam ir bem trajados. Segundo seus relatos,
“[...] o baile mais chique que existia era o de 12 de outubro que era o
aniversário do Clube, aí minha filha todo mundo muito arrumado, se não fosse
muito bonito nem entrava (risos)” (Entrevista realizada no dia dezoito
de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.).
Diante disto, notamos que a sociedade da época preocupava-se em manter um alto
nível não só por meio de bailes restritos aos mais abastados, mas também pelos
bons modos e o bem vestir.
Segundo D. Eunice Martins, os bailes do Grêmio eram
uma oportunidade perfeita para os namoros e a paquera, principalmente para
aquelas que adoravam conhecer pessoas novas e paquerar com os viajantes que
vinham para a cidade de Ipu vender seus produtos e aproveitavam para participar
das festas do Grêmio Ipuense. Vejamos o que conta nossa entrevistada:
Elas eram muito cortejadas, mas sempre elas já tinham
os pares né, todo mundo já tinham seus namorados nera, agora vinham muitos
viajantes como elas chamavam e tinha as moças que não queriam namoro assim fixo
aqui pra justamente quando chegavam os viajantes. Eu tinha uma parenta que
gostava muito de viajante eles vinham vender alguma coisa por aqui e ficavam
pras festas nera. Então cortejava aquelas moças nera e tudo, mas era tudo com
muito respeito. (Idem.)
Pelos estudos realizados e pelos depoimentos de
Francisco de Assis Martins podemos afirmar que haviam sim moças que sempre
permaneciam solteiras para poder conhecer os viajantes que vinham a cidade de
Ipu, mas estes homens não poderiam adentrar no Grêmio Ipuense, visto que este
ambiente era voltado somente para o divertimento da elite. Nesse ponto,
encontramos certa contradição entre as memórias dos entrevistados, visto que se
contradizem quanto à presença de certos viajantes no Grêmio.
Desse modo, sabemos que a memória é seletiva e
passível ao esquecimento. As recordações que nos atormentam logo são excluídas
da consciência, selecionando apenas as lembranças do que se deve rememorar.
Portanto, selecionar ou esquecer são manipulações conscientes ou inconscientes,
resultantes de inúmeros elementos que acometem a memória individual. Segundo
Thompson:
[...] por um curtíssimo espaço de tempo temos algo que
se assemelha a uma memória fotográfica, mas isso dura apenas uma questão de
minutos [...] esta fase específica é muito, muito breve, e então o processo de
seleção organiza a memória e estabelece espécies de vestígios duráveis, por
meio de um processo químico. (THOMPSON, P. Problems of Method in Oral
History PAUL. Oral History Journal, v. 1, n. 4, 1971. Apud. GOMES, Almiralva
Ferraz e SANTANA, Weslei Gusmão Piau. A
história oral na análise organizacional: a possível e promissora
conversa entre a história e a administração. Cad. EBAPE.BRvol.8 no.1 Rio de
Janeiro Mar. 2010.)
Cada perspectiva de uma entrevista se evidencia
substancial e passível de análise, o que é dito por nossa entrevistada é tão
considerável quanto aquilo que não foi dito, o acontecimento que se distorce
também é de grande significado haja visto que podemos empreender entusiasmada
discussão sobre os motivos que levaram a pessoa a fazê-lo.
Ao ser indagada a respeito da liberdade para sair de
casa, D. Eunice nos conta que foi criada com muita liberdade. A mesma alega que
devido sua mãe ser escritora, possuía uma mente muito aberta. De acordo com a
entrevistada sua mãe dizia:
[...] que filha presa quando se soltava fazia
besteira, ás vezes meu pai dizia:_ Não essa moça, tá escuro, como é que vai
ser? ela vai sair?; _ Vai sair, a gente tem que deixar as pessoas ter liberdade
pra poder ter comportamento, foi o que a minha mãe me ensinou. (Idem)
Aproveitando o ensejo foi indagado se a mesma tinha a
liberdade de frequentar qualquer ambiente. Segundo ela: “as moças não podiam
namorar no paredão, se fosse namorar no paredão Ave Maria ficava falada
(risos). Então era recomendação, ninguém namorava no paredão, era na Avenida e
pronto.” (Ibidem) Ao ser questionada
sobre o porquê de não poderem frequentar o Paredão ela relata:
Lá ficavam as domésticas, porque na época existia
muito preconceito, não queria que a gente se misturasse, eu imagino que fosse
por isso, mas um dia desse eu conversando com minhas amigas da época elas
diziam: _Era não é porque lá era meio escuro. Então nós não sabemos o motivo,
só sabemos que a gente namorava na Avenida. (Entrevista realizada no dia
dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)
O acesso ao Grêmio Ipuense era normatizado, de forma a
monitorar as sociabilidades desta sociedade. Designar quem tem permissão ou não
para envolver-se, ou ainda quem é apropriado ou não para fazer parte desse
espaço demonstra-se como uma, entre várias, maneiras de distinção e definição
dessa associação. A elite se distingue dos outros, classificando e
desqualificando, determinando o que faz parte do seu meio e o que está fora
dele.
A diretoria do Clube preocupava-se com as
sociabilidades. Por isso criavam normas e costumes que faziam parte de uma vida
em sociedade, que iam ao encontro da moral da época. É certo que estes
diretores pediam a colaboração dos associados para o cumprimento destas regras,
para assim fazer daquele local, um ambiente socialmente elevado. Mas de acordo
com o depoimento de D. Eunice Martins, estas sociabilidades restritas eram por
vezes quebradas por intermédio dela própria, devido ser filha do presidente do
Grêmio tinha algumas regalias. Ela prossegue:
As moças de família, só podia ir as filhas dos sócios
e os sócios pra entrar, tinham lá os requisitos aqueles que não respondessem de
acordo com o mandamento lá nera, não sei como era bem direito não, meu pai foi
presidente também do clube muitas vezes. Eu era da elite (risos) mas eu tinha
muitas amigas boas, nunca fiz distinção assim, e as vezes eu levava minhas
amigas né, mas nunca fizeram nenhuma objeção, eu entrava com elas e tudo, porque
não tinha como eu não era melhor do que ninguém então se houvesse objeção a
gente discutia eu já ia preparada mas nunca houve. A entrada só era permitida
para os sócios seus filhos e convidados, [...] (Idem.).
De acordo com a fala de nossas entrevistadas
observamos que as mesmas deixaram transparecer serem mais tolerantes com as
pessoas pertencentes às camadas populares, que sempre foram tão estigmatizadas
pela alta sociedade ipuense. Notamos que as novas gerações estavam tornando-se
mais complacentes passando a constituir amizades com os mais humildes e a
minimizar a distinção de cor e de classe.
Segundo D. Eunice Martins, as mulheres pobres, que
trabalhavam para garantir o seu próprio sustento sofriam inúmeros preconceitos,
“nem na avenida Iracema elas não podiam fazer o rodeio no gradil, o lugar delas
era lá no paredão”(Ibidem). E ainda
demonstra sua tamanha indignação: “eu achava isso um verdadeiro absurdo graças
a Deus que passou e eu ainda assisti né, eu era ainda bem nova quando não existia
mais isso na cidade.” (Ibidem.)
A entrevistada continua falando que as chamadas “pirão
frio”, que eram as mulheres que trabalhavam em casas de família tinham um lugar
próprio para frequentarem. A mesma se refere à Praça 26 de Agosto: “Tinha essa
avenidinha nova aí como chamavam, que elas frequentavam [...] perto da
prefeitura né, elas andavam muito aí também, aí nós não íamos né, (risos) as
besteiras da época, os preconceitos.” (Ibidem)
Maria do Carmo vivenciou de maneira bem distinta das
demais entrevistadas. Revela com bastante pesar ter tido uma vida deveras
difícil, pois ficou órfã muito cedo e ao perder seus pais, ela e suas duas
irmãs passaram a morar com suas duas tias que já eram idosas. As mesmas sempre
foram muito rígidas na educação de suas sobrinhas, não as deixavam brincar com
outras crianças por medo delas aprenderem coisas impróprias, e estas deveriam
estar sempre bem vestidas até em seu lar, com blusas de manga, saias compridas
e até mesmo de meia. Menciona ainda ter sido durante sua juventude, motivo de
chacota para suas colegas, pois devido ter sido criada em um ambiente de
clausura sempre foi inocente em assuntos referentes à sexualidade feminina.
Quando indagada a respeito de como eram os casamentos,
Maria do Carmo nos diz que havia um ritual que antecedia o casamento que seria
o namoro onde “o rapaz frequentava a casa da moça sentava na calçada conversava
com os pais e com ela também, era uma coisa assim que eles nunca ficavam
totalmente a sós” (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015
com Maria do Carmo, op.cit.). Mas de acordo com
sua narrativa suas tias não permitiram que ela casasse, a mesma para poder
encontrar-se com seu futuro esposo saia de casa as escondidas:
Eu pra namorar fugia de casa porque eu já tava com 28
anos de idade, sem pai nem mãe, e a tia que me criou não permitia, então, as
tias já estavam velhas , minhas duas irmãs tinham casado e eu não tinha com
quem ficar eu não ia morar com uma irmã né [...]. Aí surgiu aí um viúvo e esse
viúvo veio atrás de mim, eu aceitei por conveniência não foi por amor [...] e
elas não deram a permissão pra mim casar. Olha eu pra falar com ele eu saia
escondida e eu dizia _ tem uma reunião dos professores , aí eu saia e
encontrava com ele ali do jeito que tava em casa chinelinha no pé, sem me
aprontar, sem nada e assim ele me queria. Aí no dia que foi pra casar eu disse:
_ Olha amanhã eu vou me casar, aí não foi ninguém. [...] Eu comuniquei pra
elas... lá em casa não houve nada, nós entramos na igreja no dia 18 de janeiro
a música tocando no patamar da igreja era 5 horas da manhã, era a alvorada sabe
de são Sebastião, aí quando terminou o casamento, só eu , ele e as nossas
testemunhas, meu não foi ninguém e nem dele porque a família dele não morava
aqui, então só nossos padrinhos. Quando terminou o casamento eu saí e vim
embora pra casa e ele tirou o paletó lá fora da igreja e foi para o comércio
dele, quer dizer que não houve comemoração, não houve nada nada. Quando foi a
noite eu fui a igreja, pra novena aí eu disse olha de lá (eu chamava ele Seu
Antonio, ele era 26 anos
mais velho que eu ) eu disse:_ olha de lá eu vou pra
casa do Seu Antonio, aí fui. Aí fiquei frequentando, mas assim eu sofri muito
com isso viu. (Idem.)
Para que se fossem preservadas a ingenuidade das
moças, era habitual que as informações referentes à sexualidade humana
comparecessem a elas marcadas por desaprovação, retenção, silêncios e estigmas.
Segundo Pinsky (PINSKY, Carla
Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10
ed. São Paulo: Contexto, 2012.) até mesmo o
rapazes estavam suscetíveis à ausência de informação e diálogo sobre o assunto.
E foi com desinformação e falta de comunicação sobre este assunto que foram
educadas as jovens ipuenses.
Quando perguntamos se a sua família falava e orientava
sobre sexo a entrevistada diz: “Nunca, não, ninguém falava nisto, não se
tocava, Ave Maria” (Ibidem.). Quando
casou-se sobre sua noite de núpcias a mesma continua dizendo: “por Deus que ele
era um pai pra mim, ele assumiu o lugar do meu pai, então com muito respeito
nós casamos, ele com muito respeito me levou de uma maneira muito direita que
eu aceitei e tudo, e ele me explicando e foi assim que aconteceu, foi me
orientando”(Ibidem.). Ao perguntarmos
como ela reagiu se ficou nervosa, ela nos fala:
Não, sabe que eu não fiquei, ele conduziu tudo de uma
maneira, assim inocente, eu acho que ele sabia, ele notou durante o namoro a
minha loucura, que eu não sabia de nada, ele deve ter notado. Ele me respeitava
tanto que um dia eu tava na esquina ali dessa pracinha, saí fugi pra ir
conversando, quando isso houve um apagão viu, as luzes se apagaram aí ele páááá
riscou um fósforo e ficou assim pra todo mundo ver que agente tava bem
direitim, quer dizer que ele também rezava na mesma cartilha minha né (Ibidem).
Do mesmo modo, Gonçalinha Aragão relata que não havia
uma preparação ou até mesmo uma orientação para a noite de núpcias por parte de
sua família. O tema sexo era um tabu, e devido a escassez de informações as
mulheres casavam-se virgens e acreditando em histórias fantasiosas sobre essa
primeira noite. Não se havia a preocupação em esclarecer a noiva a importância
desse acontecimento. A respeito disso nossa entrevistada explica que:
A preparação era feita por a gente mesmo né, pelos
estudos e pelos livros, porque não tinha televisão, não tinha computador, não
tinha essa interferência de amiga com amiga [...], era uma coisa que a gente
tinha vergonha de sair perguntando aos pais. Minha mãe era altamente reservada
com as coisas então ela nunca me disse minha filha é assim assim, leve isso.
Pra mim fazer meu enxoval era até com vergonha né, eu tinha ajuda, era ajuda de
mim mesmo que eu procurava pesquisar, mas perguntar mamãe como é que vai ser na
hora? como é que vai acontecer? como eu devo me comportar?. Isso aí nunca, eu
não tive essa comunicação com ela e nem ela teve essa comunicação comigo, a
gente casava no escuro (risos), seja o que Deus quiser (risos), mas não tinha
isso. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha
Bezerra Aragão,op.cit.)
A entrevistada prossegue dizendo que somente no Curso
Normal era que as mulheres passavam a ter aulas de formação sobre anatomia e
biologia ministrada pelo Dr. Thomaz e somente durante e por meio destas aulas
que elas eram informadas de como realizava-se a reprodução humana e de como as
mães davam a luz a um filho, entre outras coisas:
Agora tinha sim as aulas de formação com o Dr. Thomaz,
que ele dava anatomia, dava biologia, tinha outros livros de formação né, tinha
as aulas do Monsenhor Moraes também que a gente assistia, e tudo isso ia
somando né, você veja que eu já vim saber realmente como era que a mulher...,
por onde que era que a mulher tinha um filho já tava no normal, até então eu
achava que era a história da cegonha, a cegonha trouxe, que meu pai sempre
dizia assim, você sabe que horas foi que cegonha veio lhe deixar, a cegonha
veio lhe deixar duas horas da tarde (risos), sua mãe tava deitada assim na cama
e eu atravessado quando vi aquela cegonha andando assim naquele bater de asas
era você que vinha chegando duas horas da tarde. (Idem.)
Gonçalinha Aragão casou-se aos 30 anos, e neste
período já havia feito o Curso Normal, portanto já tinha um certo conhecimento
por meio dos livros e das aulas de sobre como se dava a noite de núpcias. Mas
confessa que não estava preparada para aquele momento tão especial em sua vida:
Eu não entendo como foi que aconteceu né, assim porque
eu sabia as coisas pelo livro mas não preparada pra aquele momento né, alguém
tivesse me preparado né, eu fiz tudo assim, coisas da natureza mesmo, deixei
que a natureza agisse, que Deus agisse na minha vida né e que a coisa fosse
acontecendo porque eu só tinha muito era vergonha eu não sabia se apagasse a
luz se deixasse a luz acesa, como que era, eu não sabia de nada, foi
acontecendo tudo naturalmente tudo foi dando certo, tanto é que até hoje estou
aqui 30 anos de casado. Não tinha mais uma camisola e tinha que comprar ainda
um desabiê, era a camisola e mais outro negocio por cima (risos) eu acho assim
pra trocar minha roupa no dia do meu casamento eu fui no banheiro troquei já
vim toda né e eu acho que aconteceu com a luz apagada e debaixo dos lençóis
teve nada de preparação aconteceu tudo naturalmente. Fiquei no outro dia com
vergonha não olhava nem na cara dele, passei foi dias sem olhar, com uma
vergonha danada cada vez que tinha um momento de amor era assim tinha muita
doação, porque não houve essa preparação era muita distância acho que sexo pra
mãe era a coisa mais difícil dela falar disso pra nós. (Ibidem.)
Conforme discorreram nossas entrevistadas, o sexo era
um tema pouco comentado, e totalmente excluído dos assuntos familiares. De
acordo com Gonçalinha Aragão “falar de sexo era uma coisa muito sublime, o
corpo da mulher era como um santuário”. Continua:
[...] até que se dizia assim: _ A honra da mulher é
mais fina do que a honra da moça, porque a mulher tem um marido pra preservar,
tem os filhos, então eu acho que o sexo era falado com muita cautela, ela
talvez lesse vários livros nera, porque não era comentado a gente não falava
sexo pra uma mulher casada, nem se falava em sexo pra uma moça, ninguém saia
comentando esse tipo de coisa, então era uma coisa muito sublime, muito
reservado, muito respeitado, o sexo era assim uma coisa sublime, onde ele tinha
que ser muito bem tratado, e muito bem cuidado nera, não era com todo mundo que
a gente conversava sexo, pelo menos é como eu já to lhe dizendo na minha casa
ninguém falava em sexo. (Ibidem.)
D. Eunice Martins nos relata que sexo era um assunto
proibido, falava-se escondido. Somente com o passar dos anos e com a vinda da
televisão foi que facilitou a conversação das pessoas sobre este assunto.
Era de enorme relevância e integridade a moça
manter-se pura até o casamento. Pois segundo Rachel Soihet (SOIHET, Rachel. Mulheres Pobres e violência
no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) as moças que permitiam que um rapaz lhe desviginasse
perdiam completamente a garantia a qualquer consideração e, no caso de uma
relação inautêntica, os homens não sentiam-se responsabilizados, devendo as
mulheres sozinhas arcarem com o peso das consequências do seu erro.
Eunice Martins nos fala da importância que era casar
virgem, pois as mulheres tinham medo de serem abandonadas, por isso deveriam
preservar a sua honra até a noite de núpcias, era esse o seu papel. Caso alguma
delas descumprisse a sua obrigação eram consideradas imorais e mal vistas pela
sociedade:
[...] casei virgem, com oito anos de namoro, o namoro
mais chegado do mundo, ainda casei virgem, as moças não “dava” não, tinha que
ter honra pra casar porque era muito importante a noite de núpcias foi muito
importante, e as moças faladas meu Deus, as que tinham algum programa coitada
das pobres sofriam muito e muitos namorados deixavam, os homens também faziam a
parte ruim deles né, abandonavam muitas das mulheres as vezes, eles faziam pra
experimentar, eu não sei pra que era que eu não sou homem, não sei como era, só
sei que muitas foram abandonadas. (Entrevista realizada no dia dezoito
de maio de 2015 com Eunice Martins,op.cit.)
Conforme nos fala Maria Ângela D’Incao (D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família
Burguesa. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História
das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.) foi possível um desaperto da vigilância e do
controle sobre a movimentação e as atitudes femininas, porque as próprias
jovens passaram a se automonitorar, consequentemente aprenderam a se comportar.
E deste modo aconteceu com as jovens ipuenses que viviam amedrontadas pelo fato
de serem largadas caso cometessem alguma imprudência.
A condição das mulheres desquitadas diante da
sociedade, não foi das mais amigáveis. Sofriam muito com os olhares e
comentários preconceituosos de toda a comunidade e tinham a sua conduta moral
constantemente vigiada. Para Rolnik:
As mulheres desquitadas ou as que viviam concubinadas
com um homem desquitado sofriam com os preconceitos da sociedade.
Frequentemente consideradas má influência para as "bem casadas",
recebiam a pecha de "liberadas" e ficavam mais sujeitas ao assédio
desrespeitoso dos homens. A conduta moral da mulher separada estava
constantemente sob vigilância, e ela teria de abrir mão de sua vida amorosa sob
o risco de perder a guarda dos filhos. Estes já estavam marcados com o estigma
de serem frutos de um lar desfeito. Apenas para o homem desquitado o controle
social era mais brando, o fato de ter outra mulher não manchava sua reputação.
(ROLNIK, Suely. Guerra aos
gêneros. Estudos Feministas. IFCS/UFRJPPCIS/UERJ, v. 4, n. 1, p.636, 1996. apud
GUIMARÃES, Solange Alves. A mulher e o
fim do casamento entre 1924 e 1950 (Poções – BA). UESB, p.7.)
Diante desta situação em que as mulheres desquitadas
viviam, D. Eunice Martins prossegue dizendo que na cidade de Ipu embora as
mulheres tivessem uma relação conflituosa com seus maridos, elas não se
separavam, pois preferiam sofrer abusos, do que ficarem mal vistas pela rígida
sociedade da época:
Não, se separavam não, morriam de peia e não saia
(risos), a mulher não tinha nenhuma liberdade, porque mulher separada do marido
na época não valia nada então elas preferiam né naquela época, ficar com eles.
Mas aí eu não sei por que eu nunca Graças a Deus tive problema com essa
criatura aí meu marido (risos). Não era pra ficar com ele até morrer porque
elas diziam na época que o que Deus uniu o homem não pode desunir (risos) era a
máxima da época. (Entrevista realizada no dia dezoito de maio de 2015
com Eunice Martins, op.cit.)
Na década de 1950 a desigualdade entre os papéis
femininos e masculinos prosseguiram explícitas, o trabalho feminino ainda
estava continuamente cercado de preconceitos. A família considerada modelo
ainda tinha o homem como a autoridade familiar, responsável pela subsistência
da esposa e dos filhos.
A mulher ideal tinha como papéis definidos, os
serviços domésticos, o cuidado dos filhos e do marido, e como características
próprias a doçura, o instinto materno e a resignação, este era o destino natural
das mulheres. Para Pinsky a participação no mercado de trabalho, a força, o
espírito aventureiro, eram práticas consideradas masculinas. A mulher que não
seguisse o seu destino estaria indo contra a natureza, pois desde criança a
menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar.
Ainda de acordo com o depoimento de D. Eunice Martins
o papel da mulher ipuense era casar-se, ter filhos e ser uma boa esposa, para
aquelas que se destacavam e ainda tinham oportunidades o mais que se podia
almejar era ser professora, pois as profissões liberais eram designadas somente
aos homens. Ainda confessa ter tido bastante vontade em formar-se em direito,
pois achava linda a advocacia, mas seu pai lhe disse que formaria apenas seus
filhos homens.
Para aquelas que viviam em função do marido,
restavam-lhes após o casamento a função de cuidar da casa e dos filhos, mas
para as nossas entrevistadas que ambicionavam sua independência e trabalhavam
como professoras antes mesmo de formalizarem uma união, após casadas deixavam
seus filhos e sua casa sob os cuidados de alguém de sua confiança que seriam
suas ajudantes do lar, mas mesmo depois de uma jornada intensa de trabalho as
mesmas tinham as suas responsabilidades e não deixavam de averiguar se tudo corria
corretamente. Como bem discorre D. Gonçalinha Aragão em sua narrativa:
Na minha casa, a minha responsabilidade com o meu
marido nera, porque eu não podia colocar um trabalho, meu trabalho acima das
minhas obrigações com meu marido, então sempre eu tava vendo como era que tava,
chegava e olhava como era que tava o almoço se tava do jeito que ele queria a
roupa dele se tava organizada, nunca deixei de assistir uma missa desde que eu
me casei até hoje, 30 anos, [...] sempre fui a missa aos domingos, sábado eu já
tava preparando a roupa dele pra gente ir a missa, a dele e a minha já tava
tudo no ponto pra não ter nenhum problema nér, e também cuidava da minha mãe,
que meu pai faleceu e minha mãe ficou morando comigo e agora essa questão de
cozinhar, lavar, sempre agente teve, eu sempre tive alguém minha mãe também uma
pessoa que ajudava, trabalhava na cozinha, também eu não dispunha de tanto
tempo pra trabalhar em cozinha e nem engomar não, sempre tinha pessoa que
lavava, engomava e pessoa que cozinhava, mas eu sempre trabalhei e sempre
conciliei e num vou dizer que é um casamento perfeito tão perfeito, eu também
tive problemas de contornar dificuldades financeiras, vida mesmo a dois, nem
muitas coisas eu também eu gostava né, que eu tive que renunciar a uma vida que
eu tinha... (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com
Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
Segundo Eunice Martins a independência da mulher
desestruturou muitos casamentos, “porque o homem era acostumado a mandar né,
num to me referindo ao meu caso, é de um modo geral né, eles era acostumado a
mandar, as mulheres obedeciam, então quando as mulheres começaram a igualdade
nera, houve muita separação, muita mesmo.” (Entrevista realizada no dia
dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)
Mas de acordo com os relatos de Maria do Carmo, a sua
independência financeira jamais abalou seu casamento, a mesma desde os 15 anos
de idade tinha a educação como o seu ofício e foi dela que ela pode sustentar
as suas tias que as criaram desde a infância e seu esposo jamais se opôs a
isso. Vejamos:
Não, pelo contrario, eu era quem estava como
professora, eu terminei o curso normal com 15 anos de idade, eu me lembro que
com 4 anos de idade eu fiz a primeira carta, eu já lia e já escrevia, que elas
me ensinavam também em casa e eu estudava particular na D. Valdemira, aí
depois, pois bem e eu ganhava o meu dinheiro aí eu fiquei vivendo, aí eu tinha
a minha independência financeira que depois eu ganhei um contrato do estado
então eu me sustentava e ainda ajudava as duas outras velhinhas que uma morreu
logo, fiquei vindo todo dia trazendo tudo pra elas e ajudava e tudo. Agora que
ele botava do bom e do melhor dentro de casa comprava roupa bonita eu nunca
usei, nunca usei pintura, nunca devido aquela tristeza de nunca ter tido mãe e
ter perdido tudo, aí isso aí me desestimulou sabe, aí ele dizia Maria bote uma
tintazinha aqui, aí eu dizia não você me conheceu sem tinta me tolere sem
tinta. (Entrevista realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do
Carmo, op.cit.)
Segundo Gonçalinha Aragão para o casamento ser
duradouro, não dependia totalmente da submissão da mulher e sim de uma
complacência entre o casal para que saibam se entender, perdoar, renunciar e
contornar as mais variadas situações que se apresentam em uma união. Continua,
dizendo que na sua época muitos casamentos não davam certo devido à frequentes
traições do marido, mas as mulheres ditas sofredoras guardavam toda a sua
angustia para si e continuavam submissas aos seus esposos:
Na minha época tinha muita coisa difícil, muitos
casamentos que não davam certo, muitas traições né, mas geralmente a mulher era
mais, ela guardava mais aquilo pra ela, é quase como você diz uma submissão.
Hoje não, não da certo casa num dia no outro dia não da certo, ela separa e
antes não ela ficava às vezes a gente sabia, eu escutava: _ olha a Dona fulana
é uma sofredora, o marido dela faz determinadas coisas mas tem quem saiba, ela
aguenta calada. Quer dizer então eu posso concluir que na minha época tinham,
já haviam muitas mulheres que sofriam caladas e tinham muitas mulheres também,
talvez que não trabalhavam por submissão, que os maridos também não deixavam,
tinha que ser aquela mulher que tinha que ficar dentro de casa cuidando da
casa, cuidando dos filhos e cuidando do marido, eu tive essa Graça grande que
Deus me deu, eu tive esse marido que nunca me pôs empecilho algum né, no meu
trabalho, na minha vida, mas eu acredito que teve ainda muitas mulheres desse
jeito. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com
Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
De acordo com o depoimento de nossas entrevistadas
haviam as moças mal faladas pela sociedade da época. Qualquer desvio já era um
motivo para estar falada, por menor que ele fosse. Seu comportamento era
bastante regrado e vigiado não somente pelos familiares como por toda a cidade
e isso poderia até dificultar-lhes de arranjar um marido. Conforme nos explica
Pinsky:
Ficava mal a reputação de uma jovem, por exemplo, usar
roupas muito ousadas, sensuais, sair com muitos rapazes diferentes ou ser vista
em lugares escuros ou em situação que sugerisse intimidades com um homem. Os
mais conservadores ainda preferiam que elas só andassem com rapazes na
companhia de outras pessoas – amigas, irmãos ou parentes, os chamados seguradores
de vela. Também seria muito prejudicial a seus planos de casamento ter fama
de leviana, namoradeira, vassourinha ou maçaneta (que
passa de mão em mão), enfim de garota fácil, que permite beijos ousados,
abraços intensos e outras formas de manifestar a sexualidade. (PINSKY, Carla Bassanezi. In DEL PRIORE, Mary
(Org.). História das Mulheres no
Brasil. 2012, p. 612. Op. Cit.)
No que se refere ao Ipu dos velhos tempos: “Namorar no
escuro, namorar no Paredão, saí dos bailes só os dois” (Entrevista
realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.) já eram motivos suficientes para se estar mal
faladas e no dia seguinte enfrentar os olhares e comentários preconceituosos de
toda a cidade. “As moças faladas era difícil até se casar, porque o povo falava
muito, às vezes nem era muita coisa, mas devido o preconceito da época” (Idem.), tudo se tornava um motivo para o falatório: “Ave
Maria fulana beijou fulano e nem casou” (Ibidem.).
O que podemos observar pelo que nos foi relatado pelas
depoentes é que não foi somente o fato das moças frequentarem locais escuros e
impróprios como o Paredão que a fizeram ser vistas negativamente. O modo como
falavam, vestiam e comportavam-se também eram justificativas para se tornarem mal
faladas. Segundo Gonçalinha Aragão toda jovem deveria ter ética e moral para
ser bem vista pela sociedade:
Existiam, existiam as mal faladas e tinha muitas mal
faladas (risos), a gente já dizia fulana de tal é mal falada, a outra sai,
bebe... existiam as mal faladas que as vezes nem era, coitadas, nem era tanta
coisas que faziam pra ser mal faladas, mas como naquele tempo a moça tinha que
ser de uma linha[...] de uma ética e uma moral muito elevada né, a pessoa não
podia nem falar com um homem casado, se falasse com um homem casado no outro
dia a gente tava com nome da gente na rua. _ Vixe fulana de tal tava
conversando com um homem casado. Se a gente cruzasse uma perna meio
desajeitada, lá se vai, o comportamento tava lá em baixo, Nossa Senhora um cigarro
Deus me livre, um copo de cerveja nem pensar, então era desse jeito. Se andasse
com uma roupa de alcinha, ou com a costa nua._ oh aquilo ali é uma galinha, se
andasse com um vestido mais curtinho era uma galinha, era de todo homem, homem
casado. Então eu acho que a gente deveria ter aquela moral e [...] um bom
comportamento pra que não fugisse as regras da sociedade, o que a sociedade ta
pedindo né um bom comportamento né, ética e moral, a gente não podia falar com
homem casado, num podia falar com deboche na rua, nome feio, essas coisas assim
você não via, o falar o linguajar tinha que ser uma coisa muito bem pensada e
muito bem cuidada. (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de
2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
O casamento era um evento bastante esperado pelas
mulheres da elite ipuese. Embora nossas entrevistadas aguardassem ansiosamente
este dia os seus casamentos foram simples e durante o dia, mas as mesmas não
preocuparam-se com isso e sim com a união que estava sendo consagrada. Segundo
Eunice Martins:
Casar é a ideia de ontem de hoje e será de amanhã,
toda mulher hoje... anseia um casamento, porque o casamento, o homem né, é a
parte que complementa a vida sexual da mulher e da a vida a outras vidas então
eu acho que toda mulher aspira um casamento, não sei se elas aspiram mais um
casamento de véu e grinalda ou se elas acham que casar é simplesmente se juntar
eu não sei porque eu não vivi esse problema, eu queria era casar (risos). (Entrevista
realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.).
Na cidade de Ipu, como já foi dito anteriormente,
havia um Clube denominado Artista, destinado para o divertimento de mulheres e
homens das classes menos favorecidas, mas este Clube também recebia a presença
de homens pertencentes a elite que iam para aquele local segundo nossas
entrevistadas por sentirem-se mais a vontade no vestir, no beber, pois no
Grêmio Ipuense todos deveriam ir muito bem trajados e comportarem-se muito bem,
não podendo passar dos limites.
As mulheres da elite não deveriam de forma alguma
frequentar este ambiente, “porque as moças de família não podiam estar junto
das pirão frio, pirão frio eram as empregadas domésticas que eram chamadas
nera, na época e os homens não tinham esse preconceito não, frequentavam iam
naturalmente né, dançavam com as pirão frio, era besteira de mais, era só
preconceito e nada mais.” (Idem.) Conforme Gonçalinha Aragão havia-se um
machismo muito grande instaurado naquela sociedade:
Preconceito, machismo, individualismo, eu acho, porque
assim era totalmente uma separação nem as moças que frequentavam o Grêmio
Ipuense não freqüentavam lá o Artista, nem as do Artista freqüentavam, porque
as do Artista a gente já sabia por que, poder aquisitivo, por problema de
família, cor, né, existiam esses itens aí, não freqüentavam. Agora os homens
que frequentavam o Clube, freqüentava o Artista, mas as mulheres não, então era
um machismo, um preconceito, uma discriminação, um racismo, é entrava aí uma
série de coisas, moça de família, moça que se presa não vai lá pro Artista. (Entrevista
realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão,
op.cit.)
Sabemos que as mulheres tiveram a sua imagem
construída por meio dos discursos morais cristãos que estabeleceram padrões de
comportamento feminino que deveriam ser seguidos, para assim andar conforme os
modelos veiculados e defendidos pela Igreja Católica.
De acordo com Losandro Antonio Tedeschi (TEDESCHI,
Losandro Antonio. História das Mulheres
e as Representações do Feminino. Campinas: Editora: Curt. Nimuendajú,
2008. P.144.), as identificações femininas
criadas pelos fundamentos e princípios da Igreja continuam evidentes no
imaginário feminino. Estes conceitos impeliram diversos padrões de
comportamento religioso e doméstico às mulheres, estimulando-as a praticarem, a
obediência, a virtude, o silencio e a imobilidade em prol da ética cristã.
E foram justamente estas, as práticas de comportamento
impostas pelo Pároco de Ipu. Foram criadas associações como as Luizas de Marilac
e as Filhas de Maria para que as mulheres ipuenses andassem sempre em
consonância com as virtudes de “natureza perfeita e inatingível de Maria” (Idem.), contrapondo-se sempre a desobediência e “natureza
pecaminosa de Eva” (Ibidem.). Eunice
Martins assim descreve essas associações, e seus membros:
Elas eram vistas como pessoas é, importantes né, na
sociedade, eram vistas já como reflexo da virgem Maria é por isso que existia
muita Filha de Maria, muita gente que freqüentava a igreja, muitas associações
religiosas, tinham muita porque a gente achava que devia..., por exemplo nós lá
em Nova Russas né , era Legião de Maria a gente tinha que ter as virtudes da
virgem, embora nem parecesse que era, mas de qualquer maneira só aquela vontade
de ser boa nera, aquela vontade de ser pura, já era alguma coisa, embora num
fosse nem muita coisa, mas a gente tinha um pensamento é mais puro do que as
moças de hoje, é eu acho, devido a criação, devido aos colégios também, as
associações, os exemplos, a própria formação.(Entrevista realizada no
dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)
As moças ipuenses poderiam frequentar diversos espaços
de lazer, mas sempre acompanhadas, geralmente por alguém mais velho e de
responsabilidade. De acordo com Eunice Martins, “num precisava nem pai, nem mãe
e nem irmão, mas tinha uma senhora que ia pra vigiar as moças, pra num ganhar
aqueles arbustos lá da Bica (risos), a gente era muito vigiada né, então tinha
aquela senhora que sempre, aquelas senhoras que fazia os piquenique e convidava
a gente [...]” (Idem.).
Conforme Eunice Martins as mulheres eram vítimas de
muitos preconceitos e deveriam seguir os modelos rígidos impostos pela Igreja e
pela sociedade, não podendo frequentar lugares sozinhas nem mesmo adentrar na Igreja
com vestidos acima dos joelhos e braços a mostra:
Muitos, sofriam muito preconceito, preconceito que não
podia andar só, num podia andar na rua, num podia vestir vestido decotado, num
podia entrar na igreja de manga curta, tinha os casacos que a gente botava por
cima dos vestidos, era muita coisa, era muito cheio de preconceito, mas a gente
se acostumou com aquilo, ah e pra poder entrar na igreja quando não queria ir
de casaco tinha os cano que a gente colocava aqui, ninguém usava manga assim
não sabe era manguinha curta mesmo aí a gente coloca os cano aqui assim, era
besteira nera, hipocrisia eu achava uma hipocrisia, eu acho que do jeito que a
gente é tem que entrar na igreja a gente é a gente em qualquer lugar, mas aí
era exigência do padre nera, botava pra fora se tivesse mulher de manga curta
na igreja, botava pra fora, aí a gente não ia pra não ir pra fora e vestia o
casaquinho da gente por cima do vestido nera ou então botava os canos e as
filhas de Maria era de meia, não andavam sem meia nem pra fazer as compras na
feira, as filhas de Maria era tudo de meia, rígido né e elas usavam fita azul
que eram filhas de Maria. (Ibidem.)
Com o intuito de progredir e modernizar os espaços da
cidade de Ipu foi travada uma verdadeira luta para extinguir do centro da
cidade práticas como a prostituição, para isso houve-se um aumento do controle
e da vigilância e foi necessária a mudança destes locais destinados ao amor
livre para bem distante das proximidades da cidade agora limpa e organizada.
É fato que as mulheres públicas resistiram
vigorosamente às tentativas de domínio e enfrentaram a tudo e a todos para
prosseguir utilizando os espaços da cidade e lutaram ainda contra os
preconceitos sempre associados a sua imagem como a imundície, o vício, e a depravação
moral.
E foi por meio desta busca de controle ao meretrício
que surgiram os cabarés de mais destaque na cidade de Ipu na época: a Vila Nova
e o cabaré da Maria Maga, localizados no atual bairro da Caixa D’água e nas
proximidades do bairro das Pedrinhas respectivamente. Na época eram
praticamente desabitados e afastados da área central. Vejamos:
Havia a vila nova ali depois da igreja era o cabaré, e
o cabaré da Maria maga era lá nas pedrinhas, ninguém andava nem nas pedrinhas
acolá onde é hoje a estrada né, em frente da cadeia publica que hoje é
secretaria de cultura dali daquela cadeia onde era a cadeia velha pra lá era as
mulheres da vida né, e também lá em cima também era das mulheres da vida onde
as moças não podiam andar. (Idem.)
Segundo o memorialista Francisco de Assis Martins, até
por volta de 1958 as meretrizes tinham um horário reservado para circularem na
cidade para poderem comprar seus mantimentos, se fossem vistas circulando fora
do horário destinado a elas, as mesmas eram presas pela polícia que garantia a
segurança da cidade, como bem ilustra Eunice Martins:
Tinham o horário delas circularem, naquele horário as
moças não iam, nem as mulheres casadas só elas pra fazer as compras rodiar o
mercado e ir atrás do que precisava nera pra elas e a partir daquela hora elas
se isolavam, ah e iam pra estação vê a chegada do trem, elas iam mas tinha lá
uma árvore que elas tinham que ficar lá naquela árvore não podiam também ta
transitando no meio do povo era muito preconceito. Se ficasse aqui depois das
8:30 iam direto pra cadeia. (Ibidem.)
Ainda de acordo com os depoimentos de Eunice Martins
houveram muitas moças que se envolveram de maneira mais íntima com seus
parceiros sem serem casadas e estas ficavam marcadas na sociedade
principalmente se não casassem com os seus respectivos namorados:
Muitas, muitas outras se recolhiam né, nunca mais
saiam de casa, outras iam era se dar bem por aí iam embora né, mas era sempre
uma pessoa marcada, era sempre uma pessoa marcada por tanta coisa, mas geralmente
eles casavam né, porque os pais se entendiam né, geralmente era a mulher bulida
como chamavam se tava bulida os pais pelejavam lá pra fazer o casamento se não
desse certo tudo bem né (Ibidem.). O
preconceito racial se fez presente desde muitos anos na cidade de Ipu. As
famílias da alta sociedade não permitiam de maneira alguma que suas filhas
casassem com homens de pele escura causando assim a fuga dos namorados que
quando retornavam “já tinha acontecido o acontecido aí era o jeito” (114
Ibidem.) casarem-se mesmo contra a vontade dos
pais.
Como vimos, muitas vezes o namoro não desejado pelos
pais encorajou o rapto da moça pelo pretendente. O rapto deveria ser consentido
pela moça, com promessa de casamento feita pelo rapaz. De acordo com Miridan
Falci, “o rapto ou a sedução, como os parentes julgavam na época, trazia
contrariedades para a família e cabia ao poder masculino, patriarcal, caso não
houvesse casamento, resolver o problema: interpelar o sedutor e obrigá-lo a
casar. Moça raptada que não casou virava “mulher perdida”.” (FALCI, Miridan Knox. Mulheres do Sertão
Nordestino. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História
das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012.)
Conforme salienta Eunice Martins, “esse preconceito
era grande não podia casar com negro não, nem moreno, tinha que ser branco com
branco, moreno com moreno e negro com negro, olha a besteira como se o
espírito, se a alma tivesse cor” (Entrevista realizada no dia dezoito de
maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.).
A mulher da alta sociedade que casasse com um homem de
cor, era censurada pelos olhares da sociedade. O Stélio “era um moreno muito
educado, muito gentil e muito respeitado né, mas ela sofreu muito a Maria Alda,
porque casou com ele ainda existia preconceito, mas ela tinha a cabeça
levantada né e foi pra frente e deu certo o casamento” (Idem.). A entrevistada refere-se ao caso mencionado
anteriormente, o qual o baiano Stélio, um homem de pele negra que veio para a
cidade de Ipu gerenciar o Banco do Brasil, casou-se com a Maria Alda, uma moça
branca e de família rica.
Quando indagada se a família foi contra o casório,
Eunice Martins nos conta: “eu nunca ouvir falar que não queriam não, acho que
nunca se incomodaram com isso não, porque já era melhor né, nessa época não era
tão arraigado este sentimento de preto e de branco não, na época não, mas o
povo ainda falou muito, mas ela nem ligou, casou e pronto, e a família toda
respeitou, e outra que aqui no Ipu todo mundo respeitava o Stélio, era uma
pessoa maravilhosa, muito educado, muito melhor que certos branco e amarelo.” (Ibidem)
Para se ter algum tipo de relação amorosa, a moça
deveria arranjar um bom partido que tivesse atributos que estariam dentro dos
quesitos que seriam indispensáveis pela família como: ser de cor branca,
necessitaria ter ética e moral, não poderia ser um homem que bebesse
constantemente, deveria ter uma boa estrutura econômica e religiosa. Gonçalinha
Aragão diz que sua mãe sempre aconselhava quem era o melhor para se relacionar
com ela, e segundo nossa entrevistada ela nunca contrariou a vontade de sua
mãe:
[...] minha mãe me dizia assim:_ Olha esse aqui é o
melhor. Ninguém nem, eu nem me atrevia a ir pra uma situação que não fosse né,
do querer dela, mas a questão de namoro de outras coisinhas de amizade ela
sempre existia um preconceito né, por exemplo se fosse uma pessoa de cor tinha
um preconceito né, se não fosse uma pessoa que tivesse moral tinha um
preconceito, se fosse um cara que bebesse e vivesse nos botequins bebendo tinha
preconceito nera, se num fosse assim uma pessoa que tivesse uma estrutura uma
religião tinha o preconceito, porque sempre minha mãe queria o de melhor pros
filhos, então ela sempre orientava nesse sentido, mas tinha um preconceito,
tinha sim (Entrevista realizada no dia dezessete de maio de 2015 com
Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
Conforme salienta Pinsky (PINSKY,Carla Bassanezi. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 2012,
Op. Cit.), a partir da década de 1950, a
escolha matrimonial já não cabia mais aos pais e sim aos enamorados.
Entretanto, a influência familiar, ainda que menor que nos tempos do casamento
arranjado, continuava firme e reconhecida como uma prudência que os pais
deveriam ter com o futuro dos filhos. O consentimento dos pais também era
considerado de grande importante para a felicidade conjugal dos filhos.
Prossegue Gonçalinha Aragão, dizendo que sua mãe vez
por outra implicava com seus amigos ou pretendentes a um namoro. Lembra-se que
certa vez...
... um deles ela não queria, ela botou na cabeça que
não dava certo, e eu me lembro como se fosse hoje, [...] eu tava com ele nessa
casa, na parte de baixo e ele era engraçado, ele era até do banco o rapaz, não
era daqui, mas ela cismou, ela disse que aquilo ali num dava, num era pra mim,
e um dia ela chegou e recebeu uma farinha, [...] e foi desocupar o saco de
farinha lá dentro, quando ela voltou ela sacudiu o saco de farinha e o cara
tava com uma calça assim escura e a calça do rapaz ficou quase toda assim cheia
de pozinho branco sabe, foi uma das vezes. (Idem.)
O preconceito com pessoas negras se fez bastante
presente na cidade de Ipu e em sua família também, como recorda Gonçalinha
Aragão. Lembra-se ainda de quando sua mãe a viu com um rapaz de pele escura
reagindo muito mal e com certa deselegância:
[...] quando eu trouxe um amigo aqui que era de cor e
ela achava que eu tava namorando né, uma pessoa aqui que era de cor bem escura
e ela passou até mal ela disse:_ Eu num acredito, eu não to acreditando que
minha filha tenha esse amigo, eu não to acreditando. A reação dela foi
horrível. Quando ele saiu eu cheguei e ela tava deitada e eu disse: Ein, o que
que a mamãe tem?; _Porque eu não acredito que você vai ter amizade com esse
cara. Então ela tinha e meu pai também tinha preconceito.[...] Quando eu via
que o negócio tava muito, tava assim pesado pra mim entendeu que não ia dar
certo aquela rixa com mãe e com pai que eu amava minha mãe e meu pai que eu
tinha amor por eles que talvez eu até me sacrificasse, fazia tudo por eles, então
eu ia saindo de jeitinho e acabava e aí pronto tava conversado e eu não me
lembrava mais, aquilo ali era uma pedra em cima e acabosse, procurava sempre
fazer as vontades dela (Ibidem.).
Conforme já foi visto em nosso primeiro capítulo, o
Jardim de Iracema era um espaço destinado apenas para o divertimento da elite
ipuense, local onde as jovens poderiam ouvir a banda de música tocar no coreto
e passear em volta ao jardim para flertar e conversar. As mulheres pertencentes
à alta sociedade só poderiam frequentar ambientes apropriados para a sua classe
social. Gonçalinha Aragão assim o descreve:
O jardim de Iracema era as pessoas da elite, a fina
flor né, as pessoas de sociedade, as moças da sociedade nera, tinha o coreto, o
coreto no meio da pracinha ali tinha uma banda de música as moças iam sentar lá
ou então passear lá no passeio né e ali elas encontravam as amizades suas
amigas os namorados sentavam na pracinha pra escutar música e era essa moça de
sociedade que se chamava de elite de família que frequentava lá [...] (Ibidem.)
Já as moças de baixa condição, vulgarmente denominadas
de “pirão frio”, frequentavam a Praça 26 de Agosto, não poderiam de forma
alguma juntarem-se as mulheres da elite e estas não deveriam aproximarem-se do
Paredão pois corriam o risco de ficarem faladas na cidade.
[...] porque a outra turma nera, era aqui na praça 26
de agosto, era geralmente chamavam as pirão frio eu achava isso ridículo nera e
tinha também o paredão o paredão era um local não muito conveniente era muito bonito,
era cheio de jarros plantados, porém não era lugar pra gente né, uma moça de
família, uma moça da sociedade ir namorar lá no paredão, então eu namorava mais
em casa, na pracinha nera, ou no clube quando ia para o clube ou no cenáculo
mas nada de paredão. (Ibidem.)
Gonçalinha Aragão confessa ter se encontrado escondido
com um namoradinho seu de infância, “toda adolescente faz uma travessura na sua
vida e essa eu fiz né, mas assim só de conversa e até logo e pronto, mas
paredão era um lugar que ninguém ia pra ter conversas não, não sei porque,
porque é tão bonito, era só a pracinha” (Ibidem.).
Segundo Gonçalinha Aragão os religiosos da época não
interviam em seu cotidiano, pelo contrário, o Monsenhor Moraes os orientavam,
“a igreja formava a personalidade, o caráter da jovem né, da mulher” (Ibidem.). Houveram ainda os encontros de casais a qual
participou, “mas eu nunca presenciei a igreja intervir em nada pelo contrário a
igreja orientava os casais [...]” (Ibidem.).
Mas em seguida nossa entrevistada nos conta que o
monsenhor ditava como deveria ser o comportamento da mulher ipuense. “Eu peguei
uma época que usava véu, era mocinha bem nova, não podia andar de vestido, não
podia entrar na igreja de manga cava e nem de vestido de alça, nem transparente”
(Ibidem.). O comportamento deveria ser
exemplar:
a gente podia rezar o terço dentro da igreja né, só
depois que aboliu e hoje em dia a gente participa né da celebração, mas também
o padre ficava de frente para o altar e todo mundo calado, então existia um
respeito assim total, assim sublime mesmo, a missa era em latim só depois é que
mudou sabe, mas era um comportamento que a gente tinha que ter na igreja, que a
gente não escutava assim nada nenhuma palavra. (Ibidem.)
Por outro lado, Gonçalinha Aragão parece não
interpretar a ação de orientação da Igreja como uma intervenção, um controle do
comportamento feminino.
Em virtude da carência de professores com boa formação
ainda durante o Império, foram reivindicadas escolas de formação para
professores. Já em meados do século XIX devido a tantas reclamações foram
criadas em algumas cidades do país as primeiras escolas normais, destinadas à
formação de docentes.
Contudo a prática docente no Brasil se iniciou com
homens, foram eles que se ocuparam do magistério com mais frequência. Mas ao
serem criadas as escolas normais, o objetivo era formar professores e
professoras que atendessem o aumento da demanda escolar. Mas conforme salienta
Guacira Lopes (LOURO, Guacira
Lopes. Mulheres na Sala de Aula. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10
ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.449.), os
relatórios informavam que as escolas normais estavam formando mais mulheres que
homens, estava havendo uma “feminização do magistério”.
Este processo passou por muitas resistências e
críticas. Quando a mulher passou a ser responsável pela prática docente foi
alvo de muitas discussões. Para alguns, entregar a missão de educar crianças,
as mulheres, era totalmente imprudente, pois elas eram “despreparadas e portadoras
de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso”.” (Idem.)
Mais tarde quando justificada a saída dos homens para
profissões mais rentáveis, passava a ser legitimada a entrada das mulheres nas
escolas. Com isso o magistério passa a ser uma profissão feminina, pois para
este ofício deve-se conter características como paciência, afetividade e
doação, consideradas próprias das mulheres.
Em 1942, foi inaugurada na cidade de Ipu a Escola
Normal Rural, por iniciativa do professor Heleno Gomes de Matos, contando com o
apoio das autoridades locais. Esta foi a primeira escola criada em Ipu, que
tinha como propósito a formação de professores. Em julho 1951, a Escola foi
transferida para o Patronato Sousa Carvalho, sob a direção da Irmã Nogueira.
Eunice Martins concluiu seu Curso Normal no colégio
Patronato Sousa Carvalho que tinha seu ensino direcionado apenas para a
educação das jovens ipuenses preparando-as para serem futuras educadoras,
sempre tendo como base os preceitos cristãos tão pregados pelas freiras e pelo
pároco da cidade.
A respeito desta instituição a mesma nos conta que
estudou lá durante dois anos “e era muito bom, a irmã Nogueira era uma mãe pras
alunas conversava com a gente normalmente, fazia tantas perguntas preparava a
gente, era uma freira de outra época que tinha a mentalidade de hoje, Irmã
Nogueira que foi a primeira diretora do Patronato” (Entrevista realizada
no dia dezoito de maio de 2015 com Eunice Martins, op.cit.)
A entrevistada prossegue dizendo que não conseguia se
recordar muito bem quais eram as disciplinas estudadas no Curso Normal. Mas
lembra-se que estudavam português, matemática entre outras sempre voltadas para
a preparação pedagógica. Quando a indagamos se o ensino era rígido, a mesma nos
fala:
Rígido não, era totalmente liberal porque existia uma
Valdemira Coelho que era uma professora muito boa, que alfabetizava todo mundo
aqui, tinha uma escola particular e quando fundaram o Patronato ela passou pra
lá, foi a Fortaleza fez concurso, fez cursos, fez tudo e passou a ensinar no
Patronato, então era uma verdadeira mestre, Valdemira, Irmã Nogueira, Irmã
Rosali, todas já tinham o pensamento de hoje, hoje eu me admiro como é, quando
eu vejo os trabalhos né, que agente já fazia desse jeito. (Idem.)
Já Gonçalinha Aragão que também estudou no Centro
Educacional Sagrado Coração de Jesus Patronato Sousa Carvalho até a quarta
série, tem uma opinião bastante divergente sobre o colégio, para a mesma a
educação pregada pelas freiras era muito rígida:
muito rígido por sinal, [...] você não podia chegar
atrasado, você quando faltava o pai ia lá, se existisse alguma indisciplina
alguma coisa o pai era chamado lá na secretaria né, na presença do filho era
onde ele recebia conselhos e a gente também recebia conselhos, a farda tinha que
ser da mesma altura que era três dedos abaixo do joelho, com aquelas meias cano
longo, tinha que ficar em determinada altura da perna e tinha que a gente ir
tudo engomado, num podia ta amassado, num podia ta descosturada a barra da saia
e antes de iniciar as aulas a gente ficava perfilados, todo mundo perfilado na
galeria cantando e tínhamos um respeito muito grande aos nossos superiores,
todas as freirinhas eram muito bem respeitadas, mesmo que a gente visse
qualquer coisa que a gente num tivesse aceitando a gente não dizia nada ficava
calada né, em sala de aula a gente era super atenciosa deveres cumpridos,
cadernos cobertos, livro tudo, lápis impecável era muito rígido o colégio. (Entrevista
realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão,
op.cit.)
Prossegue a entrevistada dizendo que as freiras eram
tão rígidas ao ponto de proibi-las de brincarem com as sombrinhas quando saiam
da escola em dias de chuva, como também não poderiam usar a farda em outros
locais, a não ser dentro do ambiente escolar, “era muito rígido a educação era
muito rígida”. (Idem.)
Os uniformes eram padronizados para todos os colégios
vicentinos, não podendo de forma alguma suas alunas irem diferentes umas das
outras.“ Teve uma época que era uma blusa de lingerie e manga comprida que era
a roupa de gala, com o chapéu [...] o colégio aqui era comparado com o colégio
da Imaculada Conceição [...] em Fortaleza [...] o colégio daqui tinha que fazer
do mesmo jeito, não podia ser uma diferente da outra, inclusive o chapéu era
comprado mesmo lá no colégio, sapato também, era tudo o uniforme impecável” (Ibidem.).
Gonçalinha Aragão lembra-se muito da Irmã Rosali que
era uma freira que amedrontava a todas as alunas, pois prezava bastante que
estas andassem em consonância com os padrões da escola. “Ela não permitia que
as barras da saia fossem descosturadas e uma vez eu vi, assim na minha frente
tinha uma aluna que foi com a saia descosturada, ela chegou olhou, olhou assim,
aí pegou e fez shizzzz, aí descosturou, aí não disse nada, a menina entendeu
que não estava com a farda do jeito que era pra ir” (Ibidem.)
Recorda-se do terço em que rezavam na capela da escola
sempre antes de começar as aulas ou ao final destas. Das freiras que
ministravam as aulas e dirigiam o colégio e das aulas que as preparavam para
serem excelentes donas de casa:
O terço era antes de começar a aula ou já onze meia,
todo mundo com fome ainda tinha que meia hora rezando um terço na capela e
tinha os retiros nera também tinha os retiros, então era uma educação rígida,
muito apurada a irmã Rosali era uma professora excelente de português, [...]
tinha a Irma Marta que era da cozinha também, tinha a Irma Bernadete que era
Aragão que era filha aqui de cima da serra de São Benedito se não me engano, que
dava trabalhos manuais, a gente tinha uma aula por semana de trabalhos manuais
e de cozinha que preparava a gente exatamente pra ser dona de casa (bidem.).
Indagamos nossa entrevistada Gonçalinha Aragão se
havia algum tipo de preconceito dentro do colégio, pois era sabido que lá
estudavam também pessoas de classes menos favorecidas, acerca disso ela nos
relata que:
[...] o colégio de manhã era só pras que tinham
condição, como o colégio foi projetado pelos Carvalhos pra atender a população
carente pobre então a tarde a clientela todinha delas era o pessoal pobre que
não podiam pagar mas eu nunca presenciei assim discriminação delas com os
pobres não entendeu eu via que eles recebiam uma merenda usavam o bebedouro
porque também teve uma época que o normal passou a ser a tarde em que também os
meninos né os pobres, os que tinham mais dificuldades financeira também
estudavam a tarde mas eu nunca presenciei, tinha o mesmo tempo de aula recebiam
os livros e tudo mais. (Idem.)
A mesma diz que nunca presenciou algum tipo de
preconceito, mas logo menciona que o uniforme das alunas de baixa condição era
totalmente diferente das alunas que pertenciam á elite. “Olha a farda não era a
mesma já existia a descriminação.” (Ibidem.)
Mas justifica essa diferença pelo fato delas serem crianças, “elas eram mais
jardim nera, naquele tempo tinha o jardim I e jardim II, tinha a primeira série
eu acredito que tivesse até a quarta série eu não me lembro” (Ibidem.)
Gonçalinha Aragão relembra com bastante entusiasmo os
momentos de diversão com a chegada e a saída do trem da Estação de Ipu, este
momento era considerado um lazer para todos os jovens da cidade que encontravam
uma oportunidade para passear, conversar com os amigos, ver as pessoas chegando
e partindo e namorar:
Ah a chegada do trem era bom demais era um momento de
lazer,[...] era a diversão da cidade, o trem vinha de Fortaleza passava aqui às
cinco horas da tarde né, então o lazer era as cinco horas da tarde que todo
mundo ia pro passeio esperar o trem, isso era uma coisa muito boa ali a gente
se juntava até arranjava namorado e arranjava flerte era os flertes com o
pessoal que passavam no trem nera, e faziam aquelas moças e aqueles rapazes que
vinham pra janela do trem aí papeava durante aquele tempo que o trem parava que
ficava ali em 15 minutos, ah dava pra fazer muita coisa (risos) dava pra
conversar, arranjar namorado, ali flertava, menina aquela era a hora do
divertimento era um lazer, essa aí foi da cultura né pra você ver. (Ibidem.)
De acordo com o depoimento de Gonçalinha Aragão os
divertimentos eram bastante reduzidos, pois naquele período as pessoas não
tinham o hábito de viajar por conta das dificuldades que eram de se chegar a
qualquer lugar, por isso havia-se uma valorização muito grande destes espaços de
lazer dentro da cidade como: o Jardim de Iracema, o Cenáculo, o Grêmio Ipuense,
os passeios na Bica e no Gangão e até mesmo a passagem do trem que para aquela
pacata cidade tornava-se um momento importantíssimo de lazer:
Era todo mundo muito limitado, as diversões aqui eram
muito limitada, o lazer das meninas aqui era muito limitado, era um povo que
vivia mais dentro de casa, curtia mais sua cidade, mais sua casa, as coisas da
cidade entendeu, a valorização tudo que tinha na cidade era tudo muito bem valorizado
né, que a gente dava o maior valor porque era aqui que a gente vivia, tudo
acontecia aqui dentro, por exemplo, o cenáculo os jogos de voleibol, de futebol
de salão, era a chegada do trem, os passeios na bica, era as festas, era o
chitão que era em julho nera, que era muito bom também tudo era aqui dentro, a
pessoa não saia pra outras cidades, não ia outros estados, o pessoal valorizava
era isso aqui mesmo. Então a gente tinha que arranjar alguma era pra se
divertir aqui mesmo, era muito bom nera, o Ipu era como das grandes culturas. (Ibidem.)
As novelas pelo rádio bem como as leituras geraram um
público eminentemente feminino. Os momentos de lazer entre as mulheres da elite
possibilitaram um êxtase das novelas românticas e sentimentais. Conforme Maria
Ângela D’Incao “as histórias de heroínas românticas, langorosas e sofredoras
acabaram por incentivar a idealização das relações amorosas e das perspectivas
de casamento”(D’INCAO, Maria
Ângela. Mulher e Família Burguesa. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10
ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.229.).
Gonçalinha Aragão recorda-se ainda do período em que
não tinham televisão e ouviam as novelas pelo rádio, este seria mais um dos
entretenimentos das jovens da época que ficavam encantadas com os belos
romances e que após o almoço corriam para não perder nenhum capítulo:
A gente não tinha televisão, a minha nossa senhora,
nós terminava o almoço meio dia uma hora a gente ia assistir a novela pelo
rádio, o rádio minha filhinha nós tinha um rádio onde ninguém perdia a novela
“o direito de nascer” era a novela que passava no rádio quem era que perdia
“pinguinho de gente” de Gilda Abreu, ninguém perdia as novelas no rádio porque
não tinha televisão então a gente ficava depois do almoço, já ta na hora da
novela, aí sentava todo mundo né, ali perto do rádio e ali a gente chorava, a
gente ria, tinha aquele sentimento tão grande no coração que a gente tinha
impressão que tava vendo porque quando dizia assim :_ toca o sino num sei o que
[...], o cara lá né, que tava lá no rádio né, narrando a novela batia os sinos
e a gente tinha impressão que tava vendo né, era tão bem feito, era tão bem
escrito, era tão bem narrado e era tão bem executado pelos locutores, que a
gente tinha impressão que tava vivendo aquela vida ali, era o rádio, só depois
que veio a televisão. Era um dos grandes divertimentos da gente inclusive tinha
uma programação na radio Tupinambá de Sobral que era a hora das senhorinhas, ah
essa hora das senhorinhas ninguém perdia (risos) porque quem fazia esse
programa era o Gomes Farias e na época ele namorava com a minha irmã, a minha
irmã ele chamava de gauchinha então ninguém podia perder esse programa né, que
saia aquelas músicas lindas sentimental né, era a música do Nelson Gonçalves a
normalista, então foi na época de Roberto Carlos, foi aquela geração daquelas
músicas bonitas e sentimental que tinha conteúdo, que tinha história, que
tocava o coração da gente nera, foi essa época. (Entrevista realizada no
dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, op.cit.)
Vimos que as mulheres da elite ipuense foram
continuamente controladas para que preservassem os “bons costumes”. Os olhares
da sociedade estavam estreitamente voltados para suas ações, sua postura, suas
roupas e expressões. Inicialmente as suas participações no meio social era
assumir integralmente as funções consideradas características de uma “mulher”,
como esposas e mães responsáveis pela criação e educação de seus filhos.
Mas aos poucos o isolamento no lar foi sendo alterado
pela intervenção cada vez maior e mais incessante dessas mulheres nomeio
social. A presença nos mais variados espaços destinados ao lazer possibilitava
uma movimentação mais livre pelas ruas, apesar de que as moças tivessem que
apresentar-se de uma maneira reservada, evitando uma exibição indecorosa para
elas e para os pais. Os princípios da decência, da moral e da família não
poderiam ser desprezados, ao menos, por essas mulheres.
Além de passarem a frequentar os diversos espaços de
lazer destinados a sua classe, as mulheres ricas passaram a assumir o
importantíssimo papel de educadoras e uma parte considerável delas se
encarregou de por em prática, através do assistencialismo, as obras
direcionadas pelas irmãs de caridade e pela Igreja Católica.
As jovens moças, pertencentes aos segmentos
privilegiados, foram classificadas como ícones da nobreza e distintas das
classes abastadas, o desempenho social dessas mulheres foi permeado pelos
preceitos da classe social a que pertenciam. Nem todos os lugares, nem todas as
ações lhes eram autorizadas não podendo se misturar de forma alguma com as
moças pobres da cidade.
As moças das classes populares há muito tempo foram
estigmatizadas e ameaçadas a sofrer a vergonha de serem tachadas como “mulheres
públicas”. Viviam uma dura realidade em que tinham que trabalhar fora para
sustentarem a sua família porque muitas vezes os rendimentos de seus maridos
não supriam as necessidades de seus lares. Em seguida veremos ainda, que o fato
das moças das camadas populares estarem desde muito cedo envolvidas nas tarefas
domésticas, no trabalho da roça e no cuidado dos irmãos menores, não
possibilitou que a maioria delas tivessem qualquer forma de educação
escolarizada.
2.2- “Pirão frio”: Cotidiano, estigmas e resistências
das mulheres pobres.
Entrar nessa empreitada foi uma tarefa bastante árdua,
visto que não foi fácil obter informações destas mulheres que há muito
vivenciaram uma vida bastante sofrida e relutavam em contá-las, pois estariam
rememorando momentos difíceis.
Por meio de seus relatos percebemos a opressão
vivenciada por conta da condição social, racial e econômica das mulheres de
baixa condição do município de Ipu e a maneira como a perspectiva de mundo
dessas mulheres foi formada com base no seu lugar ou não, na sociedade ipuense.
Devido ao fato das mulheres de famílias pobres,
lidarem com a inconsistência do trabalho masculino, encontrava-se acessível
variados serviços referentes a realização de atividades domésticas. Apesar de
em várias situações a mulher fosse a incumbida pelo sustento principal da casa,
o seu ofício continuava a ser visto de modo inferior, como um complemento ao
ganho masculino.
Os inúmeros preconceitos, geralmente relacionados ao
estereótipo da mulher pública, incidiam sobre as mulheres pobres que
trabalhavam fora do lar. Mas até aquelas que ocupavam-se nas tarefas
domésticas, também não viam-se livres de serem estigmatizadas.
Inteirar-se sobre a experiência das classes
empobrecidas nos proporciona compreender a racionalidade das mulheres pobres,
ou seja, a sua maneira particular de organização social. Desta forma, as
questões relativas ao cotidiano destas mulheres antes vistas como
insignificantes, podem agora ser novamente esmiuçados desvendando os novos
significados das contribuições femininas.
Embora houvesse discordância existente entre a
moralidade oficial imposta e a realidade vivenciada pela a maioria dessas
mulheres nas décadas de 50 à 70 na cidade de Ipu. Mesmo diante deste conflito
entre classes, as mulheres pobres e trabalhadoras determinaram meios de
resistências e assim resguardaram suas tradições, valores e costumes.
D. Esmeralda, dona de casa aposentada, foi à única das
nossas entrevistadas pertencente às camadas populares que teve a oportunidade
de estudar embora não tenha concluído o fundamental II. Quando solteira
dedicava-se as tarefas do lar e trabalhava em casas de famílias ricas. Depois
de casada deu prosseguimento à mesma rotina de trabalho, mas aumentaram as
dificuldades que teve de enfrentar na luta pela sobrevivência da família que
constituiu. Revela ter sofrido bastante para criar seus sete filhos, pois
devido à ociosidade de seu marido a nossa depoente teve que sozinha garantir o
sustento de sua prole.
Ao ser questionada sobre como se davam os relacionamentos
amorosos, D. Esmeralda nos fala, que os namoros em sua juventude eram parecidos
com os de hoje em dia, mas difere-se de sua época pelo fato de haver naquele
período um respeito mútuo entre os casais, que não se faz mais presente nos
relacionamentos atuais. Vejamos:
O namoro de antigamente eram normal como d’agora, só
que os rapaz respeitavam né, respeitava as moças, as moças respeitava os rapaz,
num esse negócio de quando a moça conhecia um rapaz, num é como agora quando
conhece um rapaz já leva logo pra cama, de primeiro não a pessoa já namorava,
namorava anos e anos, quando o rapaz mexia com a moça aí tinha que casar logo. (Entrevista
realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com a ipuense e dona de casa,
possui o fundamental II incompleto, Esmeralda Alves de Oliveira, de sessenta e
cinco anos, na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce).
Em seguida a entrevistada prossegue fazendo críticas a
maneira como se dão os relacionamentos atuais e relembra-se que quando suas
irmãs mais velhas namoravam as mais novas ficavam em vigilância ao casal a
pedido do pai. Observemos:
[...] minhas irmãs namorava, o papai botava nois pra
pastorar, tinha que ficar uma ali pastorando, namorava até, mais ou menos que,
umas dez horas aí pronto o rapaz ia simbora, pronto só no outro dia, num tinha
esse negócio de passar o dia na casa dele, nem ele na casa dela, era
respeitador, era respeito, de primeiro tinha respeito hoje em dia num tem não,
a moça começa a namorar com o rapaz a mãe acoita logo [...]. (Idem.)
A moça deveria preservar a sua honra até a noite de
núpcias, mas caso isso não ocorresse à família providenciava o casamento mais
rápido possível para assim reparar a honra perdida da moça, assim aconteceu na
família de Esmeralda:
Fazia casar, era obrigada a casar, tinha minha
cunhada, meu irmão mexeu com a filha do Crispim aí a veia foi e obrigou, aí a
mãe fez ele voltar do Rio pra casar com ela, foi a coisa mais mal feita que a
mãe já fez na vida dela, porque ela num prestava, aí empaio ele casar que é o
Francisco ali, mais a Maria. (Ibidem.)
Um número considerável de homens só casavam com a moça
se ela fosse virgem, caso a mesma já tivesse relacionado-se intimamente com
outra pessoa se descoberta a farsa após o casório a mulher era devolvida aos
pais como aconteceu com um conhecido de Esmeralda:
Ah às vezes num era todo rapaz que queria não, num era
todo rapaz que casava com moça que num era virgem mais não, de primeiro a moça
só se casava com o rapaz se fosse virgem, se o rapaz se casasse com a moça que
ela não fosse mais virgem ele ia entregar . O Zé da Maricota casou com uma moça
do juazeiro do Norte aí quando foi no dia da noite de núpcias ela num era
virgem e ele foi entregar ela, foi deixar lá no Juazeiro. (Ibidem.)
Segundo Pinsky “eram raros os homens que admitiam a
ideia de casarem com uma moça deflorada por outro. No próprio código
civil estava prescrita a possibilidade de anulação do casamento caso o
recém-casado percebesse que a moça não era virgem e, se tivesse sido enganado,
poderia contar com o Código penal que garantia punições legais para o “induzimento
a erro essencial”.” (PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos
Dourados. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História
das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.613.)
O Clube Artista Ipuense era destinado ao divertimento
daqueles menos favorecidos, mas os jovens ricos da cidade também frequentavam o
Clube. As moças não pagavam entrada, mas tinham que dançar com quem a
convidassem por ordem dos Diretores do Clube, Esmeralda nos conta que dançava
com os jovens ricos, mas todos eles deviam respeitá-la:
Eu também toda vida me guardei, toda vida eu achei
gente pra me respeitar agora tinha uma coisa se o caboco num me respeitasse ele
caia fora era cedo. Se eu fosse pro forró eu gostava muito de forró, dançarra
muito aí quando eu ia pas festas tinha aqueles caboquim rico que entrava lá no
Clube do Artista nera que era só dos pobe aí eles chegarra lá e tirava pa
dançar aí a gente ia e dançarra nesse tempo mulher num pagava pa dançar, a
gente dançava e aí na hora que ele tava querendo meter os pés por a mão a gente
tacava o chute nas canela dele e butava ele pra dançar era, num tinha isso
comigo não minha fia. Notro dia eu tarra dançando com um rapaizim rico daqui de
dentro do Ipu, fi de gente marromeno mermo aí ele rei quere me agarrar aí eu
dei um tupetão na canela dele aí o diretor que era o Gonçalo Fortuna nesse
tempo mais o mestre Chico disse:_ Esmeralda porque você fez isso? _ porque ele
vei com falta de respeito comigo aqui dentro e aqui dentro nem o presidente vem
com falta de respeito comigo. Era assim, era bom nesse tempo a gente andava,
passeava, andarranaquelas avenida acolá, ninguém via falta de respeito, ninguém
via as pessoa falando dos outro nem nada, era bom, mas agora num presta não. (Entrevista
realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira,
op.cit.)
Conforme reitera nossa entrevistada, a entrada no
Grêmio Ipuense era restrita a alta sociedade, mas o Clube Artista recebia todas
as classes sem distinção. Esmeralda lembra-se com bastante entusiasmo das
noites em que saia do trabalho e ia divertir-se no Clube Artista Ipuense:
Ali onde é a Caixa, ali era o clube dos ricos nera, só
dançava gente assim fi de doutor, gente marromeno mermo, gente rica, era o
antigo Grêmio, e ali onde vende aquelas coisa de bolo agora, ali era o Artista
era só o clube dos pobres. Só que os pobre não ia dançar no Grêmio porque era
dos rico né, mermo que pagasse não podia dançar, e os rico se pagasse ali nos
pobre ele podia dançar, entrarra e dançarra e aí a gente dançarra as festa,
tinha as festa, quase todo dia dançava, era bom, aí só tinha uma coisa, na hora
que os caboco e o pessoal gostarra de dançar e eu gostarra de dançar mermo,
dançarra de segunda a segunda, trabalhava durante o dia e de noite eu ia pros
forró, aí eu dançarra,dançarra,dançarra, mas tinha na hora que os caboco desses
rico chegava que ficarra olhando e chamarra a gente pra dançar a gente ia,
porque se agente num fosse aí diretoria já recramavacom a gente,era sócio né,
já vinha recramar, porque tinha que respeitar aí a gente ia dançar. (Idem.)
Segundo Rachel Soihet “a organização familiar dos
populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo inúmeras as famílias
chefiadas por mulheres sós” (SOIHET, Rachel. Mulheres Pobres e violência
no Brasil urbano. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012,
p.362). As mulheres populares devido as
condições em que viviam não eram submissas e frágeis como as mulheres da elite
e os homens pobres por conta de suas condições de vida estavam longe de assumir
o papel mantenedor da família previsto pela ideologia dominante, tampouco o
papel de dominador, típico desses padrões.
Esmeralda relata com bastante desgosto o seu
casamento, pois alega ter vivido toda sua vida trabalhando pra sustentar a
casa, os filhos e o marido, que segundo a entrevistada foi sempre muito
preguiçoso, por conta disso passou a ser responsabilidade dela garantir a
sobrevivência de toda a família:
Não foi essas coisa demais não, me arrependo não
porque eu tenho os meus filhos a única coisa de bom que eu tenho do meu
casamento é os meusfilho e os meus neto, o resto é resto. [...] uma moça sai de
dento da casa de seus pais pa casar, pa se ajuntar com outa pessoa, pa aquela
pessoa lhe ajudar, trabaia né, não pa você morre de trabaia dia e noite pa
sustenta ele como eu faço aqui, o único desgosto que eu tenho da minha vida é
eche de morrer de trabaiapa sustenta e ainda num tem quem dê valor. (Entrevista
realizada no dia primeiro de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira,
op.cit.)
Esmeralda foi a única de nossas entrevistadas
pertencente à classe baixa que casou-se virgem. Revela ter casado por conta que
seu pai não a deixava sair, e viu em um casamento o passo para a liberdade
confidenciando que com “o primeiro doido que aparecesse eu casava” (Idem.). Casou-se no religioso e no civil, logo em seguida
nasceram os seus filhos e confessa que: “num passaro muita fome, porque eu comecei
trabaiar, pa num deixar eles passare fome” (Ibidem.).
De acordo com nossa entrevistada, inicialmente seu
casamento não foi tão ruim, mas passou a ser a partir do momento em que sua
sogra começou a interferir na vida do casal, pedindo para que seu filho a
proibisse de trabalhar e se assim o fizesse deveria entregar todo o dinheiro
nas mãos dele.
Esmeralda ainda revela que deveria ter tido somente um
único filho, pois chegou a separar-se de seu marido, e nos conta que só possui
uma casa para morar devido sua madrinha ter-lhe cedido um terreno:
Hoje em dia era pa mim ter só o Antonio josé por causa
que eu botei ele pra ir simbora larguei ele , o Antonio José tarra com um mês
de nascido eu ainda morarra mais a mãe dele aí peguemo uma briga na hora do
almoço aí eu fui membora mas o Antonio josé aí minha vó me deu a casinha dela
pra mim morar com ela, aí depois a madrinha comprou esse terreno aqui mas se
não fosse isso hoje tarra só com o Antonio José. (Ibidem.)
Prossegue dizendo que seus planos eram deixar o seu
filho sob os cuidados de seus pais e ir embora para poder sustentá-lo, mas seus
planos não foram adiante devido seus pais lhe negarem esse pedido, pois eles
queriam que sua filha permanecesse casada. Após seu esposo ir atrás de voltar e
seus pais não a apoiarem a mesma resolveu retomar a vida de casada:
Foi, ele foi lá adular, aí mãe vai e o papai vai, fia
minha não pode viver separada é pa viver casada, casou é pa ir viver mais o
marido. Porque eles num quiseram ficar com o Antoniojose, porque o meu negocio
era esse eles ficasse com o Antonio Jose pa mim ir memboratrabaia, pra mim cria
só meu fi né, aí num quisero ficar com o menino, aí foi o jeito, eu me ajuntei
com ele aí nasceu o Giudásio, nasceu a Aninha, veio a Joana, o Cicim, o netim, a
Manuela tive, aí eu fazia o meu papel né de Dona de casa respeitadera,
respeitarra tinha minhas obrigação mas agora cabô. (Ibidem.)
Nesse sentido, é indiscutível o quanto as mulheres
pobres vieram adquirindo independência ao longo dos anos. Vivendo precariamente
seja como autônoma ou assalariada, improvisavam continuamente suas fontes de
subsistência. Oferecendo seus serviços como lavadeiras, cozinheiras,
engomadeiras, domésticas entre outras.
Dona Dedê, dona de casa aposentada, de origem humilde,
revela nunca ter estudado, pois começou a trabalhar desde os oito anos de idade
para ajudar no sustento da casa, rememora os momentos difíceis pelos quais
enfrentou por conta da ausência de capital com mais um agravante, o alcoolismo
de seu pai, que por diversas vezes desestruturou toda sua família:
Quando eu tinha a idade de 8 ano já foi começando a
trabalha porque meu pai não podia me dar nada eu tinha que trabalhar e fui
crescendo trabalhando quando eu compretei meus quinze ano trabaiando todo tempo
trabalhando nunca ficava em casa quando eu tava em casa eu butava água pra
beber eu nunca tive boa vida a minha boa vida era ter só minha saúde pra mim
poder enfrentar a vida e era um sofrimento naquela época que os pai naquela
época não tinha recurso e ainda tinha a maldita da bebida que maltratava a
família né. (Entrevista realizada no dia dezenove de maio 2015 com a
ipuense e dona de casa, analfabeta, Antonia Fátima da Costa Vieira, conhecida
popularmente como Dona Dedê, de sessenta e cinco anos, na residência da mesma
no Bairro do Reino de França em Ipu-Ce.).
A entrevistada prossegue dizendo que nunca teve
vergonha de trabalhar, lembra-se do desgosto de seu pai em não poder lhe dar
nada, obrigando-se assim mesmo tão jovem a trabalhar em casas de família, quando
não, ia vender água para ajudar a manter a sua parentela:
Eu trabalhei minha filha naquela época eu vou lhe
falar os pai, naquela época tinha pai que era carrasco, o meu pai num era
carrasco, mas ele num podia era me dar nada, ele num ia me bater pra mim
trabalha não, tinha vez que ele dizia assim: minha fia eu tenho uma vontade tão
grande deu chora, e eu: porque pai? Não faça isso não. Eu vendia água uma coisa
que eu num tinha vergonha minha fia pegava uma lata e ia pro buraco da giaque
nesse tempo chamarra o buraco da gia [...] e eu butava minha água e vendia
recebia o meu dinheirim e dava minha mãe. (Idem.)
De acordo com nossa entrevistada, ela e suas irmãs não
poderiam sair sozinhas iam sempre acompanhadas por senhoras de idade suas
vizinhas que as vigiavam para que nenhum mal ocorresse. Seu pai jamais as
deixavam saírem só, queria saber para onde iam e com quem saiam:
Os pai da gente dizia: _ Fulana tu vai pra onde? _ Pai
eu vou pra tal parte, mas eu venho jajá viu. _ Mais quem você vai? _Eu vou com
fulana de tal assim, assim. A gente dava tudo detalhe com quem ia e com quem
vinha. _Pai eu vou com fulana e volto com fulana viu pai. _Eu vou cuspir no
chão. A gente tinha que ir e voltar na mesma hora, eu andei muito com pessoa
aqui, que essa pessoa já morreu é a dona Eveline eu andava com ela, só saia com
ela, que vinha mi entregar na porta de casa e dizia: _Ta aqui cumpade Luís, ta
aqui a Dedê, ninguém arrancou pedaço dela viu, cumpade deixe de ser besta deixe
ar bixinha sair. E ele: _Não minhas fia num andam solta por aí não. [...] outra
a Dibrinca, só saia com elas também, ia e voltava com elas, naquela época eu
saia com as mulhe de idade que era as pessoa que me pastorava, elas me
potregia, era minha guarda costa era elas [...] na minha época era diferente. (Ibidem.)
As festas no Clube Artista eram para as mulheres de
baixa condição, um excelente divertimento, principalmente para aquelas que
adoravam dançar no salão do Clube. D. Dedê recorda o fato em que o baiano
Stélio expôs a ela sua predileção por este Clube nos confirmando assim que os
homens da alta sociedade ipuense preferiam o Clube Artista por diversos
fatores. Vejamos:
[...] um dia eu ainda me lembro, nóistava dançando os
carnaval e chegou o bancário lá, era aquele bem moreno[...] aí ele chegava e
dizia assim:_Esse aqui é que é o clube, eu dou mil por esse clube aqui e num
dou nem um por aquele outro lá, uma hora dessa já fechou tudo lá. Era o seu
Stélio, era bem pretim ele viu, aí eu disse: _Valha, você vem se misturar com
nois?um gerente do banco?aí ele fez foi dizer pra mim: _Você vai é dançar
comigo agora; aí eu disse: _Não senhor, eu já rou é embora, já tamo encerrando
aqui. Até que o finado mestre Chico pediu pra mim dançar com ele porque lá era
diferente, o nosso clube lá, era como se diz, era classe média, mais era uma
sociedade de responsabilidade. (Ibidem.)
Nossa entrevistada recorda-se com bastante entusiasmo
sobre os bailes do Clube Artista Ipuense. Lembra-se ainda de como se saiam
daqueles homens que sempre passavam dos limites e daqueles que se irritavam
quando as mulheres se negavam a dançar com eles:
Eu ia, ah era muito bom, maravilhoso, a gente dançava
muito, dancei muito ali, quando tinha um assanhado a gente saia sabe de
bandinha, agora tinha um minha fia, que quando a gente dizia que num ia dançar
com ele que ia dançar com outro, a briga que dava lá dentro, queria da na cara
das muié, nessa época era desse jeito. (Ibidem.)
Dona Dedê afirma que durante sua juventude as mulheres
e os homens de baixa condição não frequentavam o Grêmio Ipuense, devido
justamente aos preconceitos presentes na época por ser um ambiente restrito
apenas para a alta sociedade. Mas após casada e mãe de seus filhos teve a
oportunidade de adentrar ao clube, mas a entrevistada confessa não ter se sentido
muito bem naquele ambiente há tanto tempo destinado única e exclusivamente a
uma só classe:
[...] era uma coisa muito diferente a gente num ia pra
lá não eu num vou mentir a gente ficava era no nosso, nóis tinha o nosso clube,
nois tinha o nosso chitão lá, tinha a quadrilha né e nois tinha o carnaval e
tinha as festa de janeiro, festa de outubro, tudo o povo festejava lá, então a
festa nossa era lá, eu nunca fui festa fora. Quando eu tive de entrar no Grêmio
foi depois de casada que eu levei or meu menino pra ir olhar o carnaval de
criança que eu ganhei os ingresso e fui entrar lá ,mas muito diferente sabe, a
gente vai, mas num é como a gente se sinta bem no da gente, porque lá é tudo
igual, lá é outra coisa, mar eu fui, marré como eu to lhe falando mermo, era
uma coisa dividida era as duas sociedade que tinha no Ipu. (Ibidem.)
Conforme explicita Rachel Soihet (SOIHET,
Rachel. Mulheres. In DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 2012, Op. Cit.), na cidade do Rio de Janeiro as autoridades
costumavam empenhar-se em impedir a presença dos populares em certos locais, no
esforço de afrancesar a cidade para desfrute das camadas mais elevadas da
população e para dar mostras de civilização aos viajantes e visitantes. E assim
notamos na cidade de Ipu.
Como já foi dito anteriormente o Paredão foi um dos
ambientes destinados as empregadas domésticas as chamadas “pirão frio”. E Dona
Dedê confirma isso ao revelar o Paredão como um dos seus poucos espaços de
divertimento e lazer, lembrando sempre que essas mulheres divertiam-se
geralmente à noite, pois durante todo o dia trabalhavam ou dedicavam-se aos
afazeres domésticos de seu próprio lar:
Naquele tempo minha fia só tinha o paredão, era o
paredão né, aquele povo sentado ali, era uma voz da cidade tocando a gente
passeava por ali e eu andava com as minhas irmã por lá, mar era bom naquela
época, era uma época que podia sentar lá, era um paredão mermo minha fia que a
gente sentava lá em cima e via o povo passano em baixo dexe tamaizim, mas era bom
lá a gente sentava era bem ventilado era simples mas era melhor. (Ibidem)
Dona Dedê diverte-se ao rememorar como se davam os
namoros em sua juventude, revela ter sido bastante vigiada pela família: “era
ele bem acolá e eu bem aqui, [...] e os pai ainda ficava pastorando se a gente
vinha do rumo da rua só segurano no dedim assim, eu lhe juro pela fé de Deus,
era muito diferente, num era como agora não” (Ibidem.). Vejamos o que Nossa entrevistada nos conta a
respeito:
Naquela época eu mermo diga pa Aparecida quando eu
namorava com teu pai, era eu, minha mãe, meu pai e o Antonio, a Socorro e a
Maria tudo ali perto, minha mãe ia fazer café a gente tomava, era muito
diferente, muito diferente. Era o papai conversando com ele, mal eu conversava
com ele, pa mim lhe dizer, conversava comigo quando ia, Toinha boa noite, até
amanhã, tchau, inté amanhã, e eu: _ Pois vá com Deus, Deus te acompanhe. Eu
ainda ficava era rindo sabe do nosso namoro porque era muito diferente sabe,
num tinha esses agarrado, quando o rapaz ia colocar a mão no pescoço a moça e
eu mesmo dizia:_ tira a mão do pescoço , mão no pescoço é mão no pé do ouvido,
tira mão do meu pescoço, e ele dizia:_ porque Toinha?_ porque eu num gosto. (Ibidem.)
Conforme os relatos de nossa entrevistada, os homens
costumavam honrar habitualmente as moças. Mas o que mais atraia a sua atenção
negativamente, era quando sucediam-se casos em que o casal se relacionava
intimamente e os mesmos eram obrigados a casar forçadamente:
Naquela época os rapaz tinha mais respeito pela moça,
só tinha uma coisa que eu acharra horrive na época, era os rapaz buli com a
moça, tinha que casar a força, tinha que casar na marra porque num era mais
moça, num é cuma hoje, hoje não, as coisa são mais muderna na minha época era
diferente. (Ibidem.)
Dona Dedê possuiu o seu primeiro namorado aos 19 anos
e com menos de um ano de namoro casou-se, relembra a mesma ter sido o seu
marido quem a tirou de toda a pressão que vivia em sua casa por ter um pai
alcoólatra que frequentemente criava confusões ameaçando sua mãe de morte com
uma espingarda e deixando os filhos inúmeras vezes dormindo do lado de fora
tendo os mesmos que se abrigarem na casa de algum vizinho.
Casou-se primeiramente no civil e logo após que
reaprendeu as rezas, no religioso, alega ter a sua dura vida de trabalho
ocasionado o esquecimento das rezas. Confessa ter casado-se grávida de seu
primeiro filho. Diante disso percebemos que as mulheres de baixa condição se
entregavam com mais facilidade aos seus parceiros do que as mulheres de elite:
Eu me casei civil primeiro e depois casei padre
enquanto eu apredia a reza,porque quando eu fiz a primeira comunhão eu tinha
uns 7ano pa 8 ano quando eu fiz a primeira comunhão, aí a gente fica
trabalhando não fica rezando né, tive que rezar novamente, eu tive que rezar
outra vez, eu mais meu marido[...] aí eu já casei foi grávida do meu filho, eu
acho que meu filho é abençoado de nascença esse que ainda mora na Brasília.(Ibidem.)
Logo mais quando indagamos nossa entrevistada se seus
pais sabiam que ela estava casando-se grávida, ela se contradiz ao afirmar que
não:
Não eu num casei grávida não, eu casei normal mermo
ele só fez bulir comigo e nós casamos, também não teve confusão né porque ele
queria e o papai queria demais nós casamos quando eu fui ter minha menina
parece que nós já tava com 8 mês de casado. (Ibidem.)
De acordo com Maria Ângela D’Incao:
A mulher das classes baixas, ou sem tantos recursos,
teve maiores possibilidades de poder amar pessoas de sua condição social, uma
vez que o amor, ou expressão da sexualidade, caso levasse a uma união, não
comprometeria as pressões de interesses políticos e econômicos. As mulheres de
mais posses sofreram com a vigilância e passaram por constrangimentos em suas
uniões, de forma autoritária ou adoçada, na sua vida pessoal. Para elas o amor
talvez tenha sido um alimento do espírito e muito menos uma prática
existencial. (D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família Burguesa. In DEL
PRIORE, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.234.)
Para Dona Dedê a Igreja Católica tinha um papel
fundamental para a formação dos jovens, pois o Monsenhor Moraes utilizava os
momentos de sua homilia e no confessionário para pregar e instruir os pais e os
filhos que frequentavam a sua paróquia:
Mulher o monsenhor Moraes sempre dizia, ele era um
padre daquele diferente desses outro, era o Monsenhor Moraes ele dizia mermo
assim: _Eu peço que vocês crianças (ele num chamava jovem, era criança), não
vão sempre no caminho errado não, vão sempre no caminho certo. Porque ele rá
sabia né, ele como padre, um monsenhor já, ele tava dando uma orientação nera,
o modo de viver daquela juventude, isso ali era um conselho que ele tava dando
né, se um pai num dá um monsenhor daquele já tinha que dá né, eu mermo me
confessei com ele e ele mermo dizia pra mim ele tinha os conselho dele né ele
sempre dizia: que hoje os finum obedece mais mãe e nem pai, e é verdade porque
ele ensinava e as coisa era diferente. (Entrevista realizada no dia
dezenove de maio 2015 com Dona Dedê, op.cit.)
Recorda-se do período que o Monsenhor Moraes não
permitia o uso de roupas consideradas indecentes dentro da Igreja, “quando a
gente ia de vestidinho assim a gente colocava o veuzim” (Idem.). Mas acrescenta que a atitude do Monsenhor Moraes
era a correta pois ninguém deveria frequentar a casa de Deus vestindo-se de
maneira indevida.
“Controlava né, porque de primeiro tinha as confissão”
(Ibidem.). Acrescenta ter suas atitudes
controladas por meio das confissões, que era um modo que os párocos tinham de
saber o que os cristãos estavam fazendo de correto e impróprio.
Rememora ainda, o período em que quase se divorciava
de seu esposo. Dona Dedê nos relata sempre ter sido uma mulher bastante
independente e sua autonomia passou a deixar seu marido bastante enciumado.
Nossa entrevistada passou então a aconselhá-lo, pois permanecer em seu trabalho
seria o melhor para toda sua família:
Eu nasci pra trabalhar Antonio, desde 8 ano que eu
trabalho, e eu quero vencer a vida é trabalhando meu nego,vamo trabalhar, vamo
manter nossos filho, nois tem que ter as coisa pra eles, como é que nois vamo
butar uns menino desse pra estudar num é, tem que trabalhar.(Ibidem.)
O homem pobre passou a se ver em uma situação
divergente em relação a sua companheira que tornava-se cada vez mais
independente, causando assim a sua insegurança. Desta forma o ciúme surgia
diante “de sua incapacidade de exercer o poder irrestrito sobre a mulher” (SOIHET,
Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In DEL PRIORE, Mary
(Org.). História das Mulheres no Brasil.
10 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.370.).
Dona Dedê relata ainda ter visto seu esposo
aconselhando-se com o Monsenhor Moraes, que a apoiou totalmente, fazendo com
que seu marido passasse a compreender os motivos pelas quais a sua mulher não
saia do emprego:
Um dia eu cheguei e ele tavacunvesando com o Monsenhor
Moraes e ele disse: _Monsenhor eu vou lhe dizer uma coisa, minha mulher é muito
vivedeira eu brigo com ela. e ele:_ Porque que cê briga com a sua mulher, ela
lhe da motivo ?_ não Monsenhor é porque eu num quero que ela trabalhe. _Ela
trabalha porque ela gosta, isso é que é uma mulher boa, que ela lhe ajuda. _Ela
faz o que? _Ora ela vai lá pacumade iIlza e lá cumade da o material todim dos
estudo. E ele: _Antonio imagina se tu fosse comprar esse material, você já viu
quanto é que dava não, então fique calado ela num ta fazendo nada errado ta
fazendo coisa que preste. (Entrevista realizada no dia dezenove de maio
2015 com Dona Dedê, op.cit.)
Segundo Dona Dedê toda mulher “tinha seu bom
comportamento, seu modo de falar, se entrar num ambiente pedia licença, quando
saia pedia novamente e ali a pessoa era muito respeitada porque tinha o seu
modo de vida.” (Idem.)
A estação era um ambiente bastante frequentado por
todas as classes sociais, a chegada e a partida do Trem movimentava bastante a
cidade, pois os curiosos ficavam observando o intenso fluxo de viajantes e isso
tornava-se para todos um grande divertimento, pois tinham a oportunidade de
fazer novas amizades, de flertar , e de fazer novos clientes. Dona Dedê nos
fala que as moças de baixa condição não poderiam observar a passagem do Trem no
turno da manhã porque trabalhavam para garantir o sustento da família, mas no
segundo turno não perdiam esse momento de lazer:
Ia, era animado minha fia, uma vez nois fumo [...] ali
no Chiquim né, aí noisficamo ali, aí o povo ia pra lá, tinha as barraquinha pa
vender o café o pedacinho do seu bolo, aí todo mundo ficava lá, era animado
comprando passagem, aí eu disse assim: _ Valha aqui é tão animado eu num sabia.
A Maria: _Émuié, nois vem é pra cá agora, de manhã ninguém pode vim Dedê porque
noisvamo buscar água e fazer as coisas em casa mas de noite é bom. Era muito
bom muié. (Ibidem.)
O cotidiano das mulheres pobres na cidade de Ipu,
sempre foi em busca pela sobrevivência diária, muitas delas além de serem
responsáveis pelas tarefas do lar, trabalhavam ainda em casas de família, no
trabalho agrícola, entre outros. Mas apesar das dificuldades as moças pobres
deveriam ter bons modos, caso não se comportassem adequadamente essas mulheres
eram ainda mais estigmatizadas.
Dona Mundica, dona de casa aposentada teve um
cotidiano semelhante ao de nossas outras entrevistadas que como ela, também
eram de baixa condição. Revela-nos que trabalhou muito durante toda sua vida
para ajudar a criar os irmãos e mais tarde para sustentar os filhos. Como as
demais, confessa ter vivido toda sua infância e juventude sem liberdade alguma,
via em um casamento a oportunidade de viver livre,mas continuou com uma vida
limitada aos afazeres domésticos e a trabalhar fora para manter sua família:
A minha infância foi como escravo né, de casa pra ir
por mato buscar lenha, passar no passador com uma lata d’água na cabeça, indo
de madrugada pos posto com as criança doente, chegava não tinha comida pra mim
comer , aí eu fui levando aquele tempo , aí eu tinha vontade de me casar aí eu
digo:_ Ai meu Deus um dia eu saio desse cativeiro, aí arrumei esse marido,
casei, continuou o sofrimento mais, sofrendo pra ganhar o pão de cada dia só pa
não ver os meu filho pedindo e andarrafazeno faxina nas casa com eles
pequenininho aí criei eles tudim trabalhei noutra casa fazendo tudo até 8 mês
pa chegar ao ponto pra eu compra aquela casinha pra eu morar, aí graças a Deus
eu venci e to aqui viva e forte graças a Deus. (Entrevista realizada no
diavinte de maio 2015 com a ipuense e dona de casa, alfabetizada, Raimunda de
Sousa Moura, conhecida popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos,
na residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.)
Segundo nossa entrevistada, a vida tinha dificuldades
até mesmo para os donos de terra e de gado que não tinham condições de manter
trabalhadores, tendo eles mesmos que empenhar-se para dar conta de todo o
serviço:
Minha fia a vida de outrora era sofrida pa todo mundo
mermo, que a pessoa tivesse gado, tivesse terreno como eu conheço vários que
tem mais sofria porque eles não queria botar empregado, eles mesmo cuidava
nera, e aí outros cuidava tudo de serviço grosseiro, negocio de curtição de
couro, essas coisa era tudo serviço grosseiro, era uma vida muito complicada e
sofrida né. (Idem.)
Dona Mundica confessa ter sido bastante “humilhada,
porque às vezes aquelas pessoas que a gente propriamente ajudava humilhava a
gente.” (Ibidem). Conforme nossa entrevistada o preconceito era
nítido, pois não poderiam comparecer ao Grêmio Ipuense, somente os ricos
adentravam naquele recinto. De acordo com Dona Mundica até mesmo o bancário
Stélio era vítima desta sociedade racista:
O Grêmio ali, só dançava no Grêmio quem era de
família, quem era rico, aí de certo tempo pra cá é tão provávio que o Stélio
era bem pretão era um bancário que tinha, ele colocava as luva no braço pra
poder pegar na mão da mulher dele pra poder dançar, era só os rico que entrava.
(Ibidem.)
Com as mudanças na direção do Grêmio Ipuense, já na
década de 1970, o clube tornou-se mais acessível passando a adentrar naquele
ambiente todos aqueles que dispunham de verbas, independente de sua condição
social:
Certo tempo já vi outras pessoas entrando, também
pobre entrando lá pra dançar, aí eu via que o que valia era o dinheiro porque
onde vai o dinheiro tem tudo né, aí como eles tinha dinheiro num fez diferença
do branco pro preto né, é isso. (Entrevista realizada no dia vinte de
maio 2015 com a ipuense e dona de casa, alfabetizada,Raimunda de Sousa Moura,
conhecida popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos, na
residência da mesma no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.)
Devido viver constantemente enclausurada, Dona Mundica
nos conta que jamais ia a Igreja a não ser para fazer sua primeira Eucaristia,
revela ainda, que não sabia andar pela cidade, não conhecia nenhum ambiente
localizado no centro de Ipu:
Eu não tinha aquela frequência assim de andar nas
igreja, que o negocio da mamãe era só cuidar de minino, ir pos posto, lavar
roupa nos riacho e tudo, aí eu não sei, eu não sabia onde era Prefeitura, eu
não sabia onde era o Banco do Brasil, eu num sabia onde era a Igreja era, era
só dentro de casa. Só quando eu fui fazer a primeira comunhão, porque a moça
pegou um monte de criança pra fazer a primeira comunhão, aí nós fizemo, aí elas
iam tudo arrumada e eu só ia arrumada porque minha madrinha Maria Ceci do
cartório foi quem me arrumou, aí eu fui arrumada, pois é mais eu ia até
descalço só de meia, aí quando cheguei lá no Artista a minha madrinha foi buscar
um sapato e eu calcei. (Idem.)
Mesmo possuindo poucas condições, era exigido das
moças que usassem roupas cobertas: “Eu pero meno minha roupa era abaixo do
joelho né, porque meu pai nunca consentiu da gente usar roupa acima do joelho
só abaixo mesmo, nós num usava pintura só cabelo grande, tipo crente sabe
(risos)”. (Ibidem)
Ao ser indagada se as moças falavam ou os pais orientavam
em relação a vida sexual, ela nos conta que: “Não, ninguém ouvia falar disso
não, é tanto que meu marido me fez uma pergunta já perto de nois casar sobre
coisa de homem, aí eu disse que não sabia, eu casei e nunca perguntei a ele o
que era.” (Ibidem.)
Relata que “naquela época se o homem casasse e a moça
num fosse virgem ela ia voltar pra casa do pai dela, várias moças que eu
conheci foi” (Ibidem.). Nos revela ainda
que como seus pais não admitiam o seu casamento com o Luís seu esposo, “ele
mexeu comigo pra poder, se eles chegassem a saber eles já iam ajeitar o
casamento, só que não deu pra eles saberem porque nois casamo logo nera”. (Ibidem.)
Prossegue dizendo que não foi feliz em seu casamento,
“porque eu casei e fui morar nas casas por aí você tira né, a gente durmia numa
sala junto com dois cunhados solteiro e a gente com marido, num fui feliz não,
quando eu fui ser feliz dona da minha casa não tinha mais graça, pronto aí eu
me acostumei pronto” (Ibidem.).
Dona Mundica revela que seu maior sonho era poder ter
frequentado a escola:
[...] nunca estudei, porque meu pai num podia nem
minha mãe eu chorava pra ir pra escola eu achava a coisa mais bonita do mundo
quando eu via uma pessoa ir de sapato e meia, aquela roupinha da escola e tudo,
chorava mais nunca fui. (Ibidem.)
Mas embora não tenha sido alfabetizada, confessa que
aprendeu a ler e a escrever sozinha, pois sempre teve bastante interesse em
conhecer o alfabeto. Lembra que transcrevia as cartas que seu pai enviava a sua
mãe quando morou fora, e sempre quando ele retornava pedia para que o mesmo
tirasse suas dúvidas.
Por meio destes relatos orais tivemos a oportunidade
de analisar e discutir sobre a presença e as formas de atuação feminina em
diversos espaços da cidade de Ipu. Estas, que por diversas vezes, foram
consideradas o oposto dos padrões desejados, e que muito negociaram suas
possibilidades de sobrevivência e empenharam-se a alcançar seus espaços de
atuação como sujeitos de suas próprias vidas.
A análise realizada teve como objetivo discutir a
presença das mulheres enquanto sujeitos históricos. Buscamos elucidar o
cotidiano e as experiências dessas mulheres, perceber o quanto elas
desempenharam uma sorte de papéis. Compreendemos o quanto ser mulher e ser
pobre é capaz de contribuir para a formação de estereótipos.
Foi possível discutir a rotina e as resistências
diárias dessas mulheres pautadas na ideia de cor e classe social. As fontes, no
entanto, nem sempre dizem aquilo que se espera delas, mas a partir de relatos
orais, principal fonte dessa análise, procuramos evidenciar nesse capítulo quem
eram essas mulheres e quais os diferentes espaços que elas apareceram
inseridas.
Esse caminho de análise mostrou-se brilhante para
traçar um perfil das mulheres ricas e pobres da cidade de Ipu. Seus relatos
foram capazes de trazer para a discussão parte das suas vivências. Resgatar o
cotidiano dessas mulheres, compartilhar suas experiências, trazer a tona o seus
conflitos diários através de suas histórias, é uma forma de dar voz e visibilidade
a esses sujeitos há tanto tempo silenciados e ignorados.
Felizmente, pudemos efetuar esta incumbência não
somente “através da difusa lente da justiça ou do olhar estereotipado de seus
contemporâneos” (SANTIAGO, Silvana. Tal Conceição, Conceição de Tal. Classe, gênero e raça no
cotidiano de mulheres pobres no Rio de Janeiro das primeiras décadas
republicanas. Dissertação de mestrado – UNICAMP. Campinas, SP. 2006. 91). Mas por meio de seus relatos, onde foi possível
perceber as maneiras como estas mulheres sobreviveram em meio as mais variadas
situações de preconceitos e opressões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dessa discussão pudemos mostrar as diversas
transformações ocorridas no âmbito econômico, social e dos costumes na cidade
de Ipu. A vinda da ferrovia causou intensas modificações. O crescimento urbano,
econômico e demográfico fez com que os elitistas passassem a anunciar que esta
cidade estava alcançando o tão sonhado progresso.
Alguns aristocratas passaram a exercer condutas para
ajustar a cidade e a sociedade como progressista, para isso foram edificados
espaços destinados apenas para a sociabilidade de grupos abastados. Desde
então, foram identificadas algumas práticas de preconceito em relação à classe
menos favorecida, estes que não se enquadravam com o progresso, a civilização e
a modernização pela qual a cidade estava passando.
Estes homens considerados ilustres tinham como
propósito remodelar a cidade, deixá-la habitável e composta por diversos e
novos espaços apropriados para a socialização da elite ipuense. Estes ainda
consideravam-se defensores da moral e dos bons costumes, atacavam todas as
práticas que viessem a ser consideradas impróprias, pois eram incompatíveis com
progresso vivido pela cidade.
O belíssimo Jardim de Iracema inaugurado em 1927 e o
Grêmio Recreativo Ipuense inaugurado em 1924 foram edificados para o
embelezamento da cidade e divertimento das famílias ricas ipuenses, estes
espaço foram criados com o propósito de modernizar o município e impressionar
seus moradores e visitantes, bem como foram formados devido à necessidade de se
construir ambientes destinados únicos e exclusivamente para a socialização de
grupos restritos.
Desde a sua elaboração, estes espaços foram
considerados disseminadores de preconceitos, pois nestes recintos era proibida
a entrada de pessoas negras e pobres. Quando estas pessoas não elitizadas
persistiam em adentrar nestes ambientes eram postos para fora, forçadamente.
Devido a estas práticas preconceituosas foram criados
espaços como o Clube Artístico Ipuense e a praça “26 de Agosto”, para o
divertimento e lazer das classes baixas, sendo que o Clube Artístico Ipuense
também recebiam os homens pertencentes a alta sociedade. O Paredão também foi
um espaço de lazer para as classes menos abastadas. Este foi edificado com o
objetivo inicial de embelezar a cidade, foi considerado um espaço de segregação
por ter sido inúmeras vezes utilizado pelos jovens populares para namorar um
pouco mais chegados.
Por meio de narrativas buscamos compreender o comportamento
feminino considerado ideal para as mulheres da elite e para as mulheres dos
segmentos populares. Estas que tiveram sua conduta constantemente vigiada e
controlada pela Igreja Católica, tal como pela sociedade. Pudemos conhecer o
seu cotidiano, suas experiências, resistências e conflitos assim como as normas
de conduta continuamente prescritas pela igreja, esta que a todo momento
interviam em suas vidas.
Ao pesquisar as memórias dessas mulheres pude perceber
que tanto as mulheres de classe alta, como as de classe popular não se deixaram
submeter totalmente aos seus maridos e as pressões impostas pela sociedade,
sempre souberam da importância que tiveram, sempre se reinventando em suas
práticas cotidianas nas mais variadas formas. Resistindo e combatendo os
múltiplos preconceitos as quais sofreram.
Trabalhar com a oralidade me possibilitou a
experiência de ultrapassar as fronteiras dos discursos que sempre veiculam a
imagem da mulher submissa, inferior e quase sempre excluída. Portanto pude ver
com um olhar totalmente novo o que há por trás da história destas mulheres, que
há tanto tempo, batalham para terem o reconhecimento da importância de seu
papel enquanto sujeito social, tendo seus direitos e equidade entre os sexos
garantidos.
Essas narrativas também são responsáveis por
proporcionar uma compreensão a respeito dos antigos estigmas, ainda tão
presentes na sociedade ipuense, assim como entender a culminância dos processos
históricos que levaram a cidade de Ipu a sua atual configuração, bem como, a constituição
de novos preconceitos que estão atuando nos dias de hoje. Podemos ter uma
idealização das consequências que as heranças e tradições da cidade de Ipu de
ontem tem sobre o Ipu de hoje e como os seus moradores encaram essas
transformações. Por tudo isso, essa pesquisa visa também contribuir para a
historiografia da cidade de Ipu.
FONTES ORAIS
Francisco
De Assis Martins (Professor Melo)
Ipuense,
Ex-professor, formado em Ciências Físicas e Biológicas pela UFC e Memorialista,
Casado, 71 anos.
Em sua
narrativa o ex professor e memorialista nos leva a pensar a existência da
discriminação e da exclusão de pessoas no seio das sociedades, bem como as mais
perversas instituições criadas para alguns homens se acharem superiores aos
demais, baseadas em diferenças que na realidade em nada diferem, em torpes
hierarquias ou ilusórias qualidades. Fato esse presente em todas as
civilizações desde longas datas e, como não poderia ser diferente, se apresenta
também no município de Ipu, no interior do Ceará, nos anos de 1900 à 1950.
Entrevista
realizada no dia dez de outubro de 2012 com Francisco de Assis Martins,
atualmente com 71 anos, na residência do mesmo no bairro Reino de França em Ipu
– CE.
Gonçalinha
Bezerra Aragão
Ipuense
e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Estudos Sociais e
Administração Escolar, casada, 67 anos.
Gonçalinha
Aragão pertence a uma família considerada ilustre na cidade de Ipu. Desde cedo
se dedicou e formou-se para ter a educação como seu ofício, lembrando-nos
sempre que mesmo diante de sua ocupação não deixava de se preocupar com a sua
função de esposa, proporcionando ao seu companheiro todos os cuidados que uma
mulher casada deveria exercer. Relatou ainda sobre a conduta que as jovens
moças deveriam ter e que seus pais possuíam um preconceito em relação às
pessoas negras.
Entrevista
realizada no dia dezessete de maio de 2015 com Gonçalinha Bezerra Aragão, de
sessenta e sete anos, na residência da mesma no bairro do Centro em Ipu –Ce.
Maria
Eunice Martins Melo Aragão
Ipuense
e ex-professora, formada em Pedagogia e pós-graduada em Administração Escolar,
Maria Eunice Martins Melo Aragão, casada, 75 anos.
D.
Eunice Martins, assim como todas as jovens ricas da cidade estudou no Patronato
Sousa Carvalho, instituição direcionada pelas irmãs de caridade, mas segundo a
mesma, devido à frequente mudança de cidade por conta do emprego de seu pai,
foi uma interna na escola das freiras, nesta instituição formou-se normalista.
Logo mais ao não suportar a distância que a separava de seu noivo casou-se com
ele, embora seu pai não fosse a favor no início e tenha demorado cerca de três
dias para permitir o casório. Juntos vieram residir definitivamente na cidade
de Ipu.
Entrevista
realizada no dia dezoito de maio de 2015 com Escolar, Eunice Martins, de
setenta e cinco anos, na residência da mesma no Centro em Ipu –Ce.
Maria
do Carmo Oliveira
Ipuense
e ex-professora, formada em pedagogia pela UECE e especializada em
Administração Escolar, Maria do Carmo Oliveira (este é um pseudonome a qual
utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou por ter sua
identidade preservada), viúva, 77 anos.
Maria
do Carmo diferentemente das demais entrevistadas pertencentes à elite, revela
ter tido uma vida bastante difícil, pois ficou órfã muito cedo e ao perder seus
pais, ela e suas duas irmãs passaram a morar com suas duas tias que já eram
idosas, as mesmas sempre foram muito rígidas na educação de suas sobrinhas.
Casou-se aos 28 anos sem a benção de suas tias, pois elas não aceitaram de
forma alguma essa união, para poder encontrar-se com seu futuro esposo saía de
casa as escondidas.
Entrevista
realizada no dia quinze de maio de 2015 com Maria do Carmo (este é um
pseudonome a qual utilizaremos para identificar a nossa entrevistada que optou
por ter sua identidade preservada), de setenta e sete anos, na residência da
mesma no Centro em Ipu- Ce.
Esmeralda
Alves de Oliveira
Ipuense,
Dona de Casa, possui o fundamental II incompleto, Casada, mãe de 7 filhos, 65
anos.
A
dona de casa nos relata como se davam os relacionamentos afetivos antigamente,
sendo o namoro constantemente vigiado pelos pais e, ao mesmo tempo, pelos
irmãos. A entrevistada demonstra certa indignação quando o assunto foi o seu
matrimônio, dizendo que não havia casado por amor, apenas por conta da vontade
dos pais para que arranjasse um marido. A mesma nos conta que batalhou para
construir a casa em que vivem até hoje e onde ela criou os seus sete filhos,
segundo ela, sem a ajuda alguma do marido.
Entrevista
realizada no dia 01 de fevereiro de 2015 com Esmeralda Alves de Oliveira, com
65 anos, em sua residência no bairro Canudos em Ipu – CE.
Antonia
Fátima da Costa Vieira (D. Dedê)
Ipuense
e dona de casa, analfabeta, Antonia Fátima da Costa Vieira, conhecida popularmente
como Dona Dedê, viúva, 65 anos.
Dona
Dedê, é uma senhora de origem humilde, revela nunca ter estudado, pois começou
a trabalhar desde os oito anos de idade para ajudar no sustento da casa,
rememora os momentos difíceis pelos quais enfrentou por conta da ausência de
capital com mais um agravante, o alcoolismo de seu pai, que por diversas vezes
desestruturou toda sua família. Revela ter quase pego uma depressão, pois a
mesma perdeu uma de suas filhas em um acidente com um cheque elétrico.
Diferentemente de nossas outras entrevistadas a mesma casou-se grávida.
Entrevista
realizada no dia dezenove de maio 2015 com a Antonia Fátima da Costa Vieira,
conhecida popularmente como Dona Dedê, de sessenta e cinco anos, na residência
da mesma no Bairro do Reino de França em Ipu-Ce.
Raimunda
de Sousa Moura (D. Mundica)
Ipuense
e dona de casa, alfabetizada, Raimunda de Sousa Moura, conhecida popularmente
como Dona Mundica, viúva, 68 anos.
Dona
Mundica, dona de casa aposentada teve um cotidiano semelhante ao de nossas
outras entrevistadas que como ela, também eram de baixa condição, nos revela
que trabalhou muito durante toda sua vida para ajudar a criar os irmãos e mais
tarde para sustentar os filhos. Como as demais, confessa ter vivido toda sua
infância e juventude sem liberdade alguma, via em um casamento a oportunidade
de viver livre, mas continuou com uma vida limitada aos afazeres domésticos e a
trabalhar fora para manter sua família. Nos relatou não ter casado mais virgem
pois sua família era contra o seu casório e para os seus pais permitirem o
jovem casal resolveu ter relações sexuais para que a família da moça os
obrigassem a casar, mas ela nos conta que eles casaram antes mesmo de seus pais
descobrirem.
Entrevista
realizada no dia vinte de maio 2015 com Raimunda de Sousa Moura, conhecida
popularmente como Dona Mundica, de sessenta e oito anos, na residência da mesma
no Bairro dos Canudos em Ipu-Ce.
FONTES IMPRESSAS
Jornal
dos Tabajaras - Ed. 95/96
Jornal
dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Dezembro/95 – Janeiro/96.
Jornal
dos tabajaras. Ipu, p.7, Edição Outubro/97.
Jornal
dos Tabajaras. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/Março/96.
Jornal
dos Tabajaras. Resgatando Memórias. Ipu, p. 3, Edição Fevereiro/98.
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