06 novembro 2015

IPU-CE EM TEMPOS DE DITADURA (1964-74)

MARIA REGIANE GOMES BARROS
(Texto adaptado a partir da monografia de graduação em História, com este mesmo titulo, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú –UVA, ano 2015)

INTRODUÇÃO

O tema desta monografia resultou de um projeto de pesquisa do Programa de Iniciação Científica da UVA, com financiamento da FUNCAP, que buscava fontes para a história da ditadura civil-militar no noroeste cearense. Na coleta de documentos percebeu-se que a ditadura teve repercussões em Ipu e que o tema merecia ser investigado, já que apesar de bastante discutido na atualidade a produção historiográfica sobre a ditadura ainda está muito restrita às grandes cidades. O objetivo deste trabalho é, pois, investigar as repercussões do golpe de 1964 na sociedade ipuense, identificando as elites políticas locais, suas relações com o regime e as repercussões do regime na cidade. O recorte temporal deve-se aos primeiros momentos de instalação da ditatura, bem como a hegemonia política de Rocha Aguiar no poder municipal. As fontes utilizadas foram: atas de câmara, jornais, depoimentos e imagens. O referencial teórico é a nova história política, pensando o jogo político como resultante da ação dos diversos sujeitos sociais. Constatou-se que tanto a repressão quanto a resistência chegaram a cidade de Ipu, embora nem todos tivessem consciência disso.

Para uns “Ditadura”, para outros “Revolução”. A Ditadura militar que durou 21 anos, sendo instalada em 31 de março de 1964, por um golpe civil-militar e finalizada em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, foi um dos períodos mais conturbados da história política brasileira. De acordo com a historiografia, os principais fatores que influenciaram o golpe fora o alto custo de vida, levando a ocorrências de muitas manifestações e greves, instabilidade política durante o governo de Jango, dentre outras, e principalmente a preocupação da classe média de que o socialismo fosse implantado no Brasil:

“As transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade institucional do país, as incertezas que marcaram o governo de João Goulart, a propaganda política do Ipes, a índole golpista dos conspiradores, especialmente dos militares — todas são causas, macroestruturais ou micrológicas, que devem ser levadas em conta, não havendo nenhuma fragilidade teórica em considerarmos como razões do golpe tanto os condicionantes estruturais quanto os processos conjunturais ou os episódios imediatos. Que uma tal conjunção de fatores adversos — esperamos todos — jamais se repita.” (FICO, Carlos. Revista Brasileira de História, vol.24, nº 47 Ano 2004. p.56)

As principais características do regime militar foram a censura aos meios de comunicação, cassação política aos opositores e repressão as manifestações e movimentos sociais. Com a decretação dos Atos Institucionais o governo podia mandar sem limites, muitos partidos políticos foram perseguidos e outros extintos, ficando somente dois partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) que muitas vezes se dividia em duas ou três sublegendas, apoiando o governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava a oposição ao governo. Foi um período marcado por muita injustiça, tortura e morte:

“O golpe de 1964 colocaria os militares como autores de atrocidades, de violências, de arbitrariedades e de torturas que jamais se coadunaram com o sentido das Forças Armadas e eram indicação eloquente de deterioração dessas instituições por forças de condições políticas. A utilização repetida e continuada das Forças Armadas, em nosso país, para a conquista do poder, impossível, para as forças do atraso, pela via eleitoral, é responsável por tal 10 deterioração e, consequentemente, pelo declínio da disciplina que lhes é necessária, e que constitui mesmo a sua razão de ser.” (SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 2a ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, P 482.)

Sabe-se que esse regime militar foi sentido principalmente nas grandes capitais, onde tanto a repressão quanto a resistência ganharam mais visibilidade. Mas como o regime se fez sentir nos pequenos municípios brasileiros? A escolha do tema desta monografia resultou de uma pesquisa do Programa de Iniciação Científica, com financiamento da FUNCAP, intitulado Fontes para a história da ditadura civil-militar no noroeste cearense. Na coleta de documentos percebi que a ditadura teve repercussões em Ipu e que o assunto merecia ser investigado, já que apesar de bastante discutido na atualidade, o tema do golpe de 64 ainda está muito restrito as grandes capitais, não há na historiografia da cidade de Ipu nenhuma produção sobre o tema, daí a importância desse trabalho.

Desvendar o que ocorria na política local durante esse período, é um trabalho de extrema importância para a compreensão da história política deste município, atentando para os grupos que estavam no poder e se eram contra ou a favor do regime. Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar as repercussões do golpe de 1964 na sociedade ipuense, identificando as elites políticas locais, suas relações com o regime e as repercussões na cidade. O recorte temporal, 1964-74, foi definido pelo período de instalação do novo regime, bem como, a hegemonia de Rocha Aguiar no poder municipal.

A pesquisa teve início com a catalogação e leitura das atas da Câmara Municipal de Ipu, com o intuito de entender as organizações e conflitos vivenciados nas disputas políticas daquele período. Infelizmente as atas referentes aos anos de 1964 a 1970 foram extraviadas, restando apenas quatro anos de documentos disponíveis.

Seguiu-se com a catalogação e leitura dos jornais, tais como: Jornal Ipu Grande, periódico ipuense contemporâneo, produzido por historiadores que discutem temas de história da cidade e o jornal Ipu em Jornal criado em 1958, pausado as véspera do golpe, voltando a circular na cidade somente depois do período.

Também trabalhou-se com as fontes orais, ouvindo historiadores locais, lideranças políticas, memorialistas e pessoas comuns que se dispuseram a expor suas memórias sobre o período. Ressalta-se a inestimável contribuição do memorialista Prof. Melo, que além das suas memórias disponibilizou seu acervo rico em imagens e outros materiais fundamentais a execução desse projeto.

O referencial teórico utilizado na pesquisa é a nova história política, que de acordo com René Remond, ao se ocupar do estudo da participação na vida política e dos processos eleitorais, integra todos os atores, mesmo os mais modestos, no jogo político, perdendo assim seu caráter elitista e individualista e elegendo as massas como seu objeto central. Seu interesse está voltado para a pluralidade dos ritmos que combina o instantâneo e o extremamente lento. (Apud FERREIRA, M. de M. A nova “velha história”: o retorno da história política. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, 1992/10. p. 4.)

A pesquisa está dividida em dois capítulos, no primeiro, trabalha-se a história política local fazendo conexão com a política regional e nacional, com o intuito de compreender as alianças que foram formadas entre os chamados “Coronéis da Ditadura”. Descreve-se como aconteciam as sessões da Câmara municipal de Ipu, as obras executadas no município no período pesquisado, além de discorrer sobre a participação feminina na política, fato marcante naquele período.

No segundo capítulo procura-se identificar o autoritarismo no poder local, a repercussão das práticas repressivas e de resistência na esfera local. Destaca-se as práticas de torturas, com a história de vida de ex-militantes ipuenses, como também as memórias da população acerca desses episódios e sua relação com o tempo presente.
Portanto, escrever sobre as repercussões da ditadura em Ipu é contribuir para a historiografia do regime de exceção no Brasil, e para história política cearense que ainda tem muito a ser desvendada. 

CAPÍTULO 1 - O GOLPE E A CIDADE.
O objetivo deste capítulo é identificar as elites políticas que detinham o poder local nas décadas de 1960-70, suas relações como o novo regime, concretizadas em investimentos públicos e a participação feminina na política.

A cidade de Ipu conquistou sua emancipação política somente no dia 26 de agosto de 1840, nesse ano foi elevada a condição de vila com o nome de Vila Nova do Ipu Grande. Para o historiador Antônio Vitorino isso teve muita importância política, visto que Ipu passaria a ser sede da Câmara Municipal, órgão responsável pela administração do município que foi instalada em 1842. Somente em 25 de novembro do ano de 1885 foi elevada a categoria de cidade. (Site: http://amoscanomeupao.blogspot.com.br. Acesso em 05/09/2015.)
Localizada na região noroeste do Ceará, fica a aproximadamente 250km da capital, Fortaleza, e possui uma população aproximada de 42.000 habitantes. (IBGE, 2010. Acesso em 15 de julho de 2015.)

Nas décadas de 60 e 70, com uma população estimada em 30.000 pessoas, (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 04 de setembro de 2015.) Ipu foi palco de muitos conflitos políticos, reflexo do golpe civil-militar instalado no país em 1964. Relatos de um ipuense, estudante do curso preparatório para oficiais da reserva não remunerada R2 em Fortaleza, as vésperas do golpe, dão conta do que viria em 1964:

“Em Fortaleza eu peguei o preâmbulo da ditadura militar que estourou em 64. Quando estava em 63 já existia aquele preâmbulo de preparação, sempre o quartel estava de alerta. Quando o quartel estava de alerta ninguém consegue tirar nem os coturnos a gente só faz afrouxar e repousar ali um pouquinho. Porque no tocar da corneta é alarme geral dentro do quartel para todo mundo está a ponto de briga, já de atirar, matar, esfolar e fazer o diabo se for preciso. Lamentavelmente a gente tem que dizer isso.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 20 de setembro de 2014.)
O golpe militar instalado no Brasil em 1964 deixou marcas profundas na sociedade brasileira. “O Exército que no dia 31 dormiria janguista, acordaria revolucionário, (...) Começara, de fato, um gigantesco Dia da Mentira, não só pelo que nele se mentiu, mas sobretudo pelo que dele se falseou.” (GASPARI, Elio. As ilusões armadas. A Ditadura Envergonhada. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p.96) Não há dúvidas que esse período foi de intensas transformações no país, intitulado pelos seus promotores de “revolução”, dividindo opiniões entre positivas e negativas, mas, com o passar dos acontecimentos foi se percebendo quão cruel foram esses vinte e um anos que os militares tiveram no poder exercendo uma ditadura:

“Durante os 21 anos de duração do ciclo militar, sucederam-se períodos de maior ou menor racionalidade no trato de questões políticas. Foram duas décadas de avanços e recuos, ou, como se dizia na época, “aberturas” e “endurecimento”. De 1964 a 1967 o presidente Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporária. De 1967 a 1968 o marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um sistema constitucional, e de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escancaradamente ditatorial. De 1974 a 1979, debaixo da mesma ditadura, dela começou-se a sair.” (GASPARI, 2014, p131.)

Para Marcos Napolitano o golpe civil-militar de 1964, reunindo autoritários e liberais, tinha dois objetivos básicos, que ele resumidamente descreve:

“O primeiro objetivo era destruir uma elite política e intelectual reformista cada vez mais encastelada no Estado. As cassações e os inquéritos policial-militares (IPM) foram os instrumentos utilizados para tal fim. Um rápido exame nas listas de cassados demonstra o alvo do autoritarismo institucional do regime: lideranças políticas, lideranças sindicais e lideranças militares (da alta e da baixa patente) comprometidas com o reformismo trabalhista. Entre os intelectuais, os ideólogos e quadros técnicos do regime deposto foram cassados, enquanto os artistas e escritores de esquerda foram preservados em um primeiro momento, embora constantemente achacados pelo furor investigativo dos IPM, comandados por coronéis da linha dura.” (NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p.57.)

De fato foi isso mesmo que eles ditatorialmente proporcionaram, os governos não querem pessoas instruídas, pois, a educação possibilita uma mente mais aberta para lutar por melhorias políticas, assim como a concretização de nossos direitos sociais e liberdade, que foram massacrados pela ditadura com seu poder autoritário. O segundo objetivo, para essas atrocidades, de acordo com o autor, era destruir na prática os movimentos sociais, ou seja, nossa cultura, que ficou supervisionada pelos “agentes da ditadura”, tão presentes em todo o Brasil, inclusive no interior cearense:

“O segundo objetivo, não menos importante, era cortar os eventuais laços organizativos entre essa elite policial intelectual e os movimentos sociais de base popular, como o movimento operário e camponês. Aliás, para eles, não foi preciso esperar o AI-5 para desencadear uma forte repressão policial e política. Para os operários já havia a CLT, talvez a única herança política de tradição getulista que não foi questionada pelos novos donos do poder. A partir dela, diretorias eleitas eram destituídas e sindicatos eram postos sob intervenção federal do Ministério do Trabalho. Para os camponeses, havia a violência privada dos coronéis dos rincões do Brasil, apoiados pelos seus jagunços particulares e pelas polícias estaduais.” (NAPOLITANO, 2014, p.57.)

O pior de tudo isso é que se utilizaram da lei para realizarem ações antidemocráticas, que teve sua efetivação com a instalação dos Atos Institucionais, dos quais o pior de todos foi o AI-5. Vale ressaltar que os Atos Institucionais foram meios que o regime militar se utilizou para punir quem fosse contrário ao governo, advertindo que tudo era feito em nome da Lei antidemocrática que eles mesmos criaram:

“O AI-5 marcou também uma ruptura com a dinâmica de mobilização popular que ocupava as ruas de forma crescente desde 1966, capitaneada pelo movimento estudantil. Mais do que isso, teve um efeito de suspensão do tempo histórico, como uma espécie de apocalipse político-cultural que atingiria em cheio as classes médias, relativamente poupadas da repressão que se abatera no país com o golpe de 1964. A partir de então, estudantes, artistas e intelectuais que ainda ocupavam uma esfera pública para protestar contra o regime passariam a conhecer a perseguição, antes reservada aos líderes populares, sindicais e quadros políticos da esquerda. O fim de um mundo e o começo de outro, num processo histórico de alguns meses que pareciam concentrar todas as utopias e os dilemas do século XX. O Brasil não sairia incólume desta roda-viva da história.” (NAPOLITANO, 2014, p.74.)

O regime instalado no país repercutiu na política de muitos estados e municípios brasileiros, dentre eles o Ipu, que ao longo de toda a ditadura teve seus prefeitos aliados aos coronéis que estiveram na chefia do Estado do Ceará:

“Na quarta República com o surgimento da ditadura militar encontramos a figura do Senador Paulo Sarasate, que pela amizade nutrida com o presidente militar - Castelo Branco - influenciou a política cearense de 1964 até o surgimento dos coronéis Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra.” (MOTA, Aroldo. História política do Ceará (1966-1987). Rio-São Paulo-Fortaleza: ABC Editora:2008. p.14 e 15.)

Um pacto entre os coronéis cearenses permitiu que ocorresse um revezamento nos cargos políticos, isso possibilitou a permanência desses líderes por longo período na direção do Estado do Ceará, tornando quase inexistente a ação de uma oposição ao regime ditatorial:

“Virgílio, político hábil, engendrou um acordo com Adauto, que já liderava um grupo de deputados e com o candidato do sistema, César Cals, “formaram a política dos coronéis”, que dominou o Estado até a exaustão do Regime Militar. Essa política tinha duas táticas: a) união na cúpula e b) divisão nas bases. Com isto não sobrava espaço para o MDB ou o surgimento de novas lideranças.” (14 MOTA, 2008, p.57.)

De acordo com a historiadora Edvanir Silveira, no pacto dos coronéis, a ARENA dividia-se em três sublegendas, cada sublegenda liderada por um dos coronéis, que constituíram a força política hegemônica no estado, revezando-se no poder de acordo com as alianças que cada coronel estabelecia com o poder federal: ora governo, ora deputado, ora senador. (14 MOTA, 2008, p.57.)

O coronel Virgílio Távora já era uma liderança conhecida no Ipu quando participou da campanha presidencial de Jânio Quadros. Acompanhado dos deputados Moacir Aguiar, Hildo Furtado Leite e Aquiles Peres Mota, em 1960 registraram presença na cidade, onde foi recebido no aeroporto Plínio Pompeu, pelo prefeito municipal, Deputado Abdoral Timbó, Cel. Abdias Martins, e algumas pessoas, depois vieram em caravana para a cidade de Ipu, conforme notícia na imprensa local: “Precisamente às 8 horas a caravana dirigiu-se para o “Cine Teatro Moderno” que se achava literalmente lotado, onde o Cel. Virgílio Távora fez longa explanação a respeito da candidatura Jânio Quadros, ressaltando a sua penetração em todos os quadrantes do País.” (Ipu em Jornal, N0 30, ANO III, IPU-CEARÁ, agosto de 1960.)

1.1 A política municipal.
Na política municipal de Ipu há claros exemplos de aliança com a ditatura, embora também haja casos de repressão, o que significa que o apoio ao regime não foi unânime. Os prefeitos que ocuparam o executivo municipal pós-golpe de 64 eram todos filiados a ARENA, que era dividida em Arena I e Arena II, portanto vinculados ao regime ditatorial. Nenhum prefeito filiado ao MDB conseguiu se eleger. O MDB durante todo o período militar conseguiu eleger somente dois vereadores em 1966, Antônio Olímpio da Costa e Júlio Costa Moraes.

De 1964 à 1974 que é o recorte temporal da pesquisa, dois grupos disputavam o poder local, Moraes, filiado a Arena I, liderado pelo Padre Francisco Ferreira de Moraes. Natural de Crateús, Ceará, assumiu a paróquia de Ipu em 1947, permanecendo por mais de cinco décadas até sua morte em 2009. Padre de grande influência, exerceu “poder” religioso e político na cidade por muitos anos. E, Rocha Aguiar, filiado a Arena II, tendo como líder Francisco Rocha Aguiar. Natural de Camocim, Ceará, médico, chegou a Ipu em 1952 para exercer trabalhos na Organização Sanitária - Departamento de Endemias Rurais (DNERU). Também muito influente, seu domínio político iniciado em 1966 duraria até 1976, quando novamente o poder volta para a agremiação dos Moraes, com a eleição de Milton Pereira, aliado do padre. (Blog e acervo Professor Melo.)

Percebemos claramente que tanto o partido de Rocha quanto o partido de Moraes eram a favor da ditadura, porém surge uma inquietação, será que a Igreja estava do lado dos ditadores? Segundo a historiadora Edvanir Maia da Silveira, é muito contraditório classificar a Igreja como a favor ou contra, ela, a instituição religiosa, pode concordar parcialmente em alguns casos, como o de manter o pensamento tradicional, e por outro lado ser totalmente contra as repressões físicas:

“À primeira vista, parece contraditório citar a Igreja tanto no grupo dos aliados como dos opositores do regime; o que realmente a classifica é o fato de ser paradoxal e ambígua a posição da Igreja em relação à ditadura, porque havia vários grupos dentro da instituição, uns a favor e outros contra o golpe, e os mesmos setores que apoiaram o golpe em 1964 mudaram de postura a partir de 1968, entrando no time dos opositores, por razões diversas.” (SILVEIRA, Edvanir Maia da. Três décadas de Prado e Barreto (1963-96): a política municipal em Sobral-CE, do golpe militar à nova República, 2013. 218f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. (org.). A história próxima de nós. Sobral-ce: EGUS, 2014.200f.p.73)
O fato é que a Igreja Católica na maioria das vezes foi contra as ideias comunistas, julgando-os ateus, contrários ao cristianismo, mas durante a ditadura ela mesma, a igreja é acusada de subversão:

“De acordo com a historiografia sobre o tema, desde fins dos anos de 1950/60 a Igreja Católica se aproximou dos movimentos dos trabalhadores rurais e urbanos, buscando neutralizar a influência comunista ou das esquerdas em geral junto aos trabalhadores. Com o golpe, a situação alterou-se e esses setores da Igreja passaram a ser rotulados de comunistas.” (SILVEIRA, 2013, P.74)

Mas, afinal, a população de Ipu tinha conhecimento do que acontecia no país? O memorialista professor Melo relata que ele tinha conhecimento do que estava acontecendo, pois o mesmo já vinha se preparando para isso, porém a população ipuense a princípio pouco estava sabendo e não entendia essa “revolução” por qual passava o país e se repercutia na cidade. Depois de algumas semanas pessoas mais esclarecidas passaram a ter um pouco mais de conhecimento através do rádio, importante meio de comunicação que tinha na cidade, e mais tarde, por meio da TV, com a instalação de televisores públicos pelo prefeito Rocha Aguiar.
A carreira política de Rocha Aguiar, em Ipu, teve início em 1958 quando se candidatou a prefeito, perdendo para seu concorrente Zeferino Capistrano de Castro, com uma diferença 19de 320 votos.(Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Secretaria de Informática. Coordenação de estatística e Informações eleitorais. Seção de Estatísticas. Eleições Municipais de 03 de outubro de 1958.Dados Estatísticos no Brasil. www.tre-ce.gov.br. Acesso em 15 de junho de 2015.) A derrota nas urnas não o fez desistir vindo a se candidatar novamente em 1966, quando venceu Francisco Torres Veras. Rocha Aguiar conseguiu 3.166 votos e Torres Vera 2.516. (21 Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Secretaria de Informática. Coordenação de estatística e Informações eleitorais. Seção de Estatísticas. Eleições Municipais de 15 de novembro de 1966, 1970, 1972, 1976, 1982, 1988 e 1992 – Município de Ipu. www.tre-ce.gov.br. Acesso em 15 de junho de 2015.)

Nas eleições realizadas em 15 de novembro de 1966 se candidataram para prefeito e vice-prefeito respectivamente, pela ARENA 1, Francisco Torres Veras e Abdias Martins de Sousa Torres. Pela ARENA 2 concorreram o prefeito Francisco Rocha Aguiar e seu vice Francisco Pinto de Oliveira, conseguiram se eleger com uma diferença de 650 votos. Dos 6.200 votantes, os candidatos da ARENA 1 obtiveram 2.516, contra 3.166 da ARENA 2. (Obs:Quadro da Eleição de 1966 na monografia na integra)
Nesse período, dos vereadores eleitos, 5 foram da oposição a Rocha, e 4 da situação, o MDB conseguiu eleger somente 2 vereadores, os únicos eleitos que o partido do MDB conseguiu durante todo o período militar, conforme quadro abaixo. Deu-se início então a liderança de Rocha Aguiar que duraria uma década.
Os senadores mais votados nessas eleições de 1966 foram Menezes Pimentel e Paulo Sarasate, para Deputado Federal o eleitorado de Ipu votou em Virgílio Távora e para Deputado Estadual os mais votados foram José Martins Timbó e Murilo Rocha Aguiar, irmão de Dr. Rocha.
O governo de Rocha foi marcado por diversos investimentos em infraestrutura do município, construiu prédios e escolas, a Escola Murilo Rocha Aguiar recebeu o nome de seu irmão deputado estadual, a instituição competia com o Patronato Souza Carvalho, dirigida pelo seu inimigo político padre Moraes, escola com perfil religioso onde só estudava os filhos de famílias da elite:

“A facção aliada a Igreja, era o grande perdedor com a criação do Murilo Aguiar. Juntas, uniram forças para “fechar logo aquela merda”: “Quem quiser estudar que nos procure no Patronato ou no Ginásio”, diziam. Mas a pressão sobre eles foi tão grande que nem Milton nem Flávio tiveram forças para desativar o Murilo Aguiar. Mas, as ameaças nunca pararam de existir.” (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)

Ainda no que se refere a educação, Rocha implantou o MOBRAL (alfabetização de adultos). Construiu também postos de saúde, posto telefônico, um novo matadouro público, reformou o mercado público, estradas, recuperou esgotos, instalou energia e abastecimento de água, tais obras eram possíveis graças a sua filiação ao partido do governo, que viabilizava a vinda de recursos estaduais e federais para o município. Mas o assistencialismo foi o principal instrumento de popularidade de Rocha Aguiar, visto como candidato do “povão”. Mesmo sendo prefeito continuou exercendo sua profissão de médico, mantinha um consultório, onde segundo relatos, atendia a população de graça, além de distribuir remédios gratuitos para a população mais carente. Segundo relatos, se encontrasse um eleitor na rua e o mesmo tivesse doente, precisando de um remédio e não tivesse papel para o Doutor Rocha transcrever, ele escrevia no braço do paciente. Ou seja, soube conquistar a confiança dos populares, o que irritava seus opositores locais. (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 06 de junho de 2015)

“A máquina da prefeitura virou um feudo privado da família Aguiar. Truculento, assistencialista e prepotente, querendo “ir à forras” com as elites, Rocha era um candidato “do povão”, e sempre desprezou as “famílias tradicionais” do Ipu. Num ato de provocação a estas elites, o Bode Louro, assim que assumiu o poder em 1967, mandou queimar toda a documentação da velha Câmara do Ipu (com papéis do tempo em que a sede era da Vila era Campo Grande, em 1791, até aquele ano). Atônitas, as elites “sanguessugas” assistiram a este crime sem nada poderem fazer (este foi o maior crime já praticado contra a nossa memória! Denunciá-lo é garantir que ele nunca mais se repita!).” (24 Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)
 Sobre as atas, ainda encontramos as do ano de 1953, embora as de 1964 a 1970, período da administração de Aguiar tenham desaparecido, o que veio a dificultar em muito a pesquisa, pois é exatamente o ano que aconteceu o golpe, analisar esses documentos seria de extrema importância para entender como os políticos locais perceberam o golpe.

Professor Melo classifica o governo de Rocha Aguiar como um dos melhores da cidade:

“O Dr. Rocha pra mim foi um dos maiores administradores e líderes políticos de Ipu. Ele perdeu a liderança que tinha aqui no Ipu porque ele brincou, ele se achou, foi eleito quatro anos, teve uma eleição tampão, chamada na época em 1970 que o padre Moraes foi candidato e perdeu.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03 de junho de 2015.)

Quanto ao Padre Moraes, adversário político de Rocha Aguiar, ele considera a pior liderança:

“O Padre Moraes foi o pior atraso que o Ipu já teve. Ele atrasou a Igreja e atrasou o desenvolvimento sócio cultural, econômico e educacional de Ipu. (...) Ele usava muito do Sagrado para anarquizar as pessoas. (..) Ele dizia que era candidato. Vocês não podem votar em forasteiro (...) Vocês tem que ver o Ipu e as pessoas que vivem fazendo pelo Ipu como eu. (..) Independente de ser candidato ele ia aos comícios e falava. (...)Todo mundo tinha medo do grito dele” .(Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03 de junho de 2015.)

Mas, não é unânime a opinião de Melo. Há quem defenda que apesar de não ter sido prefeito, Moraes foi fundamental na execução de obras na cidade, como o historiador Ridlav:

“Nos períodos que antecede e até mesmo durante a ditadura também encontraremos alguns fatos onde a Igreja se mostra presente, como O dia do Senhor, movimento no qual através de suas pastorais a Igreja distribuía alimentos e roupas para as pessoas perseguidas pelo governo do regime militar. Trazendo para o espaço que contemplo neste trabalho, a cidade de Ipu, também foi alvo de grandes projetos heurísticos no qual a Igreja e seu pároco da época, Francisco Ferreira de Moraes através de acordos políticos, trouxe para a cidade algumas construções como é o caso do Patronato Sousa Carvalho, colégio de ordem religiosa, erigiu escolas, capelas, praças, orfanatos e hospitais no qual um leva seu nome como reconhecimento pelas obras prestadas a comunidade. Monsenhor Moraes soube ocupar cada minuto do seu tempo na ação de evangelizar seus paroquianos, usava o discurso e o poder dos sermões durante as missas para incutir nos cidadãos certos valores, o que nos leva a problematizar que a Igreja, direta ou indiretamente, influiu ativamente no espaço e na vida cotidiana da cidade e dos moradores de Ipu.” (ABREU, Ridlav Augusto Ferreira de. Igreja e Cotidiano em Ipu-Ce (1930-1960): como e com que estratégias a Igreja Católica influiu na vida dos moradores de Ipu? P.5)

Melo rebate a defesa do historiador afirmando que a maioria das obras que tem o padre como idealizador foram financiadas pela Fundação Sousa Carvalho. Ele afirma que a referida fundação fez a doação dos seguintes aparatos: uma gráfica, as fábricas de Mosaicos, e de sapatos, além de uma serraria, tudo destinado a ajudar a sociedade principalmente na educação, mas, o Padre Moraes teria vendido tudo. Para o professor, se todos os recursos arrecadados fossem devidamente utilizados, o Ipu teria muito mais obras executadas. (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03 de junho de 2015.)

“Durante o seu Paroquiado ele nunca pagou sequer nenhum emolumento à diocese. Os leilões da Festa de São Sebastião se acabaram por que quando ia chegando o fim da festa, a sua amasia chegava e espalhava a todo vapor que tinha vindo buscar o dinheiro do Leilão. A maternidade e o Posto de Puericultura foram construídos com recursos conseguidos pelo então Deputado Gentil Barreira e o Dr. Chico Araújo, nada dele. Fez discursos inflamados na igreja atacando pessoas gradas de nossa cidade, afastando assim muitos da Igreja, inclusive eu.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 04 de setembro de 2015.)

Outros depoentes acrescentam que a baixa popularidade de Moraes deve-se ao fato do padre ser uma pessoa muito arrogante e não gostar de gente pobre, esse seria um dos motivos dele ter perdido as eleições. Moraes era um homem muito tradicional e muitas vezes tratava mal os fies durante a missa, retirava pessoas da fila da comunhão, não gostava de maçom, era moralista e muitos afirmam que ele não praticava o que pregava; são muitos os relatos de que o padre tinha uma amásia com quem tinha um filho, ou seja, Moraes guardava poucas qualidades esperadas para uma liderança política naquela sociedade.
Outro fato lembrado pelos depoentes é de um quadro exposto acima do local onde se encontrava a pia batismal, que elencava os critérios para ser padrinho ou madrinha. Muitos achavam isso desnecessário, mas o objeto só foi retirado quando outro padre assumiu a paróquia de Ipu.

Em 1970 os rochistas para continuar na liderança do poder municipal lançam para prefeito Antonio Ximenes Veras, natural do município de Ipu. Antes de ingressar na política tinha trabalhado como delegado de polícia. Preocupado com a popularidade de Rocha, o grupo de Moraes, temendo perder mais uma vez as eleições, se utiliza da religião como instrumento político, para combater o “estrangeiro” lança o próprio padre candidato, como se ele fosse nativo:

“Sem forças para enfrentar a monstruosa manipulação de Rocha Aguiar, as elites corruptas “fizeram a cabeça” do velho Monsenhor Moraes para encabeçar a chapa contra o “intruso” “Bode Loiro”. Do alto de sua tribuna transformada em palanque o velho Moraes com sua voz trovejante, apelidado agora de “Zorro” – por causa de sua batina preta, que parecia com a capa deste herói mexicano – bradava contra o “governo opressor” do oligarca estrangeiro, e apelava ao povo em nome da “decência” para elegerem novamente alguém “da cidade” para nos governar: “quem votar no Rocha vai ‘pretim’ pro inferno!”, dizia o eleitor do padre entusiasmado.” (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)

A compra de votos era prática muito comum nesse período, principalmente entre as classes populares, que se vendia por valores quase insignificantes, como relata o historiador Raimundo Alves:

“Meu pai, embora trabalhasse fazendo dentadura a troco de votos para as duas facções nutria sinceras simpatias por Rocha Aguiar e seus aliados; desde que nós havíamos migrado das brenhas da Ramada, e Guaraciaba, para Ipu, Rocha Aguiar, velho médico oriundo da oligarquia camocinense e que caiu de “para-quedas” no Ipu nos anos 1960, havia dado a mão a minha mãe, com remédios, consultas gratuitas e muito assistencialismo barato (foi desta forma que o esperto “Dotô Rocha” fez seu nome em nossa cidade).” (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)

O padre Moraes, apesar do aparato religioso, perdeu nas urnas por mais de 700 votos. O resultado do pleito surpreendeu o eleitorado de Moraes, e foram muitos os rumores de fraude eleitoral, embora a denúncia só ocorresse tardiamente. Antônio Ximenes Veras assume a prefeitura, porém não conclui o mandato, faltando seis meses renuncia e seu vice Antônio Pinto de Oliveira assume até a posse da primeira mulher prefeita de Ipu.
Nessas eleições de 1970, conhecida popularmente como eleição tampão, os eleitos só iriam passar dois anos à frente do poder público, estavam aptos a votarem no município de Ipu 13.995 eleitores, porém só comparecem ao pleito 8.147 votantes, uma abstenção de 5.848 eleitores. Pela ARENA 1 estavam concorrendo a prefeito e vice-prefeito respectivamente, Antônio Ximenes Veras e Antônio Pinto de Oliveira, obtiveram 4.090 votos contra os concorrentes da ARENA 2, Padre Francisco Ferreira de Moraes e seu vice Zeferino Capistrano de Castro, ex-prefeito que tinha derrotado Rocha Aguiar em 1958. Tiveram apenas 3.413 votos. Foram anulados 325 votos e 319 pessoas votaram em branco. (Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Secretaria de Informática. Coordenação de estatística e Informações eleitorais. Seção de Estatísticas. Eleições Municipais de 15 de novembro de 1966, 1970, 1972, 1976, 1982, 1988 e 1992 – Município de Ipu. www.tre-ce.gov.br. Acesso em 15 de junho de 2015.)
Dos onze vereadores eleitos, a ARENA 1, partido de Rocha Aguiar teve dez vereadores, ou seja, o partido de Moraes, a Arena 2, só conseguiu eleger um vereador, quase não tiveram representação na câmara municipal naquele período. (Obs: Quadro da Eleição de 1970 na monografia na integra)

O deputado mais votado em Ipu nesse período foi o sobrinho do Rocha, Felinto Elísio B. Aguiar que conseguiu 1.781 votos, pouco votos a mais que seu concorrente na cidade, Aquiles Peres Mota, eleito com 1.718 votos. Para senador o candidato mais votado foi Virgílio Távora. (Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Secretaria de Informática. Coordenação de estatística e Informações eleitorais. Seção de Estatísticas. Eleições Municipais de 15 de novembro de 1966, 1970, 1972, 1976, 1982, 1988 e 1992 – Município de Ipu. www.tre-ce.gov.br. Acesso em 15 de junho de 2015.) Nos dois anos de mandato Antônio Ximenes Veras e Francisco Pinto de Oliveira deram continuidade ao programa político de Rocha Aguiar.

As atas da Câmara Municipal de Ipu do período de 1970 a 1974 foram os documentos mais explorados para o entendimento do contexto em análise. As sessões da câmara nem sempre eram tranquilas, ocorriam muitos atritos entre adversários políticos. Em setembro de 1971, por exemplo, a pauta do dia era a suposta fraude que teria acontecido na apuração de votos da eleição disputada por Francisco Ferreira de Moraes e Francisco Ximenes Veras, aliado de Rocha Aguiar, que saiu vitorioso:

“Durante a sessão foi lido o seguinte ofício 81/71 enviado pelo Tribunal Eleitoral intimando os vereadores Francisco Alves de Araújo, José Alves de Araújo e Clóvis Costa Camilo, para prestarem depoimento sobre a denúncia feita pelos mesmos junto àquele Tribunal sobre fraude que teria se verificado nas últimas eleições.” (Ata da 4ª sessão ordinária do 2° período legislativo do exercício de 1971, realizada em 09 de setembro de 1971.)

O assunto continuou a ser discutido na sessão seguinte, agora com o direito de resposta dos vereadores aliados a Rocha Aguiar. Francisco das Chagas Torres pediu a palavra e falou contra a acusação de fraudes:

“Tão claro é o propósito dessas denúncias apesar da eleição ter se realizado em novembro do ano passado só agora em maio, depois de tantos meses, é que se lembram de bater as portas do Tribunal Regional Eleitoral, para denunciar tentativas de fraude que teriam ocorrido. Todo o povo de Ipu sabe que tais denúncias foram engendradas por chefes políticos fracassados e inconformados com a fragorosa derrota sofrida nas urnas; visando única e exclusivamente atingir a pessoa que tanto tem trabalhado pelo progresso de nossa terra e tais atitudes são frutos do ódio da inveja e da mentira.” (Ata da 6ª sessão ordinária do 2° período Legislativo, no exercício de 1971, realizada em 23 de setembro de 1971.)

Continuando sua fala, o vereador Francisco das Chagas Torres explicou ainda como foi feita a apuração:

“Prosseguindo a sua oração o vereador Chagas Torres diz que a apuração das urnas foi pública, assistidos por todos aqueles que se encontravam nesta casa, e nunca se ouviu falar em fraude ou tentativas, e lamento a leviandade do vereador José Alves de Araújo que diz ter assinado a tal denúncia por “ouvir dizer”, o que prova a sua irresponsabilidade.” (Ata da 6ª sessão ordinária do 2° período Legislativo, no exercício de 1971, realizada em 23 de setembro de 1971.)

Então, um dos vereadores da oposição que fizeram a denúncia pede a palavra e confirma que fez a denúncia por ouvir os comentários de fraude: “Prosseguindo o vereador José Alves de Araújo, que declara ter feito a denúncia sobre tentativas de fraude, junto ao Tribunal Eleitoral por “ouvir dizer”, por na realidade nada constar por ocasião da apuração do pleito.” (Ata da 6ª sessão ordinária do 2° período Legislativo, no exercício de 1971, realizada em 23 de setembro de 1971.)

Em entrevista, o Professor Melo, relatou que não ocorreram fraudes nas eleições. O mesmo diz que trabalhou na contagem dos votos que duravam cerca de três dias para serem concluídas, e que os votos brancos eram sim destinados para o grupo dos Rochistas, mas ele não considera isso uma fraude:

“O que houve foi o seguinte eu estava lá nessa junta apuradora. (...) o cara chegou com a urna e derramava a urna em cima da mesa, derramava os votos em cima da mesa. (...) De repente o Felinto Aguiar, que era parente do Dr. Rocha Aguiar, chegou lá e disse assim, rapaz esses votos em brancos tu vai botando para mim, que voto em branco pode ser contado, ai a fraude que eles acham que houve foi isso ai.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03/06/2015.)

Entretanto a suposta fraude nunca foi provada judicialmente. Outro assunto que foi destaque nessa mesma sessão do dia 23 de setembro de 1971 foi o descontentamento dos vereadores do grupo Rocha Aguiar referente a localização da sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipu, que estava funcionando na casa do ex-candidato a prefeito, ou seja, do Padre Moraes criador do Sindicato. Eles denunciavam e revoltavam-se com a situação, pois acreditavam que o padre político pudesse manipular politicamente as decisões do Sindicato:

“O vereador Francisco Pinto de Oliveira usou da tribuna para denunciar a politicagem perante do imóvel do Sindicato Rural dos Trabalhadores de Ipu, a começar pela localização de sua sede, instalada no interior da residência de um chefe político e ex-candidato derrotado. Apelou para as autoridades do Ministério do Trabalho, no sentido de sanar esses abusos.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03/06/2015. Felinto Aguiar citado por Melo era Dep. Estadual ligado a Rocha Aguiar.)
Realmente a denúncia procede, pude comprovar na Ata de instalação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipu, que descreve que os trabalhos foram realizados no salão paroquial, ou seja, na residência do Padre Moraes, no dia 27 de novembro do ano de 1971:

“Ata da instalação dos trabalhos da mesa coletora do Sindicato Rural de Ipú. Dos vinte e sete (27) dias do mês de novembro do ano de mil novecentos e setenta e um (1971), no salão paroquial desta cidade, às 15 (quinze) horas, obedecendo a convocação por edital, com a presença dos senhores: João Anastácio Martins, presidente da urna apuradora, Senhor Antônio Pedro Cordeiro, funcionando como mesário e o Senhor João Bosco de Paiva como fiscal, instalar-se esta mesa Coletora de votos para os trabalhos de eleição da Diretoria deste Sindicato para o triênio 1971/1974.” (Ata da Instalação do Sindicato Rural de Ipu. Realizada no dia 27 de novembro de 1971.)

No mesmo dia foi realizada outra sessão, agora para apuração dos votos e saber quem iria compor a diretoria da entidade, segundo as informações contidas no documento a votação ocorreram em três dias, ou seja, dia 25, 26, e 27 do ano de 1971 realizada no horário entre as 15:00 horas e 22:00 horas. Estavam destinados a votar os 68 associados, porém só comparecem 28. Vale ressaltar que só existia uma chapa concorrente nomeada de chapa azul, talvez por esse motivo muitos associados deixaram de comparecer ao pleito.

Não existiram votos brancos e nem nulos, ou seja, todos os 28 votos foram destinados a única chapa. Teve como presidente Abdias Martins de Souza Torres. Segundo informações de um depoente a Sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipu ficou aproximadamente uns dois anos funcionando na casa do padre Moraes, depois é que mudou-se para uma casa alugada. (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03 de junho de 2015.)

Vale ressaltar que as sessões registradas em atas são apenas aquelas em que aconteciam as votações e posse dos membros da diretoria, não encontrei nenhum outro fato registrado no livro de ata. Em 1975 quem se torna presidente é o próprio Padre Moraes, chapa única, ou seja, a chapa azul, o que revela a estreita relação entre o político e a entidade. Nesse período a associação já contava com 95 associados e já não funcionava mais no salão paroquial.
Outro tema na pauta das sessões do legislativo é o da ditadura. Não detectei muitas sessões relacionados ao tema já que as atas existentes são apenas a partir de 1970, mas uma referência ao regime aparece na Ata da Sétima Sessão de 31 de março do ano de 1972, em que se registra um debate em torno das comemorações do aniversário da “Revolução de março de 1964”: “E aqui na Câmara Municipal e como em todo o Brasil se comemorava também o Aniversário da Revolução de Março de 1964. Uma sessão de caráter extraordinário e solene”.( 42 Ata da 7ª sessão ordinária do 1° período Legislativo, no exercício de 1972, realizada em 31 de março de 1972.)

Várias autoridades e convidados estiveram presentes na Câmara Municipal, além dos vereadores locais, estava o vereador da cidade de Sobral Antônio Valdir Coelho, o prefeito Antônio Ximenes Veras, o vice-prefeito Antônio Pinto de Oliveira e o ex-prefeito Francisco Rocha Aguiar, além dos correspondentes dos jornais: Estado e Correio da Semana. Muitos dos presentes usaram da palavra: “o vereador Francisco Lisboa Lima ocupou a Tribuna em alusão ao dia Santo [Páscoa] e o aniversário da Revolução, ressaltando os dois paradoxos”, “o vereador Manoel Timóteo Passos apenas ressaltou a crise econômica de nosso meio”. Falou também a liderança política da cidade o ex-prefeito Rocha Aguiar e também o atual prefeito Antônio Ximenes Veras: “comemorou com todos o Aniversário da Revolução e manifestou aos seus munícipes votos de Feliz Páscoa.” (Ata da 7ª sessão ordinária do 1° período Legislativo, no exercício de 1972, realizada em 31 de março de 1972.)

O ano de 1972, também foi marcado por outras novidades. O aniversário do sesquicentenário do Brasil mobilizou vários municípios paras as festividades em torno dos 150 anos da Independência, essas festividades foram utilizadas pelos militares colocando D. Pedro I como um herói cívico, visto que até a urna com os restos mortais dele foi trazido de Portugal e foi levado por diversos estados como um símbolo.

“As comemorações dos 150 anos da Independência brasileira ocorreram sob o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici. Os festejos aconteceram em todos os estados e territórios brasileiros, culminando com a colocação dos despojos mortais de d. Pedro I no Monumento do Ipiranga, em São Paulo, (SP), em 7 de setembro de 1972.” (ALMEIDA, Adjovanes Thadeu Silva de. O regime militar em festa. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013. P.45.)

Para o autor do livro O Regime Militar em Festa, Adjovanes Thadeu Silva de Almeida “O golpe de 1964 pode ser vislumbrado como um segundo “Grito do Ipiranga”, uma vez que teria preservado a independência nacional diante da ação de “maus brasileiros.”45 Ou seja, assim como D. Pedro defendeu o Brasil de forças internas e externas em 1822, os militares livrariam o Brasil das forças dos terroristas, comunistas, subversivos, enfim de todos que representassem perigo, segundo o exército.
Na reunião da Câmara de Ipu, em 31 de agosto de 1972 o assunto principal foi o Projeto de Lei N0 326/72 que criava a Bandeira do Município em homenagem ao Sesquicentenário do Brasil. (Ata da 2ª sessão ordinária do 2° período Legislativo, no exercício de 1972, realizada em 31 de agosto de 1972.)

Na imagem abaixo podemos perceber a bandeira criada em 1972, que apresenta algumas diferenças em relação a utilizada atualmente no município, contudo ambas são usadas em vários eventos oficiais como se não houvesse distinção. A outra novidade do ano de 1972 foi a eleição da primeira mulher prefeita de Ipu. 30

1.2 - A Mulher na Política.  

Durante muito tempo no que se refere ao papel desempenhado socialmente, a mulher ficou “invisível” pela sociedade, vista como sexo frágil, que desempenhava somente o papel de esposa submissa ao marido, mãe, tendo como sua única função cuidar da família, não possuía autonomia e muito menos liberdade e direito de lutar por seus objetivos, seu trabalho era restrito ao espaço doméstico, isso tudo fruto de uma sociedade patriarcal e arcaica, que coloca o homem como sujeito dominante e a mulher como ser inferior.
Não foi só pela sociedade que as mulheres foram esquecidas, até 1980 dificilmente encontramos pesquisas voltadas para a participação das mulheres como agentes sociais, ou seja, elas estavam invisíveis também para a historiografia, que sempre colocava o homem como centro das narrativas históricas. Na política não era diferente, até conquistar seu direito de votar foram muitas lutas e manifestações, até inserissem no parlamento e terem um papel destinado ao bem social:

“Existem dois movimentos paralelos: o feminismo socialista, que discute a situação da mulher proletária, reivindica direitos trabalhistas e denuncia a exploração da mão-de-obra; e o feminismo liberal, que são mulheres intelectualizadas, com o objetivo específico de lutar pela emancipação feminina e pela conquista de direitos civis. Apesar de diferentes na origem e nos objetivos, esses dois movimentos têm uma direção comum: rediscutir os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres na sociedade de então.” (VAZ, Gislene de Almeida. A participação da mulher na política brasileira [manuscrito]: a lei de cotas / Gislene de Almeida Vaz. -- 2008. 65 f. P. 19)

Cabe aqui somente analisar os movimentos, em que os objetivos alcançados possibilitaram a inserção das mulheres em assuntos políticos. Os movimentos feministas iniciaram na década de 1960 juntamente com os movimentos políticos mas se intensificaram na década de 1970:
“A partir dos anos setenta, os movimentos feministas começam a se fortalecer surgindo organizações de luta pela democratização, atribuindo às mulheres uma importante base para alçar vôos maiores na política institucional, adquirindo maior intensidade a partir da retração do regime militar e da redemocratização do Brasil.” (48 Vaz, 2008, p. 14.)

Apesar desses movimentos ainda serem muito frágeis conseguiu incomodar o governo, principalmente os militares que viam nisso mais uma prática das esquerdas. Vale ressaltar que as mulheres só conseguiram, ainda que de forma desigual, o direito de voto em 1932, no governo de Getúlio Vargas. De lá para cá a luta se intensificou pela inserção feminina no parlamento e sua representação social.
Recentemente foi implantada a Lei de Cotas no Brasil, com a reserva 30% das vagas no parlamento para as mulheres, mas isso ainda não é o suficiente para acabar com as desigualdades de sexo em assuntos políticos. Hoje, esse assunto ainda causa muita polêmica e divide opiniões:

“A conquista da política de cotas por sexo em processos eleitoras faz parte de um processo mundial, como foi a conquista pelo sufrágio feminino. Estas políticas interferem nas hierarquias de poder e alteram as relações desiguais entre homens e mulheres. Estas políticas modificam e trazem a mulher para a cena política, contribuindo para unir o mundo de mulheres e homens.” (Vaz, 2008, P. 42.  )

Sem dúvida a participação feminina nos assuntos políticos e no parlamento é fundamental para que exista mais igualdade de gênero, mas mesmo depois dessas conquistas ainda existem muitas desigualdades entre os sexos, são necessárias ainda muitas lutas por mais espaços sociais e sobretudo para quebrar esse paradigma de que as mulheres são sexo frágil, e principalmente acabar com os preconceitos pelo qual muitas ainda sofrem. Não pode-se afirmar que a administração política melhorou com a inserção das mulheres em cargos públicos, mas essa participação mesmo que ainda pequena mostra que lentamente estamos caminhando rumo a democracia.
Em Ipu a presença feminina na política ocorreu na década de 1970. Dando continuidade ao governo de Rocha Aguiar, depois do mandato de Antônio Ximenes Veras é a vez da mulher atuar na política. Sem dúvida um fato marcante na história da cidade. Duas mulheres conseguiram eleger-se, a vereadora Maria da Conceição Viana Farias e a prefeita Maria Antonieta Rocha Aguiar, então mulher do ex-prefeito Rocha Aguiar que foi lançada por ele mesmo como candidata a prefeita nas eleições de 1972.
Maria Antonieta Rocha Aguiar nasceu no dia 30 de julho do ano de 1923, na cidade de Granja, município do Estado do Ceará, casou-se no dia 29 de março de 1939 com Rocha Aguiar e por influência dele ingressa na política conseguindo se eleger sem concorrentes. Pela primeira vez no Ipu acontece esses fatos marcantes, primeira vereadora, prefeita, e candidatura única.

Nesse período, 1972, a Câmara Municipal de Ipu contava com os vereadores abaixo relacionados, dentre eles a primeira vereadora mulher. Todos os vereadores eleitos eram da ARENA, nessas eleições não ficou dividido em Arena I e II, visto que era candidatura única, percebi ao longo da pesquisa que essas divisões eram somente para dividir o partido, pois hora Rocha era Arena I e hora Arena II, isso causou certa confusão no momento em que tentava identificar em qual partido os políticos de Ipu se encontravam. (Obs: Quadro da eleição de 1972, na monografia na integra)

Diferentemente de Aguiar, o mandato de Maria Antonieta não foi voltado para a realização de grandes obras, Rocha se acomodou em virtude de já está muito tempo a frente o poder municipal, dizemos Rocha porque o que se dizia na cidade era que quem governava era o próprio Aguiar, seu esposo, o que significa que neste caso, a presença de uma mulher na política não foi uma expressão de mudança, já que continuou a guardar as marcas da submissão.
A sessão da Câmara de 09 de agosto de 1973 dava indício das dificuldades da administração. A vereadora Maria da Conceição Viana protesta contra a crítica à gestão da prefeita:

“A 1a secretária- Maria da Conceição Viana fez um protesto às insinuações maldosas do deputado Aquiles Peres Mota, quando a cidade de Ipu foi visitada pelo senador Virgílio Távora. Falou ela que se convidada como representante da ala situacionista para a recepção que lhe foi oferecida, não deixaria de revidar com palavras abalizadoras e justas aos ataques mentirosos que foram dirigidos covardemente à nossa prefeita - Dona Maria Antonieta Rocha Aguiar.” (Ata da 1a Sessão do 2o Período Legislativo, realizada no dia 9 de agosto do ano 1973.)
A emissão de título de cidadania aos líderes do regime é outra forma de expressão da presença da ditadura na cidade. Para Silveira, os investimentos públicos nos interiores cearenses no período da ditadura quase sempre estão associados a aliança política com o regime ditatorial, representados pelos chamados governos dos coronéis. Em reconhecimento a essa parceria os líderes são homenageados com título de cidadania dos municípios assistidos, como foi o caso de Sobral, em que o governador Virgílio Távora e o presidente Castelo Branco foram contemplados. No Ipu, não foi diferente.
Na sessão da Câmara Municipal, do dia 25 de agosto de 1974, a pauta foi: os benefícios realizados pelo governador Cesar Cals, ressaltados pelo vereador Francisco das Chagas Torres, quando o mesmo fez a leitura do Projeto de Resolução N0 01/72, do dia 13 de abril de 1972, com a finalidade de outorgar o Título de Cidadão Ipuense ao Cel. Cesar Cals de Oliveira Filho, que também se encontrava presente na sessão. Vale ressaltar que já fazia dois anos que esse projeto tinha sido aprovado, assim como o projeto da construção do balneário, mas a entrega do referente título foi realizada somente em uma solenidade na Inauguração do Balneário da Bica do Ipu com a presença do Governador. Naquele momento o Balneário passou a receber o nome do governador. (51 Ata sessão ordinária do 2° período Legislativo, no exercício de 1974, realizada em 25 de agosto de 1974).

Nas eleições de 1976 o grupo Rocha lança para prefeito Francisco Pinto de Oliveira tendo como vice o ex-prefeito Antônio Ximenes Veras, enquanto o grupo Moraes indica Dr. Antônio Milton Pereira / Francisco Gomes Bezerra, desta vez a facção de Moraes vence com uma diferença de 146 votos. Mas, Rocha Aguiar não perde poder político, foi eleito deputado estadual para o período de 1979 à 1983. Em 1982 o deputado volta para cidade para disputar poder municipal, sem sucesso. Passa a morar em Fortaleza, onde permaneceu até sua morte em 2001.
Enfim, a liderança de Rocha Aguiar durou exatamente uma década, muitos o julga um dos melhores administradores da cidade, porém com todo esse prestígio não conseguiu evitar a perda de popularidade, o que é fundamental para manter-se no poder. Muitas obras foram realizadas em sua administração, sobretudo pela aliança com a ditadura. Seu alinhamento ao pensamento autoritário será discutido no capítulo que segue.

CAPÍTULO 2 – O AUTORITARISMO E O PODER LOCAL.

O autoritarismo no exercício do poder local no Brasil remonta ao período colonial. A violência e a intolerância sempre estiveram presentes nas disputas políticas da história dos nossos municípios, na cidade de Ipu não foi diferente. O objetivo deste capítulo é discutir as práticas autoritárias no exercício do poder local e a sua relação com a ditadura militar.
Ao longo das disputas eleitorais entre Rocha e Moraes, no Ipu, foram muito frequentes as agressões pessoais, de ambos os lados, em forma de apelidos, paródias entre outras. Na sua primeira candidatura, em 1958, Rocha Aguiar perdeu para Zeferino. Na nova disputa em 1962, sua derrota fora lembrada em forma de música:

“Quero ver gente roer quero ver rolar no chão,
Quero ver o doutorzinho apanhar na eleição.
Seu doutor tenha cuidado com a bomba da vitória.
A bomba do passado continua na história,
Aqui estourou malvado e botou doutor pra traz,
Zeferino e Abdoral estão no seu torrão natal.”
(Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08 de julho de 2015.)

Insatisfeito, Rocha Aguiar pediu ao folclorista Florival Vale para compor uma paródia em sua defesa: 

“Cuidado com Abdoral digo e posso dizer, pode crer,
O teu passado é negro só mesmo a história pode vê.
Abdoral é é é é um trapaceiro mó em tudo que se quer.
E vem no município enganar a humanidade,
E anda dizendo que é homem de verdade.”
(Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08 de julho de 2015.)

Os apelidos pejorativos também foram comuns nas campanhas eleitorais, Rocha Aguiar era o “Bode Louro”, padre Moraes, o “Zorro” e dona Antonieta não se livraria das chacotas:

“Uma malta de “babões” capturou uma jumenta, vestiu-a com roupas de chita, chapéu de palha, brincos, batom e colocou nela um cartaz escrito “Dona Etinha” (apelido da esposa de Rocha), solta com um rabo de latas preso a sua calda, o animal correu em desespero pelas ruas movimentadas da feira do Ipu num sábado festivo (era a humilhação pública da prefeita e esposa do Bode Louro). O mundo veio a baixo.” (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27. Depoimentos contam que o Dr. Rocha ficou furioso com o desrespeito com sua esposa.)

Não são poucos os exemplos de agressão de ambas as partes, o ataque ao patrimônio é um deles: relatos de que o consultório de Dr. Rocha foi apedrejado e a maternidade de Padre Moraes incendiada são frequentes, isso ocorrido durante a liderança política de Rocha. A transição do governo Rocha Aguiar para o de Milton Pereira em 1976 também foi marcado por diversos atos de violência sem punição, já que o autoritarismo reinava em todo Brasil naquele contexto: “Aquelas eleições foram particularmente violentas, com atentados à bomba nas residências de alguns eleitores “inimigos do regime”, escreve Raimundo Alves. (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27)57 Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.

O assistencialismo, a troca de favores, ainda reinante na política local, é outra forma de violência. Os pontos comerciais no Mercado Público Municipal até recentemente, eram distribuídos por “favores” políticos:
“Os pontos do mercado eram na realidade loteados pelos prefeitos (verdadeiros Patifes) a troco de votos na véspera das eleições, e as famílias interessadas recebiam um meio “honesto” (e precário) de ganhar a vida e viam seus rivais, da outra facção, serem corridos de lá com o “rabo entre as pernas”.” (Jornal Ipu Grande, Setembro,2010, Ano III, Nº 27.)

Raimundo Alves de Araújo relata como sua família foi covardemente tratada quando o grupo político que eles apoiavam perderam as eleições:

“Foi-me doloroso ver o ar de deboche de nossos vizinhos gritando “olha o fumo, João Cidade!”, e ver meu irmão juntar as poucas mercadorias de seu comércio numa carroceria de Rural: “ele tem que sair mesmo”. Para completar a “desforra”, uma turma de arruaceiros do outro lado (logicamente que com a conivência, mas sem a ordem expressa de seus patrões), montada num jipe verde-escuro e portando as bandeiras coloridas do partido dos Pereira-Mororó vitoriosos veio até a nossa residência e atirou uma dinamite na sala de entrada. Minha mãe, grávida de quatro meses, teve um susto tão grande que sofreu aborto imediato. Eu e mais três de meus irmão e alguns vizinhos (todas crianças de uns 5 anos) corríamos como baratas tontas, para nos esconder da ação daqueles vândalos covardes. Mas, os terroristas não levavam nada disso em consideração.” (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27)

O historiador, visto que estávamos no período da ditadura militar, relaciona os episódios ao regime militar:

“Os atentados à nas residências, as agressões físicas, as ameaças e as intimidações refletiam em menor escala o terror que o país inteiro vivia: estávamos na época da Ditadura bomba Militar, e a polícia e o judiciário nada faziam para promover a dignidade e a cidadania de nossa gente. (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.

Outras formas de agressões e torturas também são relatadas pelo mesmo historiador:

“Homens temidos por sua truculência não iam presos. Se quisessem, podiam obrigar as pessoas a beber cachaça “a força” e se o sujeito reagisse, a família inteira do agressor caia em cima, como uma “caxota de abelhas”. “É gente de família”, diziam os policiais. “e com gente de família é melhor não se importar”. (59 Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)

A violência do regime fez muitos outros casos na cidade. De acordo com depoentes, o folclorista Florival Vale teve sua banca de jornal destruída, sob a suspeita de que lia e distribuía obras subversivas. A polícia concluiu que o crime foi coisa de gente desocupada e o caso foi esquecido. “Por ocasião das eleições, estas agressões ocorriam de ambas as partes e a violência praticada contra pessoas comuns era tolerada pelo regime militar como “coisa natural” e fazendo parte do “jogo democrático”. (Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.)

E mais uma vez as paródias entravam em cena. Florival, agora contra o governo de Dr. Rocha, mais a frente entenderemos porque, faz uma paródia baseado na música do Jaime do Pandeiro.
Como é que pode mim diga direito,
Um diabo do bode pra nosso prefeito? (bis)
Virou sururu aqui no Ipu,
Quando o bode loiro se candidatou.
Quando foi na hora da grande aflição,
A maior rejeição o povo encontrou.
Chegou o eleito com o Mororó,
Sem pena e sem dó.
O pau é bem duro bateu e seguro,
Quebrando-lhe a âncora,
Derrubando a banca do velho sem futuro. (bis)
(Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08 de julho de 2015.)

O autoritarismo do regime militar encontrava terreno fértil para se reproduzir, conectando as esferas nacional, regional e local. E as práticas repressivas iriam começar com mais intensidade.  

2.1 práticas repressivas e resistências à ditadura

Ao longo da pesquisa constatei que apesar da aliança dos gestores locais ao regime ditatorial, não foi unânime a reação da sociedade, os estudantes e outros cidadãos ipuenses se colocaram contra o regime e sofreram dura repressão.
A União Estudantil Ipuense (U.E.I) foi um órgão criado pelos estudantes ipuenses que residiam em Fortaleza e que teve um importante papel na difusão da cultura na cidade, proporcionando alguns eventos em Ipu. Dentre os principais idealizadores Francisco de Assis Martins (Professor Melo), Luiz Pessoa Aragão, Nildomar Pontes, Dião Tavares, Gutemberg Castro, dentre outros. A associação foi fundada em 20 de abril de 1962, as vésperas do regime militar.
Esse grupo de estudantes promoveram diversos eventos na cidade, segundo Melo a UEI trouxe para palestrar no auditório da escola Patronato Sousa Carvalho, além de muitos outros, o Padre Arquimedes Bruno e o Bispo Dom Fragoso, figura religiosa que não escondia a sua oposição ao regime militar, que disse uma frase que teve muita repercussão na região quando chegou na cidade de Crateús: “Irei transformar Crateús na minha pequena Cuba”. Segundo Melo o bispo em sua palestra anarquizou os militares, falando mal da postura deles. Silveira lembra que em Sobral o bispo também era reverenciado pelos estudantes, sendo chamado para ministrar palestras.
Outro evento promovido pela entidade foi uma exposição de livros, um dos participantes do órgão Nildomar Pontes teve a ideia e o grupo colocou em prática. Foram até a feira do livro em Fortaleza e convidaram um livreiro, esquerdista, conhecido por Manuel Raposa, para trazer os livros para os salões do Grêmio Recreativo Ipuense, que além de serem expostos seriam vendidos, o mesmo aceitou, mas quando montaram a exposição pessoas ligadas ao prefeito Rocha Aguiar tentaram queimar os livros o que resultou no recolhimento dos livros e na desistência do dono em expor. O episódio foi marcado por agressões físicas entre os estudantes realizadores do evento e os filhos de doutor Rocha, além de um rapaz conhecido por Mauricio Xerez. (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 20/08/2014.)

2.2 As torturas
Prof. Melo, ainda nos seus relatos, discorre sobre a tortura. Ele diz que quando jovem estudava em Fortaleza e fazia curso para oficiais da reserva CPOR. Diante do bom desempenho do estudante ipuense, foi lhe oferecido um estágio como oficial do exército no vigésimo quinto batalhão de caçadores (25° BC) em Teresina-PI, para exercer a função de oficial estagiário na parte de intendência pelo período de dois anos, ao terminar o estágio volta para sua terra e não mais se envolve com o exército. Ele relata o seu testemunho da tortura naquele estado:

“Eles pagavam muito bem, mas a gente via muita miséria porque era exatamente dentro do período que a Ditadura estava ditando mesmo. Então eu vi muitas torturas tinha um tal de pau-de-arara lá que era a coisa mais cruel que podia existir, era uma roda assim como se fosse uma roleta né, eles pegavam uma pessoa abria os braços, amarrava os braços, lógico ficavam de braços abertos, as pernas também, o cara ficava assim e começava a rodar e começava açoitar. Eu cheguei a vê por acaso, eu ia entrando numa sala dessas, pensando que não tinha ninguém na sala e estava sendo realizado. Fiquei uns dez minutos vendo aquela miséria lá, me arrepiando de raiva e muita raiva, muita revolta por tá vendo aquilo.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora 20/08/2014.)

Para Lucicleide Cardoso foram várias as práticas de tortura utilizadas pelos militares, além do pau-de-arara descrita por Melo existiam outras: “(...) “cadeira do dragão”, tipo de técnica de tortura com choques elétricos que considera indescritível. (...) “roda de karatê”, que consiste em jogar o preso de um lado para o outro com bofetões, socos e pontapés.” (CARDOSO, Lucicleide Costa. Criações da memória: Defensores e Críticos da ditadura (1964-1985). Cruz das Almas/BA: UFRB, 2012. P.218.)

“Nas guerras sujas das ditaduras contra seus dissidentes, a tortura e o extermínio de prisioneiros provocam, inicialmente, o efeito contrário: o silêncio. Silêncio dos torturados que não querem ou não podem lembrar de situações de humilhação e dor extrema. Silêncio dos mortos e desaparecidos que já não podem narrar sua dor. Silêncio da sociedade que sabe, por medo ou conivência. Acreditavam os militares que o silêncio seria a primeira etapa do esquecimento, do apagamento da memória e da história das cisões que ameaçavam cindir a sociedade.” (NAPOLITANO, 2014 P.248.)

Cardoso reforça a ideia de Napolitanos: “O emprego da tortura revelou-se um sucesso para as Forças Armadas no combate a “esta guerra”, mas o “preço”, diante da História, foi altíssimo e funcionará sempre como um estigma no seio da sociedade brasileira.” (CARDOSO, 2012, P.111.)

A história de Florival Vale, insere a cidade de Ipu no cenário da repressão e da resistência. Florival Vale de Paiva, ipuense, nascido em 19 de julho do ano de 1943, autor das paródias citadas anteriormente que tornou-se adversário de Rocha, é a pessoa mais indicada para relatar a repressão do regime militar. Florival ainda muito jovem foi para o Rio de Janeiro no intuito de trabalhar, na época tinha 17 anos, mas havia conseguido alterar sua idade para 20 anos, para então poder viajar, não sabia ler nem escrever, também não imaginava o futuro que lhe esperava, os acontecimentos que iriam transformar sua vida.
No Rio de Janeiro foi trabalhar em uma banca de revista, isso despertou a vontade de aprender a ler e escrever. Segundo ele, começou lendo a Bíblia, mas não entendia o que lia, então passou a ler Literatura de Cordel e autores renomados como Jorge Amado e Raquel de Queiroz. Depois de certo tempo já estava lendo a literatura francesa de Alexandre Dumas. (Alexandre Dumas era um escritor francês.)

Antes mesmo do golpe, Florival já estava envolvido com o Comunismo Internacional: “Em 1960 eu me filiei ao Partido Comunista do Rio de Janeiro, aliciado pelo Sindicato de Distribuidores de Revistas e Jornal do Brasil, lá no Rio de Janeiro”. Ele acredita que o golpe foi fruto da influência dos Estados Unidos: “Eles queriam promover aqui no Brasil uma matança. Os americanos queriam promover no Brasil uma limpeza cultural”. (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Sobre isso afirma Cardoso, “(...) os acontecimentos políticos ocorridos durante o regime militar - voltado inteiramente para o capitalismo - foi apenas uma extensão do que estava acontecendo no mundo, dividido entre duas potências, Estados Unidos versus União Soviética, no contexto da Guerra Fria.” (CARDOSO, 2012, p.110.)

“Essas inteligências todas eram Comunistas. Porque o Comunismo é uma filosofia muito bonita é a igualdade social, a não exploração do homem pelo homem, aquilo que Jesus Cristo pregou. O Comunismo é isso! Eles falam que o Comunismo é comedor de criancinhas, é a Igreja Católica que inventa isso! A Igreja quem mais colaborou com essas perversidades, essas tiranias, com essas barbáries aqui no Brasil foi a Igreja. A Igreja não é flor que se cheire.” (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Florival relata como exercia seu trabalho de militante, depois de ter se filiado ao Partido Comunista no Rio de Janeiro e ter entrado para a Guerrilha Urbana:

“Fiz parte de várias ações lá, operações, assalto a bancos a gente chamava operações, porque nós tínhamos uns companheiros sediados lá no Bico do Papagaio, que hoje é o Estado de Tocantins, aquilo ali era o Baixo Araguaia, aonde tinha os posseiros, pessoas que iam do Ceará, da Paraíba, do Rio Grande do Norte. (...) realizava assaltos para mandar o dinheiro para o nosso povo que estava sediado lá no Araguaia.” (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

O comunista lembra que fez aproximadamente uns doze assaltos a bancos, que o mesmo prefere chamar de operações, essas operações eram realizadas na companhia de seus amigos, uma equipe de quatro pessoas armados de metralhadoras. Eles nomeavam a agremiação de MR-8, Movimento Revolucionário 8 de agosto, pois lembra a morte do Ernesto Che Chevara, o qual eles admiravam e tinham como líder. Em uma dessas operações ele foi baleado, pois o tiro que os policiais deram atravessaram o fusca que eles andavam e acabou lhe atingindo. Ele relata o fato ocorrido:

“Na hora da operação a gente já estava todo mundo dentro, o último a entrar era eu porque eu ia com a caixa de material, material que a gente chamava era o dinheiro, ai eles deram uma rajada de metralhadora no fusca, ainda furaram o fusca. Ele tinha blindagem nos pneus, que tinha placa de aço protegendo os pneus, por causa de balas, ai quando nós entramos que arrancamos né soltando grampinhos de 3 pontas, cada viatura que nos seguia furava o pneu. Nós éramos ajudados pela China Continental. Era a China que nos dava técnica e material, esses grampinhos era a china que mandava farto material.” (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Depois do ocorrido, teve que se internar em um hospital para se recuperar, cladestinamente com documentos falsos pôde se medicar. Depois de recuperado seu chefe lhe mandou para a guerrilha rural no Araguaia, juntamente com sua equipe que era composta por quatro integrantes. Lá eles só andavam a noite e um dos seus companheiros acabou morrendo, foi picado por um escorpião no pescoço e como não podiam sair da mata em busca de socorro ele acabou não resistindo. Florival e seus companheiros enterraram o guerrilheiro morto ali mesmo na mata, em Conceição do Araguaia, e diz que o túmulo do guerrilheiro Everaldo é muito visitado, pois há uma crença de que ele obra milagres. Ele ainda relata que viu de longe o massacre que aconteceu naquela região, onde morreram muitas pessoas.
A Guerrilha do Araguaia (MOURÃO, Mônica. Memórias clandestinas: a imprensa e os cearenses desaparecidos na guerrilha do Araguaia. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2005. P.37.) citada pelo militante Florival foi um movimento rural armado contra o governo militar numa região de difícil acesso a ação do exército, pois era uma região esquecida pelas autoridades, mas a repressão não tardou.

Em 1972, numa região de difícil acesso conhecida como Bico-do-Papagaio, entre os atuais estados do Tocantins, do Pará e do Maranhão, ocorreu o maior movimento rural armado de resistência ao regime militar então vigente no país. Este movimento não eclodiu por iniciativa dos guerrilheiros, como ocorreu na maior parte dos movimentos armados que se conhece no Brasil e na América Latina daquele período. Ele teve seu início marcado por um intenso ataque das forças oficiais que desde o princípio tiveram a determinação de destruí-los, eliminá-los e de apagar da memória local e da história nacional a sua existência. (SOUSA, Deusa Maria de. Lágrima e lutas [tese]: a reconstrução do mundo de familiares de desaparecidos políticos do Araguaia. Florianópolis, SC, 2011. P. 26-27.)

Depois das tragédias sofridas pelo militante, ele voltou para sua terra natal, e aqui em Ipu foi pego pelos militares em uma segunda-feira na Bica do Ipu, quando estava na companhia de alguns amigos, e foi torturado covardemente. Relembra com revolta seu sofrimento:

“Assim que eu entrei no carro eu vi que aquilo era uma cama de tortura. O carro era preto com laranja. O carro do DOPS, Departamento de Ordem e Política Social. Aqui no Passa Sede eles me deram um baile de tortura. Eles me penduraram de mão para traz. Eles me meteram no pau de arara, eles me introduziram jornal encharcado com gasolina em mim e tocavam fogo, queimaram o reto, são dores profundas, terríveis. (...) eles queriam que eu devolvesse material subversivo, porque eu no pavilhão apanhava panfletos, jornais, para dizer o que estava acontecendo no Vale do Ribeira e no Vale do Araguaia”. (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Pavilhão era um bar de propriedade de Florival, que se localizava nas proximidades da estação ferroviária, os estudantes da região que moravam e estudavam em Fortaleza mandavam para ele panfletos, matérias de jornais, livros, ou seja, os materiais considerados “subversivos”. Continuando seu depoimento ele relata como foi finalizado as torturas sofridas:

“Eles terminaram trazendo uma gaiola com uma cobra dentro, aquela cobra que tem a guisa no rabo, o cascavel, ameaçaram, mas eu tinha feito um curso de yoga, porque eu tinha feito tática de guerrilha, técnicas de sabotagem, eu tinha feito vários cursos, eu tinha feito curso de yoga para suportar tortura. Quando eles trouxeram aquela cobra eu já sabia que aquela cobra não tinha veneno, mas deixa que a técnica deles estava mais avançada do que a minha, a cobra deles tinha veneno mesmo, quando a cobra me mordeu eles ameaçaram, ameaçaram, até que deixaram, ela mordeu duas vezes no meu rosto, eu com um braço amarrado em uma jurema o outro num sabiá lá no meio do mato, eles abriram a gaiola buliram com a cobra e a cobra me mordeu ela queria pegar pelo brilho do olho mas eles num deixavam eles precisavam de mim vivo.” (Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Florival conta que depois de ter sido picado pela cobra, quando passou uns cinco a dez minutos começou a sentir contrações e chegou a pensar que iria morrer. Mas os torturadores, que na lembrança dele eram seis, haviam injetado nele soro antiofídico para cortar o efeito do veneno da cobra. Percebeu isso logo que acordou: “A coisa que mais me fez sofrer foi quando eu tornei de Itapipoca pra lá com os braços cheios de contra veneno antiofídico, que eu vi que estava vivo, eu preferia ter morrido mesmo, do que ficar naquilo de novo”.(Florival Vale de Paiva. Entrevista concedida a autora em 08/07/2015.)

Além das torturas físicas ele sofreu torturas psicológicas, relata que os torturadores mandavam-no fazer o sinal da cruz, diziam que ele devia ser morto, que todo comunista tinha que ser morto, e muitas outras coisas que ficaram marcadas na triste memória desse militante comunista ipuense, que tinha como intuito ajudar seus companheiros, e lutar por mais igualdade social. Napolitano lembra o papel da tortura:

“A tortura não é apenas uma técnica de extrair informações, mas também uma forma de destruir a subjetividade do inimigo, reduzir sua moral, humilhá-lo. No caso do guerrilheiro de esquerda, a moral era tudo. Combatia-se por uma crença ideológica, combatia-se por um ideal de sociedade. Quando uma pessoa se torna um guerrilheiro, não há nem vitória nem compensações materiais no curto e médio prazo. Ela rompe os laços familiares em nome da luta, rompe com as possibilidades de um trabalho e de um futuro confortável, ainda mais quando se é estudante vindo de uma elite. A prisão, o exílio, a derrota pontual não eram suficientes para abalar a moral, quando muito para provocar uma autocrítica e mudança de estratégia de luta. A morte heroica era uma perspectiva que não assustava a flor da juventude que foi à luta. A tortura invade esta subjetividade tão plena de certezas e de superioridade moral para instaurar a dor física extrema e, a partir dela, a desagregação mental, o colapso do sujeito, o trauma do indizível. É claro, muitos militantes passaram pela tortura e, em princípio, não submergiram como sujeitos nem como militantes. Isso aponta para uma certa ineficácia da tortura.” (Idem p. 108.)

Os militares levaram Vale para Fortaleza, para ser libertado contou com a ajuda do deputado Marcelo Linhares, alegando que aquilo tinha sido um equívoco que ele não eram quem eles estavam pensando, alegou que Florival era analfabeto e que não causava nenhum risco. Então trouxeram-no para Reriutaba, cidade vizinha a Ipu e deixaram-no preso, depois de seis dias é que sua mulher e a população ipuense ficaram sabendo e foram em busca dele. Para ser solto foi necessário que o padre Moraes se responsabilizou por ele, assim, foi condenado a passar três anos em prisão domiciliar.
Florival Vale apoiava o grupo dos Rochista, mas, afirma que como não recebeu nenhuma ajuda deles, nem de Dona Maria Antonieta, prefeita, que negou que lhe conhecesse. Por causa disso ficou muito decepcionado, mas continuaria a se envolver na política agora contra o Dr. Rocha. “Eles fazem as vítimas se ajoelhar nos pés dos poderosos”. Florival diz que por não suportar ficar só em casa, sem poder divertir-se acabou se aliando ao grupo político de Moraes na eleição em que Rocha perdeu a liderança para Milton Pereira. O próprio padre Moraes foi falar com o general Assis Bezerra, chefe de polícia de Adauto Bezerra para o comunista trabalhar na sua campanha.

O general Assis Bezerra segundo Florival, disse que se ele quisesse se candidatar a vereador podia, e o padre Moraes queria que ele se candidatasse pela Arena, vejamos a contradição, Comunista do lado da Ditadura, mas ele não aceitou, quis mesmo só trabalhar como cabo eleitoral isso já bastava, visto que o objetivo dele era poder andar livremente pela cidade e se divertir com eles, ou seja, teve realmente que se “ajoelhar nos pés dos poderosos” como ele mesmo retratou, para conseguir sua liberdade. Como discorre Cardoso: “(...) além do preso político não ser considerado um cidadão, ele foi tratado com mais severidade do que o dito “marginal” que praticou crimes considerados e julgados na justiça comum.”(CARDOSO, 2012, p.98)

Mas a presença de comunistas na cidade de Ipu é bem mais antiga. De acordo com o historiador Petrônio Lima, no início da década 1940, vindo do Rio Grande do Sul para trabalhar como Coletor Federal chega a cidade Hugo Madureira, homem muito inteligente e com muita facilidade de socialização adquirindo prestigio e muitas amizades. A Igreja na pessoa do Padre Cauby identifica-o como “ameaça” visto que ele seria um suposto comunista.

Hugo Madureira depois de adaptado aluga uma casa ao lado da Igreja Matriz e funda a Liga dos Trabalhadores de Ipu, onde a noite acontecia os encontros e ensinamentos sobre questões trabalhistas e ideias da doutrina do comunismo. O Padre Cauby fica extremante aborrecido com essa ousadia e em certa noite de novembro do ano de 1946 convoca os fiéis para colocar fim a essas “mazelas”, então se armam de pedras e expulsam o suposto comunista da cidade, conforme descreve o historiador:

“Os gritos vindos de fora faziam lembrar um bando de lobos famintos tentando agarrar a sua presa: “Sai daí de dentro comunista do inferno!...Morra como homem desgraçado!” O que se via era uma enorme chuva de pedras e paus por entre portas e telhados. E o pior, muito de seus alunos se encontravam na sede, o que fazia com que Madureira gritasse insistentemente: Por favor, calma!!! Não somos ladrões e nem demônios. Somos trabalhadores assim como vocês. Não façam isso por favor!... De nada adiantava as palavras do líder comunista Madureira, pois o fanatismo e a intolerância falavam mais altos: Cão maldito!... Não negociamos com anticristo, somos devotos de São Sebastião e não do satanãs...Avante Cruzados da Eucaristia! Viva Círculo Operário, Viva São Sebastião! Viva Padre Cauby!...E a multidão em coro gritava: Vivaaa!!!!” (http://petroniolimaipu.blogspot.com.br/. Acesso em 05/09/15)

Ainda segundo Lima quando conseguiram invadir a casa, já se encontrava somente Madureira e seu companheiro fiel Manoel Sapateiro, pois os alunos que ali se encontravam tinham sido orientados a fugirem pelo telhado enquanto os dois seguravam a porta. Todos os materiais de ensino como: cartilhas e livretos foram queimados pelos religiosos a mando do Padre. Madureira só conseguiu fugir porque como andava armado deu um tiro para cima e os religiosos por medo acabaram deixando-o fugir. Depois desse dia não foi mais visto na cidade.
A história desses dois sujeitos são exemplos de que mesmo nos pequenos municípios a repressão e a “subversão” estiveram presentes, em diferentes momentos da história do Brasil.
Ainda sobre a tortura, Marcos Napolitano discorre que ela faz parte do sistema imposto pela ditadura e o torturador é obrigado a seguir as normas desse sistema cruel e antidemocrático:

“É fácil explicar a tortura pelo descontrole do aparato policial-militar da repressão ou pela autonomia do porão em regimes autoritários. Costuma-se explicar a tortura até pelo emprego de indivíduos sádicos e psicopatas na repressão, que cometeriam excessos, sobretudo nos casos mais atrozes de violência. Mas nenhuma destas explicações dá conta do fato de que a tortura é um sistema. Como sistema, não é o torturador que faz a tortura, mas exatamente o contrário. Sem o sistema de tortura, organizado, burocratizado e abrigado no aparelho civil e militar do Estado, o indivíduo torturador é apenas um sádico errante à procura de vítimas. Dentro do sistema, ele é um funcionário público padrão. Obviamente, a tortura nunca foi assumida pelo alto escalão militar que comandava o regime como uma política de Estado.” (NAPOLITANO, 2008, P. 106.)

A jornalista e escritora Tais Moraes, autora do livro Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, realizou um importante trabalho que resultou na escrita do livro Sem Vestígios: revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira, em que a autora descreve a vida de um militar e o que levou-o a cometer tantas atrocidades, fato que possibilitou a oportunidade de conhecer o que se passa na mente de um torturador, uma de minhas maiores inquietações.
A autora conta a história de um agente secreto da ditadura através de uma espécie de diário feito por ele mesmo, mas sem sua identificação, o que é possível saber é que ele morava no Rio de Janeiro, talvez por esse motivo se identificou como Carioca. O autor desse diário pediu a um familiar que o entregasse, após sua morte, para alguém que o publicasse, o que acabou caindo nas mãos da jornalista Tais Moraes.
A escritora começa descrevendo toda a vida do agente, antes mesmo de entrar para o exército, até sua terrível morte dentro de um barco com uma machadada na cabeça, ocorrida sem deixar nenhum vestígio. Quando foi convocado para servir o exército de imediato saberia qual seria sua função no quartel, seria um dos salvadores da pátria:

“Se até ali a política estava longe de suas preocupações, passou a estar na ordem do dia. Não se falava de outra coisa a não ser no golpe que as altas patentes insistiam em chamar de “Revolução”. A visão, porém, era unilateral. Nenhuma conversa, mesmo informal, sobre o panorama político que conduzia àquele desfecho. Nada de amplos contextos nem discussão de idéias divergentes. No quartel só havia uma versão: a que todos deveriam aceitar sem nenhuma ressalva. Os militares salvariam o país de uma caminhada inexorável para o comunismo – a grande besta do apocalipse, a fonte de todo o mal, e limpariam, ainda, os resquícios da doutrinação anterior. Muitos subversivos vicejavam nas sombras, na sorrateira tentativa de recuperar terreno. Era preciso barrar sua passagem, evitar a todo custo a contaminação da população pelas cartilhas vermelhas. Tudo era válido naquela missão sublime. Foi o que Carioca aprendeu, de imediato, dentro daquele país à parte chamado quartel.” (MORAIS, Tais. Sem Vestígios: revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira. São Paulo: Geração Editorial, 2008.P.39.)

Carioca relata vários tipos de agressões e torturas que confirmam o que já foi ressaltado nesse trabalho, além das muitas técnicas já citadas, em certos momentos eles criavam, na hora mesmo da prisão, maneiras de causar sofrimentos nos considerados inimigos. O militar também participou da Guerrilha do Araguaia e relata o que faziam para apagar os vestígios daquele massacre:

“O que muita gente desconhecia, até determinado momento, é que houve um cuidado extra no afã de destruir provas do que realmente houve no Araguaia. Depois do retraslado de corpos de onde estavam originalmente, para aquela área mais distante, muitos foram amontoados em uma cova muito profunda, forrada e depois coberta com várias camadas de pneus, depositando os cadáveres no meio. Em seguida, com o uso de imensas quantidades de gasolina, atearam fogo à pilha, até que tudo se transformasse em cinzas, que a poeira dispersou ou o vento levou. Houve, ainda, uma terceira etapa. A cova foi, então coberta com terra, para em seguida receber mudas de árvores e sementes de capim. Uma verdadeira maquiagem na geografia para que ninguém jamais fosse capaz de descobrir o que houve ou quem foi o responsável por aquilo.” (MORAIS, 2008, P.155.)
Mesmo depois de tantas barbaridades, agiam como se nada tivesse acontecido, pois estavam apenas realizando seu trabalho e não deveriam sentir-se culpados já que fazia parte do sistema. Segundo Carioca em seus relatos, uns se drogavam para cometer tamanhas atrocidades outros pareciam não sentir nada até riam nos momentos de terror. Porém, Carioca se consideravam assassino desde a primeira pessoa que matou. Ele relata o fim triste do cearense de Boa Viagem David Capistrano da Costa, conhecido militante do Comitê Central do PCB muito procurado pelos militares, seu fim foi extremamente cruel e assustador. Depois de terem capturado David Capistrano ele foi entregue para alguns militares, dentre eles, Carioca com o mandado de levarem o prisioneiro para a parte serrana do Estado do Rio de Janeiro e deixado em uma casa em Petrópolis. Carioca foi poupado do trabalho macabro que levou a morte de David, porém depois do assassinato teve que sumir com os restos do corpo. Relembra:

“Mesmo ele, um agente cansado de ver a morte, de vários tipos, e as mais diferentes formas de tortura, nunca poderia imaginar uma cena daquelas. Chocado sem articular uma só palavra, o estômago engulhado, percebeu que as partes, amontoadas num canto, estavam a ponto de serem colocadas em sacos plásticos. Isso ainda não era tudo... Lentamente, levantou a cabeça em direção a algo pendurado em ganchos. A princípio não distinguiu bem o que era. Um tronco, dividido ao meio. As costelas de Capistrano pendiam do teto, e ele, reduzido a pedaços como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue.” (MORAIS, 2008, P.175.)

Além de todos esses relatos de Carioca, em um dos trechos do diário ele escreve que foi um bom militar e realizou um bom trabalho quando relata todas as atrocidades, mas também fala de como se sente por ter feito tanto mal: “Cenas pavorosas me perseguem em minhas noites de sono imperfeitos, me atormentam e me enchem de remorsos e culpa. (...) As imagens de tortura de militantes de esquerda me perseguem a cada dia e noite.” (85 MORAIS, 2008, P.16.) Escreve ainda que gostaria que esses escritos fossem divulgados somente depois de sua morte e realmente isso aconteceu, e também dar entender que por algum momento se arrepende: “Ultimamente tenho pensado muito em Deus. Em perdão. Se é que existe perdão para mim.” (86 MORAIS, 2008, P.16.) Mas justifica por que fez tudo isso : “O trabalho era sujo, mas era o nosso trabalho livrar o país da ameaça comunista.”(MORAIS, 2008, P.17.)

Para Marcos Napolitano havia um ponto em que a tortura foi muito eficaz que seria na propagação do medo, onde o destino de todo subversivo seria a tortura, a prisão ou a morte muitas vezes por desaparecimento, como ocorreram em diversos casos, depois de cinco décadas muitos familiares não sabem o destino de seus parentes. Segundo a historiografia muitos prisioneiros de esquerda foram enterrados clandestinamente, em locais desconhecidos e outros foram jogados ao mar, com requintes de extrema crueldade. O que coletivamente causava mais traumas:

“Não por acaso, os militares da geração de 1964 – triunfantes na política, vitoriosos nas armas contra a guerrilha, donos do Estado por mais de vinte anos – são profundamente ressentidos. Ao perderem a batalha da memória os militares se tornaram vilões de um enredo no qual se supunham heróis. Hoje em dia, poucas vozes com influência nos meios políticos e culturais defendem o legado do regime. As próprias Forças Armadas, como instituição, não sabem bem o que dizer para a sociedade sobre 1964 e sobre o regime, e frequentemente optam pelo silêncio ou pela lógica reativa, tais como “o golpe foi reativo” ou “nós matamos porque o outro lado pegou em armas”. A partir do final dos anos 1970, o regime se viu ainda mais isolado, com sua obra política e econômica cada vez mais questionada por empresários, intelectuais, trabalhadores, classes médias. Foi nesse momento que se consagrou a derrota dos militares na batalha da memória, iniciada bem antes, e que, paradoxalmente, serviu para selar a imagem da “sociedade-vítima” do Estado autoritário, resistente e crítica ao arbítrio.” (NAPOLITANO, 2008, P.246.)

2.3 As Memórias e o tempo presente

Se realmente a esquerda ganhou a guerra da memória, cinquenta nos depois do golpe a memória da direita ainda encontra ecos na cidade de Ipu. O ipuense, escritor e professor Antônio Ramos Pontes, reforça a justificativa de que o golpe foi necessário:
“A baderna, o desgoverno, a ausência de autoridade, a falta de organização do país, a falta da aplicação da Lei como ordem, não é a lei como ditadura, não é a lei como terror, mas a lei como ordem na sociedade, tudo isso e até considerando o governo daquele tempo daquela época. Então o governo militar eu não chamo nem de ditadura, ele era necessário, sim foi necessário fazer. Foi necessário, foi bom, eu vivi esse período quando eu vivi no Rio de Janeiro durante o auge do Regime Militar na década de 70. Eu era acadêmico, se andava nas ruas com tranquilidade, eu mesmo me lembro demais disso que eu vinha de minha faculdade, era por volta de onze, onze e meia da noite, até carona os militares me deram para irem me deixar em minha casa. Tão preocupados eles estavam com o zelo que eles tinham pela segurança do cidadão, eu com o braço cheio de livros e as vezes eles iam me deixar perto de minha casa, que eu morava em Copacabana nesse período, quando não iam me deixar mandavam pedir o ônibus parar e me levar, as vezes nem pagava passagem.” (Antônio Ramos Pontes. Entrevista concedida a autora em 03 de setembro de 2015.)

Ele continua, justificando a tortura:

“Esse problema da tortura se fala muito nisso, mas eu acredito que houve excessos, é claro aconteceu excesso sim, mas quem passou por isso? O cidadão? Por que que alguns desses elementos foram castigados, foram corrigidos com algum exagero? Teve exagero? Teve! A gente não pode negar isso. Isso acontece até hoje mesmo num país de regime, dizem que o regime é democrático que eu não acredito nessa democracia, nós estamos vivendo numa verdadeira ditadura petista, acontece até hoje, houve sim sem dúvida nenhuma, mas quem foi torturado? O cidadão? É quem estava na igreja rezando? É quem estava trabalhando ou quem era inimigo do Brasil? Não amiga, era os inimigos do Brasil a Lei de segurança Nacional prevê a pena capital para os traidores do país. E os militares não fizeram isso deram apenas umas pancadinhas, em alguns deram uns castigos, corretivos em alguns mas não fizeram isso, exagero pode ter tido exagero (..) Minha amiga quem não é bandido não tem medo de militar, quem tem medo de militar é bandido. (grifo meu)” (Antônio Ramos Pontes. Entrevista concedida a autora em 03 de setembro de 2015.)

Mas, contraditoriamente, quando o autoritarismo atinge seus familiares, Pontes reconhece seus limites. Filho de um oficial de justiça ele reclama das práticas autoritárias impetradas pelo Juiz de Ipu no período da ditadura. “Ele pegava o meu pai, sabendo da situação que estava para oficial de justiça, as vezes seis horas da noite, ele se lançava em sertão afora a procura de intimar alguém e no dia seguinte está na audiência, o juiz era um sujeito realmente cruel.”(Antônio Ramos Pontes. Entrevista concedida a autora em 03 de setembro de 2015.) Ele descreve o contexto local na década de 1960, por meio desta poesia de sua autoria:
“Um magistrado tirando a sombra da Lei
É nesse mundo sombrio de puro autoritarismo
Que os nossos representantes impõem o sectarismo
Do poder dos tribunais esmagando os seus rivais
Sobre os pés do idealismo.
Francisco Ramos Soares, um recém oficial
de justiça da cidade, homem do bem e não do mal
conhece um juiz cruel de direito infiel, um magistrado brutal.
Diziam que o tal juiz saiu de São Benedito linda
cidade serrana em que lá não foi bendito
teria sido enxotado pelo povo ameaçado.
de um cacete merecido
A boca do povo corta descobre faces tão nuas
Aumenta mais não inventa coisas que se engole cruas
sejam mentiras profundas ou verdades iracundas felizes por entre as ruas.
Porém muito se cobrava dos homens do Ipu meu
visto que o tal magistrado impunha o desejo seu
a ditadura crescia e sua força destruía o mundo que era só teu.
Era então 64 de um inverno pavoroso
um dilúvio jamais visto em nosso estado famoso
caiu umas chuvas sem tréguas, roncavam os rios sem régua, rasgando o solo arenoso.
Acima das superfícies as águas se elevavam
diluviando torrentes as nuvens se acinzentavam
o céu de dia era noite, cada chuva era um açoite pra as vidas que arrebentavam.
No circuito do horizonte a muralha enegrecida
cor de chumbo derretendo na terra já bem ferida
o ribombar do trovão balança todo sertão da natureza sofrida.
O relâmpago ilumina as noites tão solitárias
um andarilho corta um mundo como águas involuntárias
na solidão se abatendo seu triste oficio vivendo escuridões ordinárias.
Como um juiz tão cretino poderia assim mandar
um oficial de justiça em noite horrenda intimar
um réu pro dia seguinte em audiência com o ouvinte depor e não se matar.
(Antônio Ramos Pontes. Entrevista concedida a autora em 03 de setembro de 2015.)

Outros ipuenses se colocam contrários ao autoritarismo. Para o Professor Marcos Paiva o regime foi de limitações dos direitos sociais:

“Tinha pleno conhecimento da ´´Revolução´´ que aconteceu a partir de 1964 que acabou com toda e qualquer garantia constitucional além de economicamente ter sido um verdadeiro lesa- Pátria. Dentro do AI 5 tinha um artigo que censurava especificamente os estudantes brasileiros. Portanto, não só conheci muitas pessoas que foram censuradas, inclusive EU que na época era estudante. Estudava na universidade Católica da Bahia no curso de economia, no período mais tenebroso da Ditadura Militar, isto e, em pleno AI 5 em cujo interior continha um artigo que não lembro no momento salve engano 472 que era especifico de repressão aos estudantes e através deles muitos estudantes foram preso e torturados. No Ceará a repercussão do golpe não foi muito diferente do restante do Brasil, uma brutal censura a imprensa ou uma brutal repressão aos movimentos populares principalmente dos operários e estudantes.” (Marcos Evangelista de Paiva. Entrevista concedida a autora em 27 de agosto de 2015.)

Melo discorre sobre a repressão nas escolas. Como professor do Patronato e do Colégio Ipuense ele diz que falava em sala de aula que aquilo era uma ditadura, uma revolução sem precedentes:

“A irmã Mendes era diretora e dizia, Francisco pelo amor de Deus não fale esse negócio não, não demorou nada me tornei diretor do Colégio Ipuense eu comecei a sentir a verdadeira preocupação que a irmã Mendes tinha. A gente recebia quase que semanalmente uma carta da polícia federal, da presidência da República, principalmente do Geisel, recebia uma carta prevenindo a gente o que não devia falar. Eles obrigavam toda escola terem um Centro Cívico, com símbolos nacionais e uma vez por semana hastear a bandeira com o hino nacional, nas cartas tinha recomendações para não se falar nada contra os militares, nada contra as atitudes e ideias dos militares.” (Francisco de Assis Martins. Entrevista concedida a autora em 03 de junho de 2015.)

A repressão aos cidadãos não se restringiu aos militantes políticos. Professores, escritores, músicos e muitos outros foram também perseguidos pelas forças armadas, tendo muitas vezes que se exilarem ou calarem-se diante das autoridades:

“Principalmente durante os chamados “anos de chumbo”, que compreendem todo o período do governo Médici (1969-1974) a repressão moral caminhou passo a passo com a repressão política. A referência explícita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. E além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura.” (ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. 6a ed. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.55)

Muitos cantores se expressaram contrários ao regime ditatorial por meio de suas músicas, que traziam nas letras relatos de injustiças sociais, denúncias ao sistema implantado no país, quando muitos desses artistas foram perseguidos e alguns tiveram que si exilarem em outro país. Boa parte desses cantores depois da ditadura fizeram muito sucesso, contudo a historiografia retrata somente as músicas ouvidas pela classe média, tais como, as canções de Chico Buarque, Caetano Velos, dentre outros.
O autor Paulo Cesar de Araújo em seu livro Eu não sou cachorro não, vem quebrar com esses estereotípicos dando espaço na memória da história musical aos cantores que faziam sucesso e tinham suas músicas ouvidas pela classe baixa da sociedade, ou seja, os que eram considerados “cafonas” e “bregas”:

“No rastro da chamada “defesa da moralidade e dos bons costumes”, diversos artistas populares tornaram-se alvos da censura do regime”. Mas que muitos são esquecidos. “Não dá mais para dissimular ou esconder. A produção musical “brega” ou “cafona” é um fato da nossa realidade cultural, assim como a da bossa nova ou a do tropicalismo, precisa ser pesquisada e analisada.” (ARAÚJO, 2007, p.16)

Para Araújo é importante dá vozes a esses cantores populares, como ele mesmo cita, Waldik Soriano, Odair José, Benito de Paula, Paulo Sérgio, dentre muitos outros que são lembrados pela classe menos favorecida, percebemos que até nesse critério encontramos desigualdades sociais. O autor faz uma defesa da memória desses cantores e canções que foram silenciadas pela historiografia em virtude do “sucesso” dos ditos “cantores da elite”:

“De tudo isto, o mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que chamavam contra a tortura no tempo do regime militar silenciaram e constata-se agora uma certa complacência da sociedade - para não dizer o aplauso de setores das elites e de muitos segmentos médios. É como se a tortura praticada contra os estratos mais baixos da população não fosse tão grave assim. É como se não existisse mais tortura no Brasil. Mas não se iluda. É possível mesmo que no momento em que você lê estas páginas, algum brasileiro pobre, e provavelmente negro, esteja sendo submetido a tratamento cruel, desumano e degradante em algum camburão, delegacia ou penitenciária do país. E muitas dessas vítimas poderão estar gritando “eu não sou cachorro, não” ou “seu moço, não sei de nada/ não sei do que tá falando/ não tenho papel nenhum/ há pouco que tô chegando...” (ARAÚJO, 2007, p.244)

Assim como as músicas ditas “bregas e cafonas” foram lembradas pelo autor, a história da ditadura militar deve sempre ser lembrada por nós, principalmente pelos historiadores, com o objetivo de alertar a população, no intuito de evitar que essa barbárie nunca mais aconteça, com a esperança que haja mais igualdade social e mais democracia. Finalizo com a importante frase do historiador Boris Fausto: “Quanto mais o passado é trabalhado mais a sociedade se beneficia: Não há cidadania sem o conhecimento da História”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Estudar a história política de Ipu em tempos de ditadura foi uma tarefa árdua. Sabia desde o início da pesquisa que as dificuldades seriam muitas, as principais seria conseguir fontes que pudesse desvendar essa história. Foi como montar um quebra-cabeças sem a imagem do que se pretendia encontrar. Era certo que não iria encontrar muitas práticas de repressão e resistência à Ditadura Militar Brasileira em nossa pequena cidade, como encontramos nas grandes capitais, por isso a história do ex-militante comunista Florival Vale me surpreendeu. Fiquei impressionada com a sua história, mas principalmente com a sua coragem de quebrar o silêncio, evitando que aquelas histórias caíssem no esquecimento como esperam os que ainda defendem uma ditadura.
Outro aprendizado importante foi a compreensão de como se constituiu a política municipal nessas décadas. Pude perceber que o local, o regional e o nacional estão intimamente imbricados, a filiação de Rocha e Moraes a ARENA e a pouca representatividade do MDB, eram indícios de uma aliança com o regime, que como em outros municípios do noroeste cearense, resultou em investimentos no espaço urbano local, o que de algum modo, ocultava as mazelas da repressão. Consegui compreender o verdadeiro significado do conceito de política. Apesar do minucioso trabalho para montar esse quebra-cabeças, estou certa de que ainda há muito a ser compreendido da história do Ipu.
Enfim, pesquisar sobre Ditadura, conhecer a História Política de nosso país, me proporcionou sentimentos indescritíveis, ao mesmo tempo que me senti indignada em saber que essa forma tão cruel e desumana de governar existiu aqui, por outro lado, senti uma vontade imensa de fazer algo para que isso nunca mais se repita. Já se foram cinquenta anos, mas essa história ainda permanece na memória de muitos. “O preço a ser pago pelas esquerdas e pela sociedade como um todo foi alto demais para ser relegado ao esquecimento.” (CARDOSO, 2012, P.12.)

Para Araújo, a definitiva superação da ditadura vivida no país só poderá se dar com o aprofundamento da democracia e a ampliação das políticas de justiça de transição. O direito à memória, à verdade e à justiça são passos importantes que o país deve dar: esclarecer os abusos, investigar as violações cometidas, revelar a verdade factual, responsabilizar os perpetradores são atitudes que se espera do país. A Comissão da Verdade, instalada em maio de 2012, pode cumprir esse importante papel. O Brasil já avançou bastante na reparação de muitas vítimas da ditadura, mas inúmeros episódios continuam sem explicação. Garantir o direito à memória, à verdade e à justiça é um passo fundamental na consolidação democrática.

Que esse trabalho seja a minha pequena contribuição, deixar para a historiografia algumas pistas para que outros pesquisadores possam continuar esse estudo que ainda carece de muita pesquisa e análise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. 6a ed. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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FONTES
Fontes escritas
Jornal Ipu Grande, Setembro, 2010, Ano III, Nº 27.
Ipu em Jornal, N0 30, ANO III, IPU-CEARÁ, agosto de 1960.
Atas das sessões ordinárias Da Câmara Municipal de Ipu, no período de 1971-74.

Fontes virtuais
Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Secretaria de Informática. Coordenação de estatística e Informações eleitorais. Seção de Estatísticas. Eleições Municipais de 15 de novembro de 1966, 1970, 1972, 1976, 1982, 1988 e 1992 – Município de Ipu. www.tre-ce.gov.br. Acesso em 15 de junho de 2015.
http://www.ibge.gov.br/.Acesso em 15 de julho de 2015.
http://professorfranciscomello.blogspot.com.br. Acesso em 07 de abril de 2015.
Site: http://amoscanomeupao.blogspot.com.br. Acessado em 05/09/2015.
http://petroniolimaipu.blogspot.com.br/. Acesso em 05/09/15.

Fontes Orais
Francisco de Assis Martins. Data de Nascimento: 15 de maio 1943.
Florival Vale de Paiva. Data de Nascimento: 19 de julho de 1943.
Antônio Ramos Pontes: Data de Nascimento:18 de setembro de 1950.
Marcos Evangelista de Paiva: Data de Nascimento: 25 de abril de 1944.

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